O inferno era uma vivenda com roseiral

Foto
"Villa"/"Discurso" teve estreia num centro de tortura e extermínio pinochetista, o Londres 38

Depois de "Neva", o pequeno milagre à luz de um radiador que vimos há um ano na Gulbenkian, Guillermo Calderón está de volta ao Próximo Futuro. "Discurso" e "Villa" é o Chile ainda em carne viva que ele lamenta não poder salvar na vida real, e que por isso salva no teatro. Inês Nadais

Em Janeiro deste ano, quando Guillermo Calderón (n. 1971) estreou o seu novo díptico, "Villa"/"Discurso", no festival Santiago a Mil, o Chile ainda não tinha começado a exumar o cadáver de Salvador Allende (1908-1973) - mas na verdade já era aí, ao confronto de uma casa assombrada com os seus próprios fantasmas, que o dramaturgo e encenador chileno queria chegar com este espectáculo em que faz a contabilidade dos mortos e dos feridos da ditadura para concluir que ninguém saiu dali verdadeiramente vivo. Em Lisboa, onde se apresenta hoje, amanhã e depois na Sala Polivalente do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, a nova peça de Calderón é só teatro (mas o teatro nunca é só teatro, como Calderón tão prodigiosamente mostrou há um ano à luz de um radiador, também na Gulbenkian, com "Neva"); em Santiago do Chile (e também em Buenos Aires ou Montevideu, lugares sobre os quais a terrível história latino-americana das ditaduras militares, e o peso morto dos seus milhares de desaparecidos, se abateram com a mesma violência cataclísmica), foi um choque de realidade, uma interrupção brusca no tranquilo passeio neo-liberal em direcção ao futuro radioso para lembrar que ainda há demasiado passado por exumar.

O cadáver de Allende, o Presidente que perdeu a vida no golpe militar de 11 de Setembro de 1973 para ser substituído por um general de bigode, óculos escuros e as costas quentes de tantas palmadinhas norte-americanas, é um bom lugar para começar esse trabalho, diz Calderón, que no entanto não espera grande coisa da exumação. ? ?Sempre se disse que o Allende se suicidou por uma questão de honra, mas agora há quem diga que foi morto. Ninguém sabe muito bem o que pensar. Se se determinar que foi executado pelos militares, isso não mudará muito o curso da História: já sabemos que o Pinochet foi um assassino. E a verdade é que já nada parece importar: o Governo de direita quer que isto seja um assunto do passado. Mesmo que se descobrisse uma vala comum com centenas de corpos, ninguém se chocaria demasiado".

Ele, pessoalmente, continua demasiado chocado - e decidiu começar o trabalho que acha que tem de ser feito (enquanto houver desaparecidos por resgatar, mesmo que postumamente, e torturadores tranquilamente às compras no supermercado da esquina, e são às centenas) no número 38 da Calle Londres, um dos lugares mais sinistros da repressão pinochetista. Ali funcionou, entre Setembro de 1973 e Setembro de 1974, um centro de tortura e extermínio da ditadura militar onde 96 pessoas entraram para deixar tudo, até a pele. E ali, 37 anos depois, se estreou uma peça em que três actrizes (Francisca Lewin, Carla Romero e Macarena Zamudio) discutem o que fazer com a memória dos anos danados - e, em particular, com a memória física de outro desses centros, a ainda mais infame Villa Grimaldi (o inferno, só que com um roseiral).

Antes de chegar a "Villa", em certo sentido o antepassado comum de todos os chilenos, Calderón passou por Michelle Bachelet (n. 1951), a primeira mulher a assumir a Presidência da República no Chile - muitos anos (toda uma vida) depois de ter sido ela própria torturada, com a mãe, na Villa Grimaldi (o pai, o general Alberto Bachelet, morreu de paragem cardíaca numa prisão pinochetista). "Discurso", que escreveu numa residência em Londres, no Royal Court, em 2009, é justamente aquilo que gostava que ela tivesse dito no dia em que terminou o seu mandato. "É a minha ficção da despedida de Michelle Bachelet - uma homenagem e uma crítica dura, ao mesmo tempo. Encanta-me que tenha sido ela a primeira mulher a chegar à Presidência do Chile e admito que fez um bom trabalho. Mas também não esqueço que aplicou aos mapuches [os índios do Sul do Chile em luta pelo reconhecimento dos seus direitos territoriais] a legislação anti-terrorista produzida pelo regime de Pinochet, e que manteve o sistema económico neo-liberal imposto pela ditadura", diz ao Ípsilon. Em parte, esta história muito chilena também é uma história universal: "Michelle Bachelet fez aquilo que todos os presidentes fazem: concessões ao sistema. Hoje, já nenhum Governo socialista trabalha a partir da sua matriz fundadora".

Guillermo Calderón, lembramo-nos entretanto, é o rapaz que há um ano nos disse que "a transição para a democracia no Chile é um fracasso doloroso" - o que mais lhe dói, explica-nos agora, nem é a mão invisível que empurra todos os Governos para a economia de mercado como se não houvesse vida para além do capitalismo, mas "o falhanço das investigações acerca dos crimes de violação dos direitos humanos cometidos pela ditadura", esses militares que lavaram as mãos e puderam a continuar a ir ao supermercado enquanto na casa ao lado certos lugares à mesa nunca voltaram a ser ocupados. "Menos de dez por cento dos torturadores foram julgados - é um escândalo que nos dói a todos. Enquanto não tivermos feito essa reparação, não poderemos dizer com propriedade que vivemos em democracia", resume.

Michelle Bachelet não foi ao Londres 38 no dia da estreia de "Discurso" - nem ao Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, onde entretanto a peça de Calderón também já se apresentou. Mas a mãe e a melhor amiga da ex-presidente viram o espectáculo, e disseram a Calderón que Bachelet "se teria rido muito". Também houve sobreviventes que se emocionaram, sobretudo com a primeira parte, aquela onde se discute o que fazer com os diversos locais do crime espalhados pelo Chile. Um museu como o que Bachelet inaugurou no centro de Santiago? "Sim, um museu tem um peso simbólico, e isso é importantíssimo, porque dá força ao que se passou. O problema é que a mensagem subliminar do museu é: isto é o passado, vamos guardá-lo aqui. E enquanto isso, política e judicialmente, os culpados continuam por punir. Um museu é como uma amnistia histórica que prolonga a sensação de impunidade total, de verdadeira injustiça, que persiste no Chile".

O que ele gostaria que o Chile fizesse a estes lugares (enquanto não faz nada às pessoas que os tornaram inabitáveis) é isto: abri-los e deixar que cada um deles conte a sua própria história. "Alguns têm de ser horrorosos, outros têm de ser pedagógicos, outros podem até ser bonitos, como o Parque por la Paz que se construiu na Villa Grimaldi. Há muitas sensibilidades em relação ao passado. Eu, como não vivi pessoalmente a ditadura, preciso que sejam horrorosos, mas percebo que os sobreviventes queiram transformá-los em lugares onde se podem fazer piqueniques no Verão".

Enquanto estiverem fechados, o Chile continuará a ser uma casa assombrada em fuga para a frente. Os anos Pinochet, argumenta Calderón, estão em vias de "entrar na inconsciência" e transformar-se na memória vaga de um pesadelo colectivo. É por isso que, em "Villa"/"Discurso", ele não apaga as luzes: "Não quero que o público tenha a sensação de estar a entrar num mundo de sonho, nem sequer num teatro, mas apenas a de estar a entrar num edifício". As paredes deste país onde se morreu e onde se matou continuam de pé.

Ver agenda de espectáculos pág. 48

Sugerir correcção