Campo Maior, 1944 - A operação secreta que abalou o Alentejo

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"O plano para a batida era, na sua essência, simples:

A polícia política de Salazar montou uma operação em 1944 para eliminar uma das muitas bolsas de refugiados espanhóis existentes na fronteira. A colaboração da Guardia Civil e a participação activa do exército português levaram à captura de mais de duas dezenas de homens cujo destino ainda se desconhece. Documentos inéditos até agora permitem finalmente reconstituir o que aconteceu.

No Alentejo, a noite de 13 de Novembro de 1944 foi muito fria. A estação meteorológica de Campo Maior registou uma mínima de 6,7ºC, que desceriam para os 4,5 graus na noite seguinte. Houve formação de geada mas, do mal o menos, não choveu e o vento que soprou de oeste foi fraco.

O frio, porém, não foi o pior dos elementos que se abateram sobre um território do concelho entre a vila de Campo Maior e as aldeias de Ouguela e Degolados, delimitado pela ribeira de Abrilongo e o rio Xévora e, a norte desses cursos de água, pela linha de fronteira com Espanha. Naquelas duas noites, uma invulgar actividade humana quebrou o silêncio dessas extensões planas e pregou valente susto aos poucos que, pela madrugada, atravessaram aquelas paragens para trabalhar no campo ou, quem sabe, trilhando rotas de contrabando.

Cerca de uma centena de militares, soldados da GNR e agentes da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE, polícia política do regime salazarista), concentraram-se nas noites de 13 e 14 de Novembro de 1944 em vários pontos, numa operação conjunta entre forças portuguesas e espanholas. Primeiro na Referta da Ouguela, a uma dezena de quilómetros de Campo Maior por estrada, e na noite seguinte nas Minas da Tinoca, no trajecto para Portalegre, com desvio pela aldeia de Degolados (sensivelmente à mesma distância de Campo Maior, mas para noroeste). A sua missão: cercar, deter e identificar refugiados espanhóis, considerados "perigosos salteadores e comunistas", que se sabia viverem na zona conhecida pela polícia política como "República de Andorra", um vasto triângulo de terra sem controlo efectivo das autoridades cujos vértices eram Campo Maior, Ouguela e Degolados.

O Regimento de Cavalaria 1 (Elvas) participou com um esquadrão misto, composto por 35 a 40 homens deslocados em três viaturas, chefiados pelo capitão Oliveira Soares e os alferes Nunes da Silva e Rodrigo Laranjeira. A força da GNR, comandada pelo capitão Freixo e pelo tenente Duarte (comandante da secção de Elvas), dispunha de 50 homens, 12 deles de cavalaria. A coordenação da operação estava a cargo do inspector da PVDE António Roquete (a quem foi atribuído o assassínio em 1942 do médico António Ferreira Soares, perto de Espinho), secundado por quatro agentes identificados apenas pelos respectivos apelidos - Barros, Mesquita, Casaca Velez e Lemos.

O envolvimento de militares do Exército surpreende Nuno Severiano Teixeira, professor universitário e co-director da Nova História Militar de Portugal (Círculo de Leitores, 2003): "Eram relativamente comuns operações de apoio logístico e policiais, e particularmente na zona de Elvas-Campo Maior, onde há povoações dos dois lados da fronteira. Mas nessa altura havia uma resistência efectiva do Exército em envolver-se em operações de carácter repressivo, e em particular com a polícia política."

Para impedir que os refugiados tentassem escapar ao cerco fugindo para Espanha, a Guardia Civil (206.ª Comandancia Rural) montou um dispositivo do outro lado da fronteira dispondo grupos de cinco homens em Zapatón, Reyerta, Aguzorra, Pajaza, Molino Risco de Ouguella, Barrosa, La Cierva, Malaque, entre Barrosa e Cierva e em frente ao monte de Alonso Telo (este em Portugal, fazendo fronteira). Juntou-se-lhe uma força composta por homens deslocados dos postos de Badajoz e dos bairros de San Roque e San Fernando. Ao todo, os efectivos espanhóis somavam 78 elementos.

