Guitarras em Castelo

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João Carlos Silva

Tocou com os maiores do fado mas a sua linguagem na guitarra vai para além do fado. Custódio Castelo, que já deu voltas ao mundo mas vive no Ribatejo onde nasceu, fez a primeira guitarra de uma lata aos sete anos, tocou rock e até cantou em "portinglês". Isto antes de, numa noite, se apaixonar pelo instrumento que lhe deu volta à vida: a guitarra portuguesa. Vai estrear novo disco dia 22 de Dezembro, na Casa da Música

Toca guitarra portuguesa com a exuberância de um músico de rock. E já tocou rock. É um dos grandes guitarristas no universo do fado. E já detestou fado. Aos 45 anos (fará 46 a 23 de Dezembro), Custódio Castelo já conheceu grandes salas de espectáculo do mundo e acompanhou grandes vozes: Cristina Branco, Ana Moura, Mísia, Mafalda Arnauth, Mariza, mas antes delas também Amália, Fernando Maurício, Vicente da Câmara, Fernando Farinha, Manuel de Almeida. E trabalhou com músicos de relevo noutras áreas, como Olga Prats ou Carmen Linares. Tem uma história de vida que desemboca agora num disco, o seu segundo, InVentus, a estrear ao vivo na Casa da Música, no Porto, a 22 de Dezembro, véspera do seu aniversário. Um disco onde pela primeira vez, com calma, se expressa como gostaria de ter feito em Tempus, de 2004. O porquê de tudo isto? Recuemos, com ele, algumas décadas...

Nascido em Almeirim, em 1966, foi aos sete anos que Custódio fez o seu primeiro instrumento. "Era uma lata de óleo dos tractores, de cinco litros. Fiz-lhe um buraco e colei-lhe uma placa de platex com uns grampos de arame. No fundo tinha um bocadinho de um barrote a fazer de atadilho, com uns pregos com a ponta de fora para prender as cordas." Só o pai não achou graça. "Levei um bofetão do meu pai porque, para fazer de cordas, fui roubar os fios da cana de pesca dele." Da lata feita guitarra passou, aos 13 anos, a uma guitarra a sério. "Começo por tocar viola acústica, depois mudo para a viola eléctrica. Em grupos de baile. Nos Focos do Ritmo, por exemplo, que eram de Coruche. Ou no Jerónimo+2. Tocava guitarra ritmo e depois passei a fazer solos e a cantar, em inglês e "portinglês", que aprendia dos discos. Tinha 15 anos, nessa altura. As pessoas dos agrupamentos iam pedir autorização aos meus pais para me ia buscar e comprometiam-se a ir entregar-me às duas da manhã." O fado é que não o atraía, de todo. "O som que eu ouvia nos discos ainda não me dizia nada. Porque eu não gostava de fado." Até uma noite, em que o levaram a uma certa casa...

"Estava a tocar, a fazer entretenimento com o grupo num sítio que já não existe, o hotel Estoril Sol, e nesse dia o teclista fazia anos. Nós acabávamos pelas onze da noite e ele resolveu convidar-nos para festejar com ele. Mas avisou-nos que o único sítio aberto para jantar àquela hora era uma casa de fados: o Forte D. Rodrigo." Foram. A certa altura, a luz apagou-se e Custódio Castelo teve uma estranha epifania. "Pela primeira vez vejo e ouço uma guitarra portuguesa ao vivo, a um metro de distância de mim. O guitarrista era o senhor José Luís Nobre Costa e a esse homem eu agradeço o facto de me apaixonar pela guitarra. Ouvi o Manuel de Almeida cantar enquanto aquele instrumento me entrava na alma de uma maneira que eu não sabia descrever."

