Afinal sabíamos muito pouco sobre Fernão de Magalhães

Um editor francês reuniu uma equipa e durante cinco anos estudou todas as fontes disponíveis sobre o navegador português que, ao serviço de Espanha, lançou a primeira viagem de circum-navegação. "Magalhães é a figura mais fascinante dos Descobrimentos", diz Michel Chandeigne. Os arquivos portugueses sobre ele "estão por estudar" e ainda podem esclarecer muitos mistérios

a Basta uma busca rápida na Internet e lá está: o navegador português Fernão de Magalhães, o homem que lançou aquela que foi a primeira viagem marítima à volta do mundo, terá nascido na aldeia de Sabrosa, em Trás-os-Montes. Erro, diz Michel Chandeigne, editor e coordenador de uma obra em dois volumes (por enquanto com edição apenas em francês) sobre Magalhães. Erro, como tantos outros que se repetem em vários livros sobre o navegador, e que Chandeigne e a sua equipa tentam agora clarificar em Le Voyage de Magellan (1519-1522) - La relation d"Antonio Pigafetta & autres témoignages (Éditions Chandeigne com o apoio da Fundação Gulbenkian, 2007), apresentado esta semana no Instituto Franco-Português, em Lisboa. "É a primeira vez no mundo que se reúnem todas as fontes narrativas e cartográficas directas sobre a viagem de Magalhães", diz Chandeigne ao P2, visivelmente entusiasmado com o trabalho a que se dedicou nos últimos cinco anos. "Ao reunirmos estas fontes, apercebemo-nos de que havia muitos erros que se repetiam de livro para livro". Mas o que mais o surpreendeu foi o reduzido número de obras publicadas sobre Magalhães, que considera ser "a personagem mais fascinante da história dos Descobrimentos".
Este aparente desinteresse por Fernão de Magalhães pode explicar-se, segundo Chandeigne, pelo facto de "ele ser uma espécie de anti-herói, tanto em Portugal como em Espanha". Em Portugal "era visto como um traidor", por ter ido oferecer os seus serviços ao rei espanhol, e em Espanha era visto como um navegador que falhou, não tendo conseguido regressar da viagem pelo Ocidente até às Molucas, por mares não reservados aos portugueses no Tratado de Tordesilhas (morreu em combate com indígenas nas Filipinas).
Documento inédito
É por isso que a "bibliografia exaustiva" que Chandeigne e a sua equipa - o próprio Chandeigne assina como Xavier de Castro, e contou com o apoio, nomeadamente, de Carmen Bernand, Jocelyne Hamon e do historiador português Luís Filipe Thomaz - apresentam neste livro "tem umas 30 páginas, enquanto se fosse sobre Vasco da Gama teria umas 300 e sobre Cristóvão Colombo umas 600".
Isto mostra, diz o editor, "como Magalhães foi sempre tratado por amadores, com uma ou duas excepções". O seu primeiro biógrafo foi, em 1864, o chileno Barros Araña, e o primeiro que fez um trabalho sério de síntese dos arquivos foi José Toribio Medina, outro chileno, no final do século XIX, início do século XX. E se havia erros ou imprecisões nos trabalhos inicialmente feitos sobre o navegador, eles foram sendo repetidos por historiadores que em vez de regressarem às fontes originais, recorriam ao que já tinha sido escrito.
A história do nascimento em Sabrosa, por exemplo, parece ter origem num texto escrito por Ferdinand Denis num artigo de 1862 sobre Magalhães, e que é retomado depois por Barros Araña. Denis baseia-se em dois testamentos, um dos quais atribuído ao próprio Fernão de Magalhães e que foram, mais tarde, identificados como falsos.
Isto não impediu que muitos turistas passassem por Sabrosa para ver a casa natal do navegador, "uma quinta um pouco em ruínas, que foi baptizada como "Pereira" porque uma velha pedra de armas, com os brasões ausentes, e que veio a desaparecer, foi encontrada num canto", escreve Chandeigne no livro. Actualmente, no site do Concelho de Sabrosa pode ler-se que, apesar da naturalidade de Magalhães "ser um problema muito discutido [...] sabe-se que viveu na casa dos Pereiras em Sabrosa".
O autor francês admite que o navegador tenha nascido no Porto, mas não há nada que o prove, apesar de "no verdadeiro testamento de Magalhães haver muitas indicações de que estava ligado à cidade do Porto". Mas não é só o local de nascimento que permanece um mistério, sublinha Chandeigne. Não foram ainda encontrados documentos que permitam tirar conclusões definitivas sobre a data de nascimento ou sobre quem era o pai do navegador. E "sobre a juventude de Magalhães na corte de D. Leonor não sabemos nada".
Chandeigne admite, contudo, que muito se possa ainda vir a descobrir nos arquivos portugueses. "Encontrei na Biblioteca Nacional [de Portugal] um documento inédito sobre os irmãos de Magalhães, Diogo de Sousa e Duarte de Sousa de Magalhães, que nenhum historiador tinha visto. Se eu, francês, amador, descubro em pouco tempo um documento inédito, imagine o que fariam verdadeiros profissionais nos arquivos durante um ano".