Tudo foi feito no maior secretismo e hoje só sabemos o que aconteceu graças à disciplina e ao zelo de quem redigiu um detalhado relatório sobre a preparação e desenvolvimento da operação - não assinado, mas presumivelmente da autoria do inspector António Roquete -, que se encontra depositado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Arquivo Oliveira Salazar):

"Era necessário que os preparativos fossem conduzidos em segredo, que tudo se fizesse com o maior sigilo e que a actuação não demorasse após as primeiras trocas de impressões com os comandos. Para isso, também não devia haver troca de ofícios, telefonemas ou telegramas."

A operação começou a ser preparada a 9 de Novembro, dia em que Roquete obteve do comandante-geral da GNR, em Lisboa, credencial para o comandante do batalhão aquartelado em Évora, "mandando pôr à nossa ordem o máximo de infantaria e cavalaria sem prejuízo da ordem local". No dia seguinte, o mesmo agente desdobra-se em contactos com a GNR em Évora e Elvas. A 11 de Novembro, com as instruções entretanto recebidas do gabinete do ministro da Guerra, reúne-se por duas vezes com o comandante do Regimento de Cavalaria 1 (RC1, Elvas), coronel Coutinho de Castro, para preparar a operação, intercalando uma viagem a Portalegre para falar com o comandante da força local da GNR. Recorrendo a "conhecimentos do tempo da guerra civil", o inspector da PVDE viaja até Badajoz para falar com o comissário-chefe de polícia e com o chefe do Estado-Maior da Região, tenente-coronel Galea, certificando-se de que este contacta com o governador civil, de quem depende a Guardia Civil.

No dia 12 de Novembro, intensificam-se os contactos em Badajoz - "a rapidez com que eu desejava efectuar a diligência deixava assustadas as autoridades", comenta o homem da PVDE no seu relatório. António Roquete envia um "emissário amigo" à localidade espanhola de Albuquerque, a cerca de 30 quilómetros de Campo Maior. Ao fim da tarde, reúne-se com o governador militar de Badajoz e a partir daí "todas as dificuldades desapareceram". São "dadas as precisas ordens" e postas "até à minha disposição (se isso fosse necessário) viaturas, munições, etc", escreve.

Fica marcada uma reunião para as sete horas da manhã do dia seguinte no quartel da Guardia Civil em Badajoz com o tenente-coronel Navarrete e com o capitão Rafael Quintanilla (comandante da Guardia Civil em Albuquerque), na qual é definida a distribuição das forças espanholas no terreno sobre a fronteira portuguesa a partir das 6 horas do dia 14 de Novembro.

Combatentes vermelhos

Na primeira noite, os efectivos militares e militarizados foram deslocados para a Referta da Ouguela. Já passava das duas horas e meia do dia 14 quando o capitão Freixo chegou com os seus homens - uma avaria no camião de transporte causou um atraso superior a duas horas - ao "cruzamento das estradas de Campo Maior e Degolados". O frio era "intensíssimo", pelo que foi distribuída aguardente entre os soldados. Dali seguiram por "caminhos ásperos e duros" até ao regato dos Meloais, um afluente da ribeira de Abrilongo, onde chegam por volta das quatro horas da madrugada. Nova espera de mais de duas horas sob um frio glacial.

Às seis e meia da manhã começaram as movimentações. Ainda não tinha passado meia hora e já três dos "mais célebres bandidos" espanhóis da região (Talaverano, Pintor e Duro) tinham caído nas mãos da Guardia Civil. Os restantes refugiados tentaram romper o cerco atravessando a fronteira, mas foram detidos pelas forças espanholas. A lista completa é a seguinte: Benigno Lopez Hernandez, "O Talaverano"; Clemente Gil Carron; Raimundo Duro Bueno, "El Duro"; Juan Tomaz Sanchez; Augustin Corado Cabez; José Garcia Pajares; Joaquim Palmarin Pajuelo; Manuel Murcillo; Augustin Pulido Romero; Juan Pulido Rubiales; Vicente Rodriguez Hernandez; Joaquim Pereira Pires; José Donosa Romero; e Francisco Gimenez Garcia, aliás, José Herrera Matos, "El Pintor" ou "El Retratista".

