A pessoa certa, na altura certa, no avião certo

Não há milagres, há bons profissionais e conjugação de factores favoráveis. A história do acidente no rio Hudson e dos seus 155 sobreviventes conta-se a partir do currículo do capitão Charles Sullenberger, que parece ter treinado a vida inteira para uma situação assim

a Primeiro um estrondo, depois o cheiro a fumo, depois o aviso do comandante de que iam tentar aterrar de emergência. Telemóveis na mão, sms de despedida ou alerta. "O meu avião está a despenhar-se", escreveu a mãe de três filhos Vallie Collins, de 37 anos, ao marido. Ouvem-se orações. Um passageiro olha pela janela e vê fogo no motor esquerdo. O avião de 80 toneladas embate e desliza na água. Depois vieram segundos de calma. Alguns passageiros pensavam que tinham aterrado na pista do aeroporto. Segundos mais tarde, a traseira do aparelho enchia-se rapidamente da água escura e gélida. O cheiro a combustível impregnava o ar. Mulheres e crianças primeiro, numa evacuação descrita como "calma" pelos passageiros. Escassos minutos após a descolagem, o Airbus A320 da US Airways, com 150 passageiros e cinco tripulantes a bordo, estava no Hudson. Um grau na água, quase oito graus negativos de temperatura do ar.
"Devemos tudo ao piloto", disse o passageiro do voo 1549 Jeff Kolodjay. "Ele fez uma amaragem dos diabos."
Um acidente de aviação na região de Nova Iorque já não é recebido da mesma maneira no pós-11 de Setembro. Por isso mesmo, como escreveu Michael Daly no New York Daily News, quando chegaram as primeiras notícias, "só podíamos rezar e dizer 'por favor, outro horror não'". Sabendo-se do sucesso da amaragem e das zero vítimas mortais (o ferimento mais grave terá sido o de uma mulher, que partiu as pernas), bem como do salvamento que em minutos retirou os passageiros da água e das asas do avião, o jornal rapidamente baptizou o piloto como "o herói do Hudson".
A notícia tornou-se assunto de topo, roubando protagonismo ao Presidente que tomou posse pouco tempo antes dos atentados de 11 de Setembro e que ontem fez o seu último discurso na Casa Branca, horas depois do acidente no Hudson.
"Nunca ouvimos falar em situações desta natureza, em termos de dimensão - é um avião comercial com capacidade máxima ocupada - e com o êxito que teve", disse ao P2 Virgílio Belo, controlador aéreo há 30 anos e responsável pela análise e investigação de acidentes da NAV Portugal.
É "bastante raro, mas não inédito" dois motores ficarem inoperacionais devido à colisão de aves (bird strike), descreve Rory Kay, piloto e responsável pela segurança na Associação de Pilotos de Linhas Comerciais, o sindicato da classe profissional. Uma conjugação de factores favoráveis e muita experiência e sangue-frio contribuíram para o resultado final que alguns políticos descreveram como "um milagre".
Um dos factores que bafejaram as 155 pessoas anteontem salvas foi a actividade no rio Hudson. Tudo aconteceu perto das 15h30 locais (20h30 em Lisboa), altura em que os ferries de ambas as margens estavam a preparar-se para a hora de ponta, o que fez com que chegassem logo junto dos sobreviventes. E o rio, cujo tráfego é tão intenso quanto aquele que circula no ar na região, estava particularmente vazio. O que deu ao avião espaço para planar e cair na água sem embater em cargueiros ou barcaças.
Além disso, o rio estava calmo e, neste tipo de situação, "é a melhor área para amarar de emergência, porque a ondulação no mar seria como embater numa série de muros", como descreve ao P2 o comandante Cruz dos Santos, do gabinete de segurança de voo da Associação dos Pilotos Portugueses de Linha Aérea.
Mas o elemento activo mais importante no processo foi a tripulação, especialmente o co-piloto e o comandante do voo. O capitão Charles B. Sullenberger III tomou as decisões difíceis e ficou no avião enquanto este era evacuado. Verificou o interior da aeronave duas vezes, que se enchia cada vez mais de água. Foi o último a sair do aparelho.
