As velhas e as novas casas de José Régio

Em Vila do Conde há três casas contíguas ligadas à vida de José Régio: a casa onde ele nasceu, a casa onde ele viveu e morreu e a casa onde a sua obra perdura
num centro de estudos. Visita guiada pelo historiador João Marques, que foi amigo do autor d"A Velha Casa

a Da extensa bibliografia que constitui a obra monumental de José Régio (1901-1969), há um título que se destaca: A Velha Casa, uma ficção em cinco volumes (o primeiro é de 1945, o quinto é de 1966 e, quando morreu, o escritor trabalhava já num novo tomo) e que possui um indisfarçável tom autobiográfico.A Fotobiografia que Isabel Cadete Novais organizou sobre o escritor, poeta e dramaturgo de Vila do Conde contém uma fotografia de um velho solar em Azurara, localidade a sul do rio Ave, identificado como a casa que estaria na origem daquela suma romanesca. O próprio Régio, em entrevista à revista Mundo, em 1958, disse ter entrado um dia nesse solar, quando viu a porta aberta com a indicação de que estava para alugar, decidindo depois situar nele histórias da sua vida e do seu ambiente familiar.
"Aquilo parecia-me a casa de um capitão de navios. Eu passava muitas vezes por ali, e a casa entrava pelos meus olhos", respondeu Régio, noutra altura, ao seu amigo e historiador João Marques. Mas A Velha Casa é uma mistura das várias casas de família (dos pais, dos avós e da madrinha Libânia) com as outras que Régio habitara nas diferentes etapas da sua vida, como quando foi estudante em Coimbra ou professor em Portalegre - aqui viveu durante três décadas na Casa da Boavista, que haveria de ser adquirida pela câmara local e é actualmente a Casa-Museu José Régio.
Em Vila do Conde há três casas contíguas que guardam memórias da vida do fundador da Presença: aquela onde ele nasceu, hoje desabitada e pertencente ao seu irmão João Maria (o único sobrevivente dos cinco irmãos do escritor); a casa onde ele viveu e morreu; e a casa onde a sua obra perdura num centro de estudos que foi inaugurado em Maio.
O director do Centro de Estudos Regianos (CER) é João Marques, que começa por explicar ao P2 que a casa que agora acolhe o centro foi a habitação de Benilde, a criada da família de Régio - "mas não tem nada a ver com a figura da Benilde ou a Virgem-Mãe", nota, referindo-se a uma das obras mais conhecidas do escritor. "O Régio gostava muito do nome Benilde, por isso escolheu-o para a personagem da sua peça."
O CER existe desde há vários anos, tendo tido como sede a Casa das Rendas, onde ainda permanece guardado grande parte do espólio do escritor. O novo edifício, projectado pelo arquitecto Maia Gomes da câmara de Vila do Conde, entidade responsável pela gestão da Casa de José Régio, é agora a principal porta de entrada para uma visita ao mundo regiano. Contém livros, fotografias, um bem documentado painel biográfico e historiográfico e um pequeno auditório onde é exibido um vídeo sobre o escritor. Mas não tem ainda as condições necessárias ao acolhimento do espólio integral do autor d" As Encruzilhadas de Deus. "Tem pouco espaço e problemas de humidade. Não podemos guardar aqui material tão sensível como são os livros, as cartas, as revistas...", diz João Marques. A solução pode estar mesmo ali ao lado, se a câmara conseguir adquirir a casa do irmão João Maria, projecto que "está nos horizontes da autarquia", diz António Ponte, conservador da Casa de José Régio.
Restauro fiel ao original
Mas só se entra verdadeiramente no mundo regiano com a visita à casa em que o escritor viveu a infância, e que depois viria a herdar dos pais e a fazer dela a sua verdadeira habitação (em alternância com a de Portalegre). A casa pertenceu "à madrinha Libânia", uma figura dominante na família. "Herdeira do mano brasileiro, ela exercia sobre a família uma espécie de matriarcado. (...) E afinal talvez não fosse só o dinheiro (...) O seu feitio autoritário, austero e caprichoso atraía uma espécie de timorato respeito", disse dela Régio (Confissão dum Homem Religioso).
Ao entrar agora nesta casa para guiar a visita ao P2, vê-se que João Marques se sente transportado para o passado... e para a "presença" de Régio. "Tudo isto era assim desde o tempo dele", recorda o padre-historiador. A primeira sala exibe parte da sua colecção de pintura, com destaque para as grandes telas do seu irmão Júlio/Saúl Dias. Mas há também pinturas do próprio Régio e dos seus amigos Alvarez, Mário Eloy e Diogo de Macedo. "Foi o último compartimento da casa que ele deixou por preparar. Eram coisas muito valiosas para ele", acrescenta o cicerone.