Do lado português, as choças onde se abrigavam refugiados - algumas a escassos 200 metros da fronteira -, eram em maior número do que a PVDE calculava. Foram revistadas, tendo sido encontrados documentos e algum armamento ligeiro (duas pistolas, três revólveres e seis caçadeiras). Foi encontrado um português com ferimentos de faca no pescoço e ventre, alegadamente feitos por um espanhol durante uma discussão. Uma força deslocou-se a Ouguela onde se suspeitava que pudesse estar recolhido o autor da agressão. A povoação foi cercada e várias casas revistadas, mas não o encontraram.

Na noite de 14 para 15 de Novembro de 1944 realizou-se a batida na zona entre a ribeira de Abrilongo e a fronteira, com cerco às minas da Tinoca já no regresso a Campo Maior e Elvas. Eram seis horas da manhã quando os militares e os soldados da GNR seguiram pela estrada de Degolados. Bateram-se sistematicamente choças, palheiros e alguns casebres. Ao fugirem para Espanha foram detidos pela Guardia Civil Cipriano Camacho Cerezo (o "temido salteador e ex-combatente vermelho "Tortilla""), Manuel Hidalgo Rodriguez ("comunista convicto escapado da prisão de Badajoz") e Juan Rodriguez Iglésias (o "famigerado e temido "Pitones""). Pelas 11 horas da manhã os agentes da PVDE, oficiais espanhóis, comandante de Cavalaria 1 e alguns oficiais desta unidade reuniram-se "de novo em frente a La Barrosa" - o relatório não esclarece se foi em território português ou espanhol -, assistindo a "interrogatórios a algumas mulheres" trazidas das choças.

De tarde, no regresso a Degolados, é efectuada a batida nas Mina da Tinoca. A GNR já não participou nesta acção por se considerar desnecessária a sua presença. Foram detidos pela PVDE seis refugiados, um deles ferido sem gravidade numa nádega quando tentava fugir, assim identificados:

José Barahona Pacheco, ex-capitão do exército republicano; Juan de Sousa Tobal, soldado e "combatente vermelho"; Teleforo Tarrino Borrega, ex-elemento do exército republicano; José Fernandez Vasquez, combatente republicano e desertor da colónia penitenciária de Montijo (Badajoz); José Maria Garcia Matador; e Isidoro Joaquim Velez, ambos "combatentes vermelhos".

Ignora-se o que aconteceu a estes homens. As detenções não constam das ordens de serviço da polícia política portuguesa, onde se dá habitualmente conta das detenções, transferências e libertações de presos. A única referência encontrada diz respeito a Juan de Sousa Tobal (32 anos, casado, mineiro, natural de Castaño, Huelva), mas num processo de 1949, aberto depois de ser detido pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado, que sucedeu à PVDE) em 22 de Fevereiro desse ano por estar indocumentado. Tobal foi entregue às autoridades espanholas no posto de Elvas em 26 do mesmo mês. Quanto aos restantes refugiados, desconhece-se o seu destino e o mesmo é válido para os que foram detidos directamente pela Guardia Civil.

António Roquete avalia a operação efectuada como "relativamente pequena em relação ao que consta existir ao longo da fronteira desde Marvão a Vila Real de Santo António". Uma carta enviada em 7 de Junho de 1943 ao director da PVDE pelo governador civil substituto de Portalegre assim o confirma: "O presidente da Câmara Municipal de Campo Maior acaba de informar este Governo Civil de que na área do seu concelho se encontram refugiados espanhóis, autores de assaltos à mão armada no seu país. Esses refugiados andam também armados e aparecem de quando em quando, tendo sido, por vezes, perseguidos pela PSP, que ainda há pouco conseguiu apreender-lhes uma pistola que foi entregue à polícia da digna direcção de V. Exa."

Espanhóis na madrugada

A PVDE tinha conhecimento de "roubos e assaltos" em toda a raia. "Ao sul de Campo Maior desaparece o gado, rouba-se, etc. Ao norte - Arronches, Esperança, S. Julião, etc. - há também notícias da existência de vários núcleos de bandidos", diz Roquete. Fala de uma "fronteira fácil, ao longo da qual existiam muitos indocumentados espanhóis". E acrescenta que esta realidade era do conhecimento da Guarda Fiscal (GF), sugerindo-se que há passividade ou mesmo confraternização dos seus agentes com os "bandidos": "Há muito que há indocumentados em Campo Maior e se a GF não os queria prender podia, pelo menos, dar conhecimento superior da sua existência."