A mulher, que soube do acidente com um telefonema do marido quando já todos estavam em terra, disse ao New York Times que ainda não tinha parado "de tremer". Até ao fecho desta edição, Sullenberger não prestou declarações aos media.
O experiente Sully
Chamam-lhe Sully, tem 57 anos e certificação para fazer voos planados, obtida fora do circuito da aviação comercial. Sullenberger tem 40 anos de experiência de voo. Formado na Academia Naval Americana, foi piloto de caças na Força Aérea dos EUA (pilotou F4 por sete anos, na década de 1970), foi instrutor e responsável pela segurança e investigação de acidentes na Associação de Pilotos de Linhas Comerciais, além de ter sido investigador de acidentes ao serviço das agências governamentais americanas. Está na US Airlines há 29 anos e também trabalhou com a NASA numa pesquisa sobre os contextos que levam ao erro na aviação.
Sullenberger foi um dos nomes essenciais na criação do curso de Gestão de Recursos para Tripulação, que deu junto de centenas dos seus colegas. O curso destina-se a preparar psicologicamente as tripulações para operarem em situações de crise. A nível académico, foi recentemente escolhido como professor convidado da Universidade da Califórnia, em Berkeley.
O governador do estado de Nova Iorque, David A. Patterson, e o presidente da câmara de Nova Iorque, Michael R. Bloomberg, bem como os comentadores americanos, falavam então na quinta-feira de um "milagre". Mas quem conhece o capitão Sullenberger ou o seu currículo prefere realçar a sua competência. E a sua experiência. Ele era o homem certo no sítio certo, já para não falar na altitude certa.
"A actuação da equipa foi óptima", descreveu ao P2 o comandante Cruz dos Santos. "As pessoas usam muito a palavra milagre, mas eu prefiro falar de um feito heróico. Se se pudesse escolher uma pessoa para estar naquela posição, era aquele piloto a pessoa mais habilitada para o fazer. Tem um percurso fenomenal e conseguiu, de forma exemplar, manter a integridade do avião e mantê-lo a boiar o tempo suficiente para as pessoas saírem." O avião consegue flutuar graças aos mecanismos que permitem controlar as portas e as válvulas de ventilação e pressurização da aeronave, que isolam a cabine, o porão e as asas, explica o comandante português.
"Quando um avião se prepara para cair com muitas pessoas [a bordo] que confiam em nós, é um teste", comentava à Associated Press Robert Bea, co-fundador do Centro de Gestão de Risco e Catástrofe da Universidade de Berkeley. "Ele tinha estudado isto, tinha ensaiado isto, tinha levado isto a peito. Vê-se a formação dele, vê-se a experiência dele. Era simplesmente o piloto certo, na altura certa, ao leme daquele avião que salvou tantas vidas", disse Candace Anderson, vizinha do comandante e membro do conselho municipal de Danville, onde reside o piloto. "Ele é um homem calmo, impassível, contido, tal como foi hoje [quinta-feira]", rematou, em declarações à Associated Press. "Se alguém conseguia fazê-lo, era ele", disse outro vizinho, Frank Salzmann, que reforçou a ideia de que o piloto é o tipo de homem que tem um plano para estas situações.
Pouco depois de ter levantado voo do aeroporto de La Guardia, ainda a sobrevoar o Bronx e a mil metros de altitude, um dos pilotos terá comunicado à torre de controlo de Nova Iorque que o avião tinha sofrido uma "dupla colisão de pássaros". Um bando de aves ter-se-á cruzado com o Airbus A320 e causado problemas nos motores, levando a que ambos perdessem força e eventualmente parassem. "Em todos os aeroportos do mundo há situações destas. As aeronaves sofrem o que chamamos 'bird strikes', colisões com aves, e daí advêm maiores ou menores dificuldades", explicou ao P2 Virgílio Belo. "Algumas vezes têm de rejeitar a descolagem, ou voltar para trás", prosseguiu, salvaguardando que qualquer teoria sobre o que causou os problemas do Airbus A320 é prematura antes de serem concluídas as investigações, mas referindo que os números destas colisões em Portugal estão dentro da média europeia.
Decisão de segundos
Há apenas dois minutos no ar e sem motores, as decisões tinham de ser rápidas e havia que descer. A pista mais próxima era o pequeno aeroporto de Teterboro, em New Jersey, à vista do cockpit e sugerida pelo controlador aéreo.