Ficou verdadeiramente apanhado pela guitarra. Foi, recorda hoje, "amor à primeira vista". A tal ponto que, na segunda-feira seguinte (ele estudava na escola Giestal Machado, em Santarém), foi direito a uma chapelaria onde tinha visto uma guitarra portuguesa na montra. "Disse ao lojista que queria comprar a guitarra e ele disse-me que não ma podia vender porque estava a decorar a montra. Eu insisti: "Mas ó amigo, eu preciso da guitarra..." Passei a ir lá todos os dias e tanto lá fui, tanto insisti, que ele acabou por ma vender por 10.500 escudos." A guitarra tinha sido feita por um construtor chamado José Mira Miranda, de Bragança. "Depois de a comprar, o que é que eu faço? Electrifico-a. Agora imaginem-me a tocar Deep Purple com uma guitarra portuguesa electrificada... Era uma coisa tenebrosa porque os harmónicos eram muitos, doze cordas a vibrar com distorção. Só sei que era um sucesso, de cada vez que eu dava um acorde!" Custódio, que ainda não sabia nada daquelas guitarras, afinou-a como se fosse uma viola. Pagou cara a ousadia. "Certo dia, estava eu a tocar num espectáculo de variedades onde havia baile e fado (na altura eu era alto, muito magrinho e tinha cabelo comprido com um rabo de cavalo em carapinha), fui mandado chamar por um senhor que assistia. Quando cheguei ao pé dele chamou-me todos os nomes. O mais suave foi "assassino". Acho que só não me bateu porque me deve ter achado muito alto. Porquê? Porque eu estava a assassinar aquele instrumento. Eu pedi-lhe para ele não se ir embora e para me ensinar o que devia fazer porque só tinha comprado a guitarra há um mês, não sabia como se fazia, etc. Ele lá barafustou, ralhou, ralhou, mas afinou-me a guitarra como uma guitarra portuguesa. E depois, já com mais calma, pediu-me: "Não faça mais isso." Senti-me tão mal que fui à procura de quem me ensinasse. Perguntei ao meu pai e ele disse que só conhecia um barbeiro em Almeirim que tocava guitarra. E eu lá fui. "Aqui é que é o mestre Leonel? É que eu queria aprender a tocar guitarra portuguesa..." "Com esse cabelo? Não é aqui, deve estar enganado!" Depois acedeu: "Eu ensino-o a tocar, tem é de cortar o cabelo!""

Hesitante, Custódio lá lhe disse que queria mesmo aprender guitarra, mas já sabia tocar viola. Se ele tivesse uma ali mostrava-lhe. "Quando ele me passa a viola para as mãos e eu comecei a tocar umas notas do Concerto de Aranjuez, ele ficou embasbacado a olhar para mim (eu era um puto, o que ele ouvia não condizia nada com a minha imagem) e disse: "Engraçado, olhe que eu sempre ouvi isso e nunca o soube tocar"." A partir dali, diz Custódio, o barbeiro levou-o a sério. Contou-lhe o que sabia e o que não sabia, disse-lhe que a guitarra portuguesa se tocava com dois dedos e com duas unhas e pô-lo a aprender o fado corrido, o fado das horas, o fado Mouraria e o fado Lopes. "Ensinou-me essa base, andei lá duas semanas. Foi a única coisa que me explicaram de guitarra. Até hoje."

Porque tudo o que ele tocava nos agrupamentos musicais era tirado de ouvido. Foi já depois de começar a tocar guitarra que resolveu aprender. "A minha iniciação foi na Banda Marcial de Coruche e o meu primeiro instrumento foi trompete. Aprendi solfejo pelo livro do Freitas Gazul. Depois passei a ter aulas e desenvolvi a composição, porque sou fã das polifonias, da Córsega, dos cantos alentejanos..." (À data desta entrevista estava de partida para a Sardenha, onde ia cruzar a guitarra portuguesa com vozes de pastores).

Depois tornou-se músico profissional e começou a ser pago. "O meu primeiro cachet foram 250 escudos, sem recibo!" Em 1997 encontrou na Holanda um trampolim para o mundo. Ali trabalhou musicalmente com a cantora Cristina Branco, com quem foi casado ("foi o meu projecto de vida durante oito anos"), e gravou, no ano 2000, O Descobridor, disco dedicado integralmente à obra do poeta holandês Jan Jacob Slauerhoff. "Nesse disco fui compositor, produtor, executante, arranjador, essas coisas todas. E muito me honra ter trazido para Portugal um disco de platina e três de ouro." O disco, recorda Custódio, esteve no top dos melhores compositores da música clássica na Holanda e "passou a ser obrigatório" estudá-lo nas escolas.