Um relatório da Guardia Civil de Badajoz, com data de Novembro de 1944, anexado ao documento da PVDE, aborda os numerosos assaltos feitos na zona de Albuquerque por "indivíduos de nacionalidade espanhola que residem em Portugal, todos eles de ideias extremistas". Nele se refere que "têm bons apoios em toda a região, pois são naturais e vizinhos destas povoações, tendo alguns fugido para Portugal por receio de serem presos". O número estimado de refugiados numa linha que vai de Arronches a Campo Maior e Elvas é de 200, dos quais centena e meia "estão inactivos": "Encontram-se a trabalhar sem que se conheçam as suas actividades; os restantes são os que se encontram nas proximidades da zona fronteiriça, sendo cerca de 20 os de acção mais directa e que podem considerar-se mais perigosos."

O autor do relatório da PVDE distingue entre o que é considerada mera actividade criminosa ("os furtos e roubos, embora para lamentar, não constituem o maior perigo") e a acção de uma estrutura montada com objectivos políticos. "A organização de que esses bandidos fazem parte é muito mais perigosa", escreve Roquete. Prisões efectuadas em Lisboa e arredores, averiguações realizadas e informações recolhidas por aquela polícia apontariam, segundo o mesmo polícia, para a existência de um "esquema" organizativo com ligações internas, nomeadamente, à representação diplomática do México em Lisboa.

Rui Rosado Vieira tinha sete ou oito anos e lembra-se muito bem de ver homens, mulheres e crianças atados uns aos outros nas ruas de Campo Maior. "Eram espanhóis que depois foram levados de madrugada para ser entregues em Espanha", diz. É pouco provável que as pessoas vistas naquele dia por este professor de História reformado tenham sido os refugiados detidos nas Minas da Tinoca. Mas contribuíram involuntariamente para o seu interesse, desde muito novo, pela história da vila onde nasceu em 1937. "Eu sempre gostei de ouvir as coisas que se contavam da terra. Campo Maior está numa das zonas onde a guerra civil espanhola mais se sentiu, porque o Caia e o Xévora são rios secos e não há montanhas por aqui", acrescenta.

Vieira partiu aos 20 anos para estudar em Lisboa, mas regressaria mais tarde para dar aulas em Portalegre, Sousel e Campo Maior. Ouviu histórias nos 30 anos seguintes: "Os velhotes iam contando e comecei a gravar conversas sobre a memória da guerra na região. Noventa por cento do que escrevi foi a partir desses testemunhos."

Um desses escritos saiu na Revista Alentejo (número de Novembro-Dezembro de 1999), editada pela Casa do Alentejo em Lisboa. Reproduz um artigo publicado pouco antes na revista O Pelourinho (Badajoz) onde Rosado Vieira falava dos "sinais da guerra civil espanhola em Campo Maior" e se referia às batidas das autoridades policiais portuguesas na zona. É da sua autoria a primeira referência a "uma operação repressiva de grande envergadura executada no ano de 1945, abatendo uns [refugiados] e prendendo outros", que "vai acabar de vez com a presença de republicanos espanhóis na Referta".

Luís Cunha, professor da Universidade do Minho, também se refere a essa realidade na sua tese de doutoramento em antropologia. Para o trabalho, publicado em 2006 pelas Publicações Dom Quixote (Memória Social em Campo Maior), recolheu um conjunto de testemunhos orais que lhe permitiram tratar da memória da guerra civil espanhola em capítulo próprio. Mas apesar deste contributo, que confirma a ocorrência da operação de grande envergadura revelada por Rosado Vieira (embora não no ano por ele citado), continuava a não se saber exactamente onde, quando e como os factos tinham ocorrido.

Uma notícia publicada pelo então clandestino jornalAvante!, órgão central do PCP, lança um pouco de luz sobre estas dúvidas e interrogações. Na sua edição relativa à primeira quinzena de Maio de 1945, o jornal denuncia "os assassinos de Campo Maior" e acusa os "fascistas salazaristas" de terem assaltado "40 cabanas onde se albergaram 300 refugiados". Segundo a notícia, que não diz a data em que isso aconteceu, foram dadas ordens aos soldados para se apoderarem de dinheiro e bens. As roupas que encontraram são de seguida queimadas. O artigo revela os nomes de quatro responsáveis: o oficial Pereira Soares (poderá ser o capitão Oliveira Soares, do RC1), comandante da força repressiva; alferes Laranjeira, que comandou o assalto e ordenou o bombardeamento dos casebres; primeiro-sargento Risco, que se apoderou do que encontrou em sete cabanas; e o furriel Carreta, que feriu dois refugiados.