Mas nessa altura o piloto já tinha tomado a sua decisão. Sem força nos motores, era impensável voltar ao aeroporto. "Foi o último recurso. Não tinha hipótese de chegar a um aeroporto alternativo e ao fim de dois minutos já estaria a perder altitude ou velocidade", precisa Cruz dos Santos. "Iria acabar por embater em áreas residenciais." Estava entre Manhattan e New Jersey, onde habitam mais de dez milhões de pessoas.
Ia tentar pousar o avião no rio Hudson, junto a Manhattan, mais precisamente em linha com a Rua 48, do lado ocidental da ilha. A amaragem de um voo comercial deste tipo é uma opção que poucas vezes se concretiza, mas para a qual os pilotos treinam em simuladores. E que consta das instruções de segurança que ouvimos quando se prepara a descolagem. A amaragem num rio mais recente de que há memória nos EUA remonta a 1982, quando um jacto da Air Florida com 79 pessoas a bordo embateu numa ponte sobre o rio Potomac em Washington. Apenas cinco pessoas sobreviveram. Já em Portugal, o filho do oceanógrafo Jacques Cousteau morreu no Mar da Palha, em Lisboa, quando tentava amarar com o seu hidroavião. Perante uma situação destas, explicou o comandante Cruz dos Santos, há então que "diminuir a velocidade e o ângulo de contacto com a água para diminuir os estragos". Isso permitirá ao piloto parar mais depressa e reduzir a possibilidade de destruição do avião ao tocar na água que, a tais velocidades, "é como chão". Isso também permite "diminuir o traumatismo de desaceleração". "Nestas coisas, entra em campo a experiência e a capacidade técnica de agir em situações arriscadas", remata.
Fãs na Internet
Além de ser piloto de aviação comercial, Sullenberger tem uma empresa, a Safety Reliability Methods, que faz consultoria de segurança de aviação. A sua caixa de e-mail encheu-se, logo na quinta-feira, com mensagens de elogio e apoio. É que Sully é agora uma celebridade, off-line e on-line. No Facebook criou-se logo uma área de fãs de Sully Sullenberger, onde milhares de pessoas estão a agradecer-lhe pela mestria.
Nos sites de órgãos de informação, os comentários também reflectem a admiração pelo piloto. E no fórum PPRuNe os pilotos de todo o mundo não falam de outra coisa. O fórum é a Professional Pilots' Rumour Network (a rede de boatos dos pilotos profissionais) e reúne pilotos de todo o mundo a comentar novidades do sector, acidentes e casos.
O tópico dedicado ao acidente no Hudson começou com uma mera menção à notícia de que estava um avião da US Airways no rio. Ontem, já ia em centenas de entradas e mais de 200 mil visionamentos, além de um outro tópico começado por um piloto indignado com o facto de as honras irem todas para "o tipo no assento da esquerda", quando o seu co-piloto devia também ser honrado.
O co-piloto em causa é Jeff Skiles, de 49 anos, piloto da companhia há 23 anos. A sua mulher, Barbara, disse apenas à Associated Press que o marido "estava bem, aliviado com o facto de toda a gente ter saído" do avião sem problemas de maior. No PPRuNe, muitos forenses criticam também o uso lato do termo "herói". A palavra "herói, na minha opinião, é demasiado usada nos media hoje em dia", comentava o piloto que assina como 411A. "O comandante estava apenas a fazer o seu trabalho... nada mais, nem nada menos do que isso", mas "resultou tudo muito bem", admite.
Num fórum em que já se chamou aos passageiros "mercadoria que se autocarrega", os pilotos tentam perceber o que aconteceu - que tipo de condições meteorológicas, a força do vento, se os motores saltaram quando da amaragem de emergência, etc. Mas nas primeiras 24 horas após o acidente, o espírito dos posts dividia-se sobretudo entre o esmiuçar técnico e comentários como este: "Muito bem ao capitão Sullenberger, muito bem ao seu primeiro-oficial e ao seu pessoal de cabine! Estamos todos muito orgulhosos do vosso profissionalismo e de um resultado seguro para os vossos passageiros e tripulantes", como assinava, a partir de Hong Kong, o forense de seu nickname FlexibleResponse.

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