Com ou sem troika, os cristãos mantêm a “esperança”

Para o bispo do Porto “urge dizer com clareza” quais os sacrifícios pedidos e “as razões e critérios com que o fazem”. O patriarca de Lisboa entende que as “instâncias internacionais nos reconheceram menos do que deviam”.

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D. Manuel Clemente: “A esperança com que saímos do ‘programa de assistência’ sobrevém da nossa capacidade de resistir e inovar” José Sarmento Matos
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O novo bispo do Porto, D. António Francisco dos Santos Ricardo Castelo/NFactos

Quando se aproxima o fim do programa de assistência financeira, como olha a hierarquia da Igreja Católica para o país? E, numa sociedade cada vez mais secularizada, o que representa para os cristãos a Páscoa?

Ângelo Conde, 40 anos, e Goreti Sá Conde, 42, são católicos. Vivem a semana da Páscoa de forma intensa. Moram em Espinho e casaram-se há quatro meses, já estavam desempregados. Garantem que não sentem desânimo, pelo contrário, é a fé, que vem de fides e significa confiança, que os faz andar para a frente. Foi isso que levou Ângelo Conde a bater à porta da Universidade de Aveiro para apresentar um projecto, é isso que faz Goreti Sá Conde acreditar que, não tarda nada, vai criar o próprio emprego.

Para os cristãos, a Páscoa – que etimologicamente, esclarece o teólogo Anselmo Borges, quer dizer “libertação, passagem da opressão à liberdade, da morte à vida” - é o ponto alto de uma mensagem de esperança, de renovação. Para o casal de Espinho, essa mensagem existe, porém, todo o ano, independentemente de se aproximar o fim do programa de assistência financeira a Portugal, independentemente da crise, de terem 40 anos e de estarem os dois desempregados, ele licenciado em Novas Tecnologias da Comunicação, ela em Gestão e Contabilidade.

A socióloga e investigadora da Universidade do Porto, Helena Vilaça, explica que para os cristãos a Páscoa é “sempre uma altura de esperança”, de “renovação da esperança: “Tem a ver com a génese do próprio cristianismo”, diz, ressalvando, porém, que esse sentimento é independente das circunstâncias. Para muitos cristãos a ressurreição significa “uma regeneração e um nascer de novo já neste mundo e não apenas depois da morte”: “É uma atitude que é aplicada à vida prática todos os dias.”

Ângelo Conde confirma que tem uma tradução no quotidiano, que lhe dá “mais força para mudar” a sua condição, como o facto de estar desempregado desde Abril de 2013. Foi isso que o levou a bater à porta da Universidade de Aveiro para apresentar um projecto que, não sendo só seu, pretende estudar o uso das tecnologias para reeducar a inteligência emocional. O objectivo é desenvolver um produto comercial.

Goreti Sá Conde quer criar o próprio emprego: “Quero criar uma resposta de ajuda aos idosos, aos que se sentem mais abandonados. Estou a fazer um curso de formação profissional de agente de geriatria, são 1157 horas, 882 das quais em contexto de trabalho. Estou confiante que esse estágio que vou iniciar em Junho vai ser a rampa de lançamento do meu emprego.” É um ânimo que sente todo o ano: “Com Páscoa, sem Páscoa, com troika, sem troika, mantenho sempre essa esperança, essa confiança”.

Nova fase
Ainda assim, o olhar sobre o país não deverá passar ao lado de algumas cerimónias religiosas que terão lugar neste domingo. O fim do programa de assistência financeira marcará uma nova fase? “A esperança com que saímos do ‘programa de assistência’ sobrevém da nossa capacidade de resistir e inovar, apesar de tudo. Apesar de termos ‘assistido’, com escassa informação e esclarecimento, à actuação de instâncias internacionais que nos reconheceram menos do que deviam, sobretudo aos mais pobres e frágeis”, diz por email o patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente.

Na homilia deste domingo, de forma mais directa ou subtil, o patriarca deverá aflorar alguns destes temas: “Interrogar-me-ei decerto e no plural sobre se, depois de termos acompanhado na paixão de Cristo o destino de todos os injustiçados, ficámos mais comprometidos num rumo de solidariedade e entrega, que triunfa sobre a própria morte - todos os tipos de ‘morte’”.

Apesar de reconhecer que o fim do programa marca “de algum modo” uma fase nova, o professor da Universidade de Coimbra, Anselmo Borges, alerta para a continuidade das questões sociais que marcam a vida portuguesa: “Não haja ilusões, continuará a austeridade, a contenção e o empobrecimento.”

Mesmo esperando que esta Páscoa reavive “a esperança em dias melhores”, o bispo do Porto, D. António Francisco dos Santos, defende que o Estado e os governantes “têm deveres a cumprir em várias frentes de missão, bem mais delicados e complexos nestes tempos de particular dificuldade, sobretudo para os mais pobres”: “Urge dizer com clareza os sacrifícios que a todos pedem e as razões e critérios com que o fazem.” Para este bispo, “a solução para a crise social” decide-se a “vários níveis”, mas nunca pode dispensar, entre outros aspectos, “uma cultura de co-responsabilidade”.

Questionado sobre o desempenho do Estado no atenuar das dificuldades provocadas pela crise e sobre a capacidade de resposta da Igreja Católica, quando se fala em transferir mais competências para as instituições particulares de solidariedade social e misericórdias, D. Manuel Clemente responde que “o Estado somos nós todos, politicamente organizados e tendo em vista o bem comum - é a expressão política da solidariedade”: “Mas a subsidiariedade, por seu lado, levará o Estado, administração, a apoiar tudo o que os diversos componentes da sociedade, corpos intermédios, das famílias às várias instituições, podem e devem fazer por si mesmos, com vizinhança e motivação espontâneas e reforçadas. Aí se incluem, entre outros, os organismos socio-caritativos da Igreja Católica, que nestes anos têm demonstrado uma notável capacidade de resposta.”

