Um jogo que insiste no mistério e paga na sua resolução

Mais tenso que aterrador, The Music Machine funciona como escape ao misterioso. Pouco mais de duas horas para as interrogações se transformarem em exclamações.

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The Music Machine não se ensaia muito para despoletar duas questões em quem o joga: onde estou? E o que se está a passar à minha volta? O novo jogo de David Szymanski, autor de The Moon Sliver e Fingerbones, celebra as rédeas que dá ao jogador, entregando-o à sua sorte sem grandes pistas nem explicações. É uma obra de exploração patrocinada pelas interligações que vai fazendo com a narrativa.

Como a piscar o olho à série televisiva Perdidos, começamos numa ilha que nos é desconhecida e pouco tempo temos um alçapão a aguçar-nos a curiosidade. The Music Machine tem no seu âmago dois protagonistas, Haley e Quintin, uma rapariga de 13 anos e o espírito que lhe habita o corpo e a vontade, respectivamente. E a vontade de Quintin é, explicitamente, matar Haley. Porém, durante as duas horas bem medidas que tem de longevidade, a narrativa vai munindo-se de apetrechos e ganchos que vão mantendo a atenção do jogador quase sempre investida.

O espírito de 34 anos vai adiando o seu propósito, contendo-o para manter o jogador na expectativa. É um duo com uma dinâmica fluída, trocando linhas de diálogo ao longo da aventura, revelando as suas intenções e contrastando-as com a porção da narrativa que advém do exterior, respondendo minimamente na segunda metade da obra às questões colocadas no início deste texto.

Aprendem a gostar um do outro e, ainda que habitando realidades diferentes, é interessante ver como as duas personagens têm aflicções que afectam a maneira como contracenam, como a vontade de Haley encontrar um cigarro para fumar e a repreensão automática de Quintin. Tudo isto nos vai sendo apresentando em formas de linhas de texto, em diálogos que vão mantendo a atenção do jogador à parte inferior do ecrã do computador.

Porém, como já foi mencionado, existe um fio condutor externo aos personagens que o compelem a avançar pelos vários cenários de The Music Machine. Alternando cenários em mundo aberto com corredores estreitos, há aqui uma quebra de ritmo que oscila o ânimo de quem joga: ainda que haja vontade de prosseguir, ocasionalmente não saber o que se tem que fazer ou para onde ir aumenta a frustração, especialmente porque o achamento nem sempre é intuitivo, o que poderá pôr muitos a andar em círculos para tentar tudo até acertar, ou seja, quebrando-se a lógica sobra a força bruta.

Os cenários não são suficientemente grandes para a frustração se instalar durante horas, mas ver que o item que tínhamos que tocar estava escondido sem razão aparente não justifica a exploração até então. Estas quebras de ritmo são mais notórias na primeira metade da aventura, com o trecho que conduz até ao final a ser mais dinâmico e a fazer um trabalho seguro na explicação sobre o que aconteceu até então e sobre o que vai acontecer nos minutos antes dos créditos rolarem, ainda que deixando algumas pontas soltas para eventuais teorias e uma várias ligações à obra anterior de Szymanski, The Moon Sliver.

Para contextualizar esta satisfação na explicação é imperativo mencionar que o mundo de The Music Machine não tem alicerces na nossa realidade. Existe um jogo de fumo e espelhos que faz qualquer um coçar a cabeça: locais misteriosos, uma cadeira que acaba por ser o catalisador da narrativa, porcos empilhados, engrenagens de que não se sabe propósito quando descobertas, estruturas que desafiam a física e o racional, esferas de fumo, erros no sistema, enfim, um arquivamento de questões na mente de quem testemunha.

No centro de tudo isto está uma igreja abandonada. Temos que pressionar as teclas do orgão consoante as instruções que encontramos ao seu lado para aceder aos vários locais onde vamos buscar o avançar da narrativa: uma cidade abandonada, uma floresta com uma chuva ácida que queima a pele de Haley e nos obriga a procurar abrigo e, finalmente, dois cenários que explicam e encerram a narrativa: The Void e The Music Machine. Se o último é a porta para o desfecho propriamente dito, é no The Void que nos é explicada a trama.

Aqui, a Haley e a Quintin junta-se um terceiro personagem apropriadamente apelidado de "The Voice". É ingrato replicar a explicação sem estragar este ponto de viragem na narrativa, contudo, é apropriado mencionar que alguém está a estudar os comportamentos humanos à distância e que estamos num lugar “fora do espaço e do tempo”. Esta voz reconhece que temos um espírito connosco e que não deve ser ignorado. É uma explicação/descrição filosófica que não se escusa a tocar no tema da religião, perguntando à protagonista se acredita em Deus. A resposta automática de Haley diz que não, ao que a voz retorque com “então também não acreditas em demónios. E não vais acreditar onde estás.” Como última referência narrativa, é inquestionável a menção dos The Spindle Men, “criaturas de uma terrível inocência” que “não compreendem a imaginação, a emoção ou a beleza” e que “não compreendiam os humanos porque só compreendiam o literal”.

Aliás, os The Spindle Men podem ser considerados a justificação para os mistérios que fomos encontrando e a sua integração com a trama acaba por ser, em último caso, uma explicação minimamente convincente da experiência. É um desfecho que fica connosco durante algumas horas após as horas da sua longevidade, fazendo reconhecer o engenho da narrativa elaborado por Szymanski.

Contudo, The Music Machine será lembrado pela sua componente técnica, mais concretamente pelo seu aspeto gráfico. De fácil tradução nas imagens publicadas, os cenários do jogo são apresentados em duas cores que dão pujança gráfica à aventura. O carmim, o verde, o amarelo, cores fortes que contrastam com o preto, jogando nas sombras e na profundidade dos cenários, dando-lhe carisma e ênfase. Mesmo o último nível usa cores berrantes em contraste, impregnam as retinas, deixam sulcos na memória.

E o som também não deve ser descurado. Mínimo mas eficaz, acentua os momentos de tensão e de descoberta. Aliás, The Music Machine, mesmo que não possa ser reduzido a, é eficaz na tensão que inflige ao jogador. Não, não existem sustos baratos, contudo, a ausência da ameaça trabalha na cabeça de cada um, aflige-os, atemoriza o dobrar de cada canto quando o cenário passa de aberto para corredores apertados. Ninguém grita “Booooo” e ninguém precisava de o fazer.

The Music Machine tem várias falhas, como a exploração ocasionalmente inócua, puzzles tão simples que é um esforço apelidá-los de tal, uma cadência que oscila, porém, quando acerta, especialmente na segunda metade, é capaz de proporcionar alguns momentos interessantes. Os dois fios narrativos acabam por motivar o avanço e o estilo gráfico torna-se assinatura. Haley e Quintin têm química e a escrita, ainda que proporcionando frases como “diz à voz para se ir masturbar com um ralador de queijo”, é suficiente para nos perceber onde estamos e o que se está a passar à nossa volta.

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