O compartimento seguinte é o "Antro" - "era assim que nós lhe chamávamos", diz João Marques -, a antiga loja da lenha. É já uma antecipação do que vamos encontrar espalhado por todo o edifício: arte sacra, popular (a maioria) e erudita, como uma grande escultura de S. Pedro com a tiara de Papa, "certamente adquirido no Alentejo", e a sua colecção de almofarizes. "Ele trazia coisas de todo o lado, muitas delas resultavam de trocas que ele ia fazendo com antiquários de todo o lado". João Marques acrescenta que "o restauro da casa foi feito com muito cuidado", mostrando-se "fiel à sua traça original", como se pode ver pela disposição dos velhos móveis ou pela colocação da "explêndida colecção" de ex-votos (são quase três dezenas) dos séculos XVIII e XIX num dos corredores.
A casa mantém a mesma disposição do escritório ("não é que Régio gostasse muito de escrever aqui, ele escrevia principalmente no quarto", revela o historiador), da sala de jantar (que ele não utilizava muito, já que comia diariamente numa pensão) e, principalmente, do seu quarto: aí estão, na mesma posição, a cama "de bilros" do século XVII, o guarda-fatos (ainda com o seu roupão de seda) e o sofá onde ele morreu, na manhã de 22 de Dezembro de 1969, dois meses e meio após ter sofrido um enfarte do miocárdio.
Cristo e o povo
Aqui, João Marques chama a atenção para a litografia sobre a cabeceira da cama representando a morte de S. José. "Foi ele mesmo que quis que ela fosse colocada ali. No fundo, era a morte do homem justo - como ele, que também se chamava José", acrescenta, apontando também a cómoda e o santuário com uma figura de Cristo, igualmente a adornar o compartimento.
A religião foi, aliás, um tema recorrente, quase obsessivo, na vida e na obra de Régio. "Ele era um crente não praticante. Foi sempre um homem de inquietação, alguém que tinha dúvidas para as quais não encontrava respostas." Racionalista de formação e sensibilidade, o autor de Confissão dum Homem Religioso, recorda João Marques, via como inconciliável a natureza humana de Jesus Cristo com a divindade. "Régio tinha grande dificuldade em aceitar a divindade de Jesus", posição a que não teria sido estranha a influência do "suave e pérfido" escritor racionalista francês Ernest Renan, e em particular o seu livro Vida de Jesus, justifica Marques.
Como conciliar, então, estas dúvidas de Régio quanto ao princípio enformador do Cristianismo com a sua actividade, quase bulímica, de coleccionador de arte sacra? João Marques não tem nenhuma resposta clara. Lembra apenas que o apaixonavam, principalmente, "as expressões que o povo dava às representações de Cristo".
A profusão de objectos de arte sacra popular espalhados por toda a casa tem o seu momento de síntese no "Purgatório", nome que o próprio Régio deu à sala onde reuniu uma impressionante colecção de representações da devoção das Almas, "sempre com São Miguel em destaque", mas também com várias Pietás e figurações do Juízo Final.
A sala seguinte é a dos Jugos, que inclui também outras representações de arte popular rural, como os "bonecos" de Rosa Ramalho ou os ferros forjados alentejanos. "Era um outro mundo apaixonante para ele e para a sua sensibilidade. Era um homem religioso, que tinha uma atracção pela arte e pela iconografia", sintetiza João Marques.
Sai-se da Casa de José Régio passando pelo jardim, de que ele próprio gostava de cuidar, com a sua pequena gruta "ao gosto romântico", e também pelo mirante que sinaliza o termo da propriedade. Era ali que Régio se refugiava nos seus anos adolescentes e onde começou a escrever os seus primeiros poemas. João Marques diz que foi nessa "cela" ao ar livre que ele escreveu o romance Maria de Magdala e Jesus de Nazaré, que viria depois a destruir (conhece-se apenas um trecho, que o autor publicou numa revista de Coimbra, Tríptico, em 1924).
Uma visita à(s) casa(s) de José Régio em Vila do Conde não substitui, no entanto, uma viagem à sua Casa da Boavista, em Portalegre, onde está depositada a parte mais relevante da sua colecção de arte sacra, e em particular o núcleo dos Cristos que sempre apaixonaram a sua vida - e que foram tema recorrente não só da sua escrita como da sua actividade como pintor.

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