A imprensa regional da época não é mais esclarecedora. Apenas era editado na região o semanário Jornal de Elvas, onde nada foi publicado sobre o episódio. Essa omissão não surpreende se pensarmos no rígido controlo noticioso e na censura prévia que o regime salazarista impunha a todos os órgãos de informação do país.

Apesar do tempo passado, a recordação do que aconteceu permanece surpreendentemente viva na memória dos velhos habitantes de Ouguela ou Campo Maior. O nome do antifranquista "Duro" é invocado em todas as descrições e fala-se de mortos na operação, embora o relatório do inspector Roquete nada diga sobre isso. O que contam reforça a ideia de que algo de importante e significativo ocorreu na zona.

Caminhos muito ruins

António Camões tinha 13 anos quando voltou a Ouguela, depois de passar seis anos em Albuquerque com o pai. Confessa que tem algumas recordações da guerra civil, "mas não são boas". "Comigo ninguém se meteu, mas vi coisas muito ingratas", acrescenta, sem adiantar pormenores.

Em 1944, vivia na aldeia mas passava muito tempo nos campos, onde guardava gado e calhava dormir a maior parte das vezes. Conta: "Havia por aí muita gente refugiada, alguns trabalhavam, outros eram fugitivos. Eles tinham de roubar para comer e sobreviver e as pessoas começaram a queixar-se. Foi então que fizeram esse cerco para os apanhar."

José Velez, 81 anos, vive numa casa modesta encostada à muralha. Não se encontrava na aldeia quando os refugiados foram detidos. "Éramos uns oito e tínhamos ido a Espanha levar café. Estivemos lá dois ou três dias porque não conseguíamos vender o que levámos. Quando chegámos a Ouguela o sol já tinha nascido e havia muita gente na muralha. Havia três ou quatro camiões com militares portugueses. Era para os apanhar."

Ambos estão de acordo: os caminhos na altura eram muito "ruins" e as deslocações difíceis. Apesar disso, as notícias correram com rapidez e em Campo Maior rapidamente se soube do acontecido. José Leão, 82 anos, técnico oficial de contas reformado, natural da vila, vivia lá à data dos acontecimentos. "O que me lembro é que fizeram uma caçada na zona da Referta, entre Ouguela e Degolados, onde os espanhóis se tinham refugiado. A fronteira é logo ali e era fácil passar. A PIDE e os militares fizeram a caçada e apanharam-nos como coelhos."

O Monte do Alonso, encostado à fronteira, fica situado à esquerda, mesmo junto à estrada municipal que liga Ouguela a Albuquerque. No dia chuvoso e frio de Dezembro em que lá fomos, estava de passagem Maria do Rosário Rodrigues, 73 anos, que ainda trabalhou para o avô de Catarina Telo, actual dona da propriedade. "Havia refugiados por aí, sim, eram pessoas boas, não faziam mal a ninguém, trabalhavam quando podiam... Um arranjava sapatos, outro era barbeiro, outros faziam trabalhos nos campos. Viviam mal!"

Catarina Telo, 54 anos, nascida em Campo Maior, reparte a vida entre esta vila e o Monte. O que tem para contar são, sobretudo, muitas histórias da guerra civil ouvidas ao seu avô, que deu o nome à propriedade. "Os refugiados viviam do lado português e punham-se ali debaixo do feijão, das hortas, do mato e era assim que se refugiavam, dizia o meu avô. Ele gabava-se de ter salvo muitos espanhóis, tanto das direitas como das esquerdas." Sugere que falemos com o seu tio Antonio, a viver em Albuquerque: "Costuma estar no Hotel Machaco, à entrada da vila. Vão ao restaurante-bar e perguntem por ele..."