Relação com o poder
Helena Vilaça considera que “há uma relação pacífica e, sempre que necessário, de negociação” entre a Igreja Católica e o poder político, algo que foi sendo construído “a partir do 25 de Abril, em contraste com o clima de hostilidade entre Estado e Igreja da 1ª República”. Como “a Igreja Católica gere imensas instituições de solidariedade social, o Estado também precisa” dela: “O Estado não consegue dar resposta a todos os problemas.”

Para a investigadora, durante a crise, “em termos institucionais”, a Igreja Católica tem sido “bastante solidária”: “Parece-me que accionou as instituições de solidariedade social”, diz, acrescentando que também as declarações de figuras de topo da hierarquia foram “reveladoras de uma grande preocupação com as condições sociais das pessoas mais pobres”.

Helena Vilaça ressalva, no entanto, que a Igreja Católica e outras igrejas cristãs não são organizações não-governamentais: “O religioso não passa apenas por questões de solidariedade social. Isso significaria que se a religião, e nomeadamente o cristianismo, estivesse apenas confinada à justiça social, à solidariedade social e às questões de natureza socioeconómica, numa sociedade extremamente igualitária, deixaria de existir religião.”

Admite que há uma “representação social correcta” sobre o facto de o cristianismo ter “por vocação fazer bem ao próximo”, mas não se reduz a isso: “As pessoas, secularizadas ou cristãs, têm essa perspectiva, de que passa por fazer bem ao próximo, ajudar os mais pobres. É interessante que, independentemente de acreditarem ou não, tenham quase essa exigência”, nota. Reconhece que não são só as pessoas em geral que olham para a Igreja Católica e outras igrejas cristãs como “organizações não-governamentais”: “Em parte, elas mesmas interiorizaram o discurso secular e reforçam esse tipo de ideia”.

Em relação ao papel que teve durante a crise e do ponto de vista da solidariedade social, também Anselmo Borges considera que a Igreja Católica tem sido “exemplar”: “Tem havido imensas iniciativas eficazes de solidariedade. Mas nunca se esqueça o que é devido por justiça”, alerta, considerando “absolutamente intolerável” que “haja milhares de crianças com fome”. “Isso tem de envergonhar os portugueses e o Estado português”, diz.

Para o professor de Coimbra, a relação da Igreja Católica com o poder tem sido, devido à “delicadeza da situação” em termos político-económicos e no contexto europeu, “mais de conivência” do que combativa.

D. Ferreira Gomes
Recorda a voz polémica e incómoda de D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto que chegou a viver 10 anos exilado durante o Estado Novo e morreu a 13 de Abril de 1989, há cerca de 25 anos. “Estou convicto de que, se ele fosse vivo, o país não teria chegado aonde chegou”, diz o teólogo que o conheceu bem. “Foi um bispo destemido”, recorda, sublinhando que o seu lema era “de joelhos diante de Deus, de pé diante dos homens”. Lembra que, “em todas as circunstâncias”, manteve “uma voz lúcida, crítica e livre”: “Ele foi exemplo superior do que eu chamo a voz político-moral da Igreja”. Não tem dúvidas: “Essa sua liberdade e combatividade fazem falta hoje.”

Também o actual bispo do Porto destaca, entre outros aspectos, “a lucidez da coragem” de D. António Ferreira Gomes. O patriarca de Lisboa recorda igualmente que, em 1958, D. António Ferreira Gomes denunciou “com grande frontalidade e saber o enviesamento estatal dos princípios corporativistas, que não permitia nem a liberdade sindical nem o que hoje chamamos concertação social, entre empresários, os outros trabalhadores e o Estado”. E também “questionou a falta de liberdade política, que impedia a constituição de partidos fora da União Nacional e, assim, a vida democrática activa e pluralista”.

Apesar de ressalvar que hoje em dia “a democracia política” está “felizmente instalada”, o patriarca defende que não só esta “deve ser reforçada pela participação de todos”, como a concertação social “deve ser um exercício permanente de conjugação solidária dos legítimos interesses das partes”.

Para cumprir o seu papel, a Igreja Católica precisa, defende o padre Anselmo Borges, de “estar acima de interesses, lóbis e partidos”: “Exige-se que a Universidade Católica no ensino e investigação em questões de finanças, economia e gestão se aproxime mais da doutrina social da igreja”, defende. Há algum “abandono da religião”, um “certo materialismo de vida”, sobretudo um maior “afastamento da igreja oficial, institucional e da sua doutrina”: “Em parte por causa dos escândalos na Igreja e, por outro lado, devido a mais consciência da autonomia individual”, explica.

Apesar de, quando comparada com outros países europeus, a sociedade portuguesa ser, ao lado de Itália, Polónia e Irlanda, uma das mais religiosas, está cada vez mais secularizada: “Mesmo entre cristãos, é normal escolher a altura da Páscoa para descansar, ir para fora, de férias. Um dos indicadores de que está mais secularizada é o facto de existir um jogo de futebol num domingo de Páscoa, bem como comércio aberto. Vivemos numa sociedade que, independentemente das questões religiosas, cada vez se rege mais por lógicas economicistas, de custo-benefício”, diz Helena Vilaça.

Mas que respostas podem ainda encontrar os portugueses, em particular na Igreja Católica? Anselmo Borges gostaria que pudessem encontrar “o que dela se espera: uma voz político-moral lúcida, iluminada e iluminante, a favor da justiça e da dignidade”.

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