Também José Manuel Garcia, que no ano passado lançou A Viagem de Fernão de Magalhães e os Portugueses (Presença), encontrou na Torre do Tombo um documento inédito com a assinatura de Magalhães, conta Chandeigne. Por isso, o francês não tem dúvidas: "Os arquivos portugueses sobre Magalhães não estão estudados".
Uma morte misteriosa
A tarefa não é fácil, reconhece. "Havia vários homónimos na época, e não se sabe se, quando é citado nos arquivos, estão a falar do navegador ou de outro, um primo, por exemplo". Confusão que alimenta mitos, como o de que Magalhães não teria morrido (o corpo nunca foi devolvido) nas Filipinas, mas teria sobrevivido e regressado clandestinamente a Portugal.
Entre as muitas ideias feitas sobre Magalhães está, por exemplo, a de que ele quis dar a volta ao mundo para provar que a Terra é redonda. "Erro. Toda a gente sabia que a Terra era redonda. Além disso, ele não queria dar a volta ao mundo, queria chegar às Molucas (ricas em especiarias) pelo Ocidente e regressar pela mesma via. Aliás, essas eram as ordens que tinha recebido do rei de Espanha".
No entanto, Magalhães não cumpriu as ordens, que, entre outras coisas, o proibiam de lutar com os indígenas. E aí entra-se em mais um mistério: as circunstâncias da morte do navegador, num combate desigual, 30 homens ao seu lado contra mil indígenas, nas Filipinas. "Quando ele chega às Filipinas, compreende que se enganou, que chegou a ilhas que estão já na zona do mundo sob domínio português". A equipa de Chandeigne coloca duas hipóteses: "Ou ele queria conquistar domínios para o rei e para ele antes de chegar às Molucas; ou então percebe que já falhou [na missão que assumira perante o rei], e vai-se bater 100 contra um com os indígenas". Se foi assim, tratou-se de uma espécie de suicídio, "um acto desesperado de um homem que não pode voltar à sua pátria porque é um traidor, não pode voltar a Espanha porque falhou, e já não sabe o que fazer".
Mas se o nascimento e a morte permanecem envoltos em mistério, a viagem de Magalhães é o período da sua vida melhor documentado - e mais ainda depois deste livro, que parte do relato de Antonio Pigafetta (a partir do cruzamento de três manuscritos conhecidos, dois em francês e um em italiano, que se completam e aparecem nesta edição interligados, com cores diferentes) e junta-lhe uma série de outros testemunhos da época, para além de vários mapas, entre os quais os primeiros que foram feitos das Molucas, e o mapa que Fernão de Magalhães fez antes de partir de Espanha e que, segundo Chandeigne, "mostra que ele tinha uma visão muito exacta das distâncias do mundo, e da dimensão do Pacífico".
Os sobreviventes
Cruzando as várias fontes, os autores do livro chegaram a algumas conclusões novas. Uma delas é a de que na travessia do Pacífico não morreram 19 homens (ao contrário do que dizia Pigafetta, no que poderá ser um erro de copista), mas apenas nove. "Reconstituímos os nomes dos marinheiros que partiram nos vários barcos, cruzámos com informações sobre as pensões aos sobreviventes e às viúvas e conseguimos determinar a data da morte ou do regresso de todos eles". O número de nove, a que chegaram, é surpreendentemente baixo, mas Chandeigne tem uma explicação para isso. "Houve muito poucos mortos porque eles consumiram aipo e fizeram conservas em vinagre, que preservam a vitamina C".
A investigação permitiu ainda concluir que, ao contrário do que habitualmente se diz, não houve 18 sobreviventes desta viagem de circum-navegação ao globo, mas sim 90. É verdade que o Victoria, o único dos cinco navios que conclui a volta, regressa a Sevilha apenas com 18 pessoas, mas há 12 prisioneiros que ficaram em Cabo Verde e voltam mais tarde. A estes somam-se cinco sobreviventes do Trinidad, o navio comandado por Magalhães, que sofreu várias peripécias, e que só voltaram cinco anos mais tarde. E, por fim, 55 que voltaram no San Antonio, que desertou no estreito na ponta da América do Sul.
Mas, mesmo conseguindo-se reconstituir todas as escalas que os navios fizeram, todos os produtos de farmácia que transportavam, todas as biografias de todos os marinheiros, há coisas que provavelmente nunca saberemos. Por exemplo, que tipo de homem era Fernão de Magalhães? "Sabe-se que coxeava, e que era pequeno e largo", diz Chandeigne. Do que pensou, do que sentiu, nada sabemos. A não ser que, segundo uma das fontes, terá ficado com lágrimas nos olhos quando confirmou que existia um estreito que permitia atingir as Molucas por Ocidente - o estreito que ficou conhecido como de Magalhães.

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