Mas quem trouxe Custódio de Almeirim para Lisboa foi Jorge Fernando. "Eu estava a combinar um disco no Entroncamento e o Jorge foi chamado para supervisioná-lo. Passados uns dias ele diz-me que na segunda-feira eu tinha de me apresentar nos estúdios da Valentim de Carvalho, em Paço d"Arcos, para gravar! O susto que apanhei..." Desde aí, Jorge Fernando ficou uma espécie de "parceiro de carteira" de Custódio. "Já lá vão 26 anos. Faz parte dos meus trabalhos como eu faço dos dele."

Mas em Lisboa o caminho para Custódio não foi fácil. "Nessa altura eu não conhecia os fados tradicionais. A pessoa que me acolheu, depois do Jorge Fernando, foi o Vicente da Câmara. Disse-me: "Eh rapaz, nós os dois a tocarmos guitarra nem precisamos de viola"." O desconhecimento acabou por ajudá-lo. "Devido à minha dificuldade nas fórmulas tradicionais, eu ia criando novas introduções e abordagens baseado naquelas harmonias e melodias." Por isso, quando o fadista Fernando Maurício lhe pediu para tocar com ele, foi o próprio cantor que o encorajou a seguir novos caminhos. "Eu estava a tentar ser tradicionalista, para o acompanhar, mas ele disse-me: "Não toque assim, toque como você toca." Aliás, foi só depois de gravar com o Fernando Maurício que em Lisboa me passaram a respeitar. Até me tinham posto a alcunha de estraga-fados!"

Em 2004 teve um acidente terrível. "Fiz um desporto violentíssimo, luta greco-romana, durante sete anos. Um dia, num estúpido erro, rompi os ligamentos. Fizeram-me infiltrações de cortisona, engordei 15 quilos e gravei o Tempus [o seu primeiro disco a solo] quase como uma despedida. Porque corri 11 médicos especialistas e nenhum garantiu que eu pudesse continuar a tocar." Até que um médico que conheceu por via de um amigo lhe disse que o punha a tocar mas tinha que o operar de imediato. Problema: uma tournée no Japão, inadiável, três dias depois. O médico deixou-o ir e marcou a operação para o regresso. "Neste meio tempo, vejo-me na despedida da guitarra. E gravo o disco numa grande tensão, antes de ser operado. Porque não sabia se voltava a tocar." Disse aos músicos: "Vou ser operado amanhã e quero toda a gente em estúdio." E Tempus foi gravado em tempo recorde, tendo apenas na edição mais recente uma faixa adicional que já tinha sido gravada antes, em 1997, no Cemitério do Ingleses.

Agora InVentus, o novo disco, recupera aquilo que Custódio gostaria de ter feito no primeiro disco. Envolveu nele uma dúzia de músicos, como o veteraníssimo baixista Joel Pina ("o deus do balanço", diz Custódio), a violinista russa Iamina Kmelik (da Orquestra da Casa da Música do Porto), o cabo-verdiano Vaiss (cavaquinho), o francês Richard Galliano (acordeão), Pedro Ladeira (clarinete e flautas), Jorge Fernando, Carlos Garcia, José Elmiro Nunes, Alexandre Silva (todos na guitarra clássica), Miguel Carvalhinho (guitarra de 10 cordas), Carlos Menezes (contrabaixo e baixo eléctrico) e José Manuel Neto, outro dos grandes nomes da guitarra portuguesa. Tinha o disco todo gravado com uma guitarra que ele usa, sem fundo (tem só uma pequena caixa acústica em fibra de carbono), quando o luthier Óscar Cardoso lhe mostrou outra guitarra (que depois veio a estar na capa do disco e na capa do booklet) e lhe disse: experimenta com esta. "O corpo desta guitarra é todo feito de um único tronco de madeira, escavado, e leva o tampo por cima. Eram duas da manhã, em Almeirim, toquei e fiquei encantado. A tal ponto que fui para estúdio e regravei tudo." Só um tema é que ficou como estava antes: uma morna.

"InVentus, em português, significa "encontrado". Acho que é a palavra que eu usaria para me classificar, porque me vejo como um encantador de tristezas. É o que eu tenho feito ao longo da vida. Recebo-o do coração das pessoas e toco o que me vai na alma. Quando se está aberto a tocar um instrumento com a alma, não se pode ter restrições."

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