É já noite quando entramos em Albuquerque, uma antiga praça fortificada cujo castelo desempenhou importantes funções de defesa fronteiriça, e que voltaria a ser palco de diversos episódios durante a guerra civil espanhola. Não foi difícil dar com o hotel nem encontrar Antonio Telo, aqui nascido há 81 anos. "Recordo-me muito bem. Havia refugiados por ali, dedicavam-se ao contrabando de café e ninguém se metia com eles. Depois passaram a roubar, iam pelos montes de pistola na mão. Foi quando a polícia e os militares lá foram e os apanharam todos. Aquilo durou uma manhã, mas não tenho ideia de que altura do ano foi. Só me lembro que havia sol. Caíram todos nessa "redada"."

De Degolados à Referta

Olhando para a paisagem a partir das ameias de Ouguela, surpreende a extensão da planície a perder de vista. Não se sabe onde acaba o território português e começam terras de Espanha, e a ausência de montanhas contribui para a percepção dos terrenos como uma planura onde parece fácil circular. À vista do montado e da escassa vegetação rasteira que a cobrem, custa a acreditar que alguém pudesse escolher estas paragens para se esconder.

É só quando se chega à Referta que começamos a perceber como foi possível viverem aqui durante tantos anos homens fugidos à repressão franquista e ao assédio periódico das autoridades salazaristas: a falta de acidentes no terreno permite detectar com grande antecedência as movimentações suspeitas, dando tempo à fuga. Naquele tempo os meios de transporte eram rudimentares, os efectivos policiais insuficientes e quase não havia estradas. (E mesmo hoje, com boas vias, não é fácil chegar lá; a chuva transforma rapidamente a terra barrenta dos caminhos num lodaçal intransitável onde é fácil um carro atascar-se.) A juntar a isso, os refugiados contavam com as redes informais de apoio local a que o inspector Roquete alude indirectamente no seu relatório.

Seguimos pela estrada de Degolados numa tarde amena de princípio da Primavera. A estrada está ladeada por um número incontável de alfarrobeiras bravas com folha nova - uma paleta de cores muito diferente do cenário cinzento de meses antes, quando a primeira visita foi inviabilizada pelo estado impraticável do caminho que, depois de passar a aldeia, leva à Referta.

No começo de Abril, os campos alentejanos estão cheios de margaça e saramago - "é bom para dar aos coelhos", explica com um sorriso João Matias, 82 anos. Motorista reformado, vivia com os pais na Referta da Ouguela quando a operação luso-espanhola surpreendeu os refugiados e também os portugueses que ocupavam os casebres - restam apenas paredes degradadas, a ameaçar ruína, num raio mais amplo que vai quase até aos marcos de pedra que assinalam a fronteira.

Ninguém vive ali hoje. Há uma ou duas casas, só ocupadas por curtos períodos em alturas específicas - a apanha da azeitona, por exemplo. Não era assim em 1944. João Matias vivia numa casita sob um dos eucaliptos que cobrem uma pequena colina, perto dos fornos de cal (agora são apenas buracos profundos) onde o seu pai trabalhou mais de 20 anos. Não quer ser fotografado, mas não se esquiva a mostrar como eram as coisas naquele tempo. Aponta para o outro lado da cerca que delimita uma propriedade. "Está a ver aquela parte arredondada do terreno? Era a taberna." Mais adiante, já do outro lado da fronteira, indica os pontos onde havia uma cantina, o ferreiro, o casebre do sapateiro, a pouca distância uns dos outros... "Na casa do Zé Brázio havia bailaricos todas as semanas."

Quase sem interrupção, passa a descrever: "Estava um dia de neblina; costumava levar comida aos trabalhadores e nesse dia vim de carroça a Campo Maior buscar coisas para o monte. Antes de abalar para a vila, ouvi dois ou três tiros - era a dar indicação para avançar e fazer o cerco. Aquilo não era normal e ninguém estava à espera. Quando passei o Abrilongo para o lado de cá, encontro militares e guardas republicanos na estrada. Havia militares, sim, dois até estiveram em casa dos meus pais, que lhes deram de comer. A operação durou o dia todo até eles entregarem os refugiados aos espanhóis. Apanharam homens e mulheres, mas depois soltaram-nas porque só lhes interessavam os homens."

Se as coisas se passaram como os habitantes referem nos seus relatos, nem sempre isentos de contradições e erros, onde estavam as provas do ocorrido? Uma operação daquela envergadura não podia ser realizada de improviso, requerendo uma coordenação de forças no palco de operações que deveria constar de documentos guardados em algum arquivo histórico. Com os escassos elementos disponíveis - a começar pela ausência de uma data concreta, mas apenas muito aproximada -, começou uma infrutífera viagem de ano e meio pelos arquivos portugueses.

Um dia, uma das muitas conversas e trocas de correspondência mantidas com investigadores portugueses e espanhóis dá frutos. Luísa Tiago de Oliveira, investigadora do Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa (ISCTE), ouvira falar do episódio ao seu colega António Monteiro Cardoso quando este procedia à recolha de elementos para outro assunto. Era o relatório da PVDE sobre a operação em Campo Maior.

O historiador Francisco Espinosa, a quem se devem os estudos mais sistemáticos e rigorosos sobre a repressão franquista na Estremadura espanhola e Andaluzia, afirma "não ter conhecimento de outras operações similares". "A minha impressão é que foi uma fronteira muito controlada desde 1936 e conheço documentação do Governo Civil de Badajoz, relativa a finais dos anos 1940, que assim o prova", diz.

Francisco Moreno Gómez, autor de livros sobre a resistência antifranquista, admite que "estas operações não eram frequentes" e que "não detectou nenhuma". Mas lembra vários casos de guerrilheiros que tentaram iludir a repressão franquista em direcção a Portugal: um grupo que falhou o propósito de viajar das Astúrias para o Norte de Portugal; outro vindo de Toledo em 1941, que atravessou a fronteira e conseguiu chegar à Venezuela; ou o dos dois últimos "maquis" [guerrilheiros] que "conseguiram sair de Lisboa para a Venezuela em 1947".

Ángel Rodriguez Gallardo, professor da Universidade de Vigo, tem opinião diferente: "Estas operações eram muito frequentes e tenho conhecimento de várias na fronteira galaico-portuguesa. É verdade que há um desconhecimento quase absoluto sobre o assunto na historiografia espanhola sobre isto, com poucos estudos e escasso interesse."

Manuel Loff, professor de História Contemporânea na Faculdade de Letras do Porto e autor de uma obra de referência sobre as duas ditaduras ibéricas (O Nosso Século é Fascista!, Campo das Letras, 2008), responde no mesmo sentido: "No Norte, eram normais operações conjuntas em território português e espanhol nas zonas de fronteira porosas. No Alentejo não tenho conhecimento de nada nesse sentido."

Quem eram os homens e mulheres que viviam refugiados nas zonas de fronteira? "Havia de tudo", responde Espinosa. "Havia refugiados políticos, fugidos à justiça, contrabandistas, gente que procurava melhorar a sua vida, gente com problemas diversos que preferia passar a raia." O perfil traçado por Gallardo, relativo à fronteira galaico-portuguesa, é ainda mais preciso: "Eram pessoas de classe média ou baixa, embora houvesse também algum deputado ou político destacado. Habitualmente, eram homens entre os 18 e os 40 anos, relativamente envolvidos na política, em particular comunistas, socialistas, mas também alguns anarquistas ou apenas republicanos."

Manuel Loff explica o contexto histórico em que decorreu a operação. "A partir do Verão de 1944 houve uma grande pressão sobre o Governo de Salazar por parte dos Aliados, traduzida nas recomendações dos diplomatas portugueses nas embaixadas estrangeiras no sentido de "não se levantarem ondas"."

Apesar disso, o que se passou não surpreende o historiador:

"Os governos ibéricos consideram que têm de se dar bem com os anglo-americanos, a caminho da vitória na guerra, para salvar os respectivos regimes. A segunda linha estratégica de acção é a que leva os sectores mais duros dos dois regimes a consolidarem o seu poder. No final de 1944 os tempos não são, portanto, de preparação da liberalização, mas de reforço das características mais repressivas dos dois regimes. Este não é, em definitivo, um período em que as duas ditaduras empreendam um processo de abertura política. Nesse sentido, a operação de Campo Maior está em consonância com a política da época; os regimes querem garantir a manutenção do poder e não tem problemas em acentuar a repressão."

carlos.pessoa@publico.pt

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