Bagdad?A grande ruína

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Salwa e a filha, Hanabi, sentadas no chão. No sofá, atrás, Rajah, com o filho de 20 dias. Ao lado, os irmãos

A erva cresce por toda a parte, mesmo sem água. Os animais encontram onde beber. Um país arrasado, uma cidade destruída por bombas e depois por explosões, bombas humanas sem fim. Gente ameaçada de morte. Gente com fome e sem dinheiro para a renda. Sem desistir. Al-Rasheed é o maior campo de deslocados do Iraque. Está cheio de gente que recusou morrer.

Theba nasceu há 20 dias. Está ao colo da mãe, Rajah, que nasceu há 18 anos. Theba está na sala da casa da avó, Salwa Lifain, que vive no Al-Rasheed, antigo quartel, hoje o maior campo de deslocados internos do Iraque, país com pelo menos 2,8 milhões de deslocados. Theba é o mais novo habitante de Al-Rasheed.

A mãe de Theba vive com o pai do bebé e com os pais dele e os irmãos numa casa na mesma rua. Agora está em casa de Salwa, que quando as iraquianas têm filhos vão para perto das mães, no Al-Rasheed ou em qualquer lugar. O marido de Rajah "vendia garrafas de água na Praça al-Andaluz, mas a polícia correu com ele porque ele não tinha autorização", conta a jovem mãe. "O pai e dois dos irmãos têm trabalho na construção. Antes viviam numa casa alugada em Nova Bagdad, mas as rendas subiram."

Salwa veio com a família há três anos, depois de perder o marido, que como não trabalhava para o Governo não lhe deixou pensão. Talvez haja alguma pensão para Salwa mas se há ela nunca descobriu. Já tentou, até foi a um gabinete do município de Bagdad que se ocupa de órfãos e viúvas, "e eles não nos deram nada". Depois, regressou. Ou era preciso levar mais documentos ou então já era demasiado tarde para fazer o pedido. Das duas uma, ela não voltou.

Quando o marido de Salwa morreu, "de ataque do coração", ela ficou sem poder pagar a renda da casa alugada em Sadr City, o grande subúrbio xiita de Bagdad. Oitenta mil dinares por mês. E ela na rua com os filhos todos, quatro. Despejados. Depois, veio ao Al-Rasheed e uma família vendeu-lhe esta casa, que no Al-Rasheed já não há espaços livres e até se vendem casas, espaços para ocupar e para viver. A seguir, Salwa foi buscar os móveis e as roupas que deixara na rua e trouxe tudo. Pagou 750 mil dinares à família que aqui vivia e aqui ficou.

"Comprei o telhado e as portas. Arranjei o que era preciso."

No Al-Rasheed vivem 350 famílias, mais de 1500 pessoas, registadas por Abu Mohammed, responsável pela segurança a quem o Governo paga para viver no Al-Rasheed, assegurar que ninguém faz mal a ninguém e registar as famílias que aqui vivem, as mortes e os nascimentos, os que partem e os recém-chegados.

É isso que o Governo faz pelo Al-Rasheed. Isso e ameaçar despejar as famílias que aqui vivem, ocupas, todas ocupas. Também há polícias no Al-Rasheed, trabalham para Abu Mohammed e passam o dia numa casinha que deve ter sido posto de controlo e vigia e continua a ser. Fica para lá da casa de Salwa, onde o campo devia realmente começar, só que o campo cresceu e agora há uma rua antes deste posto, a rua onde vivem Salwa e Rajah, em casas rodeadas por muros feitos de pneus e pedaços de chapa de carros e de outros objectos que há no lixo e no Al-Rasheed. A rua delas tem uma fila com dez casas.

"O campo foi ocupado em 2003. Entretanto, algumas pessoas conseguiram sair e venderam as casas onde viviam. Já não há espaço. As pessoas compram estas casas a pensar que gastam menos do que a construir", explica Hussein, um jovem que vive na mesma fila de casas. É um dos autodenominados faz-tudo do Al-Rasheed. Faz puxadas de electricidade, faz desvios dos canos de água, faz o que for preciso.

Quando Salwa se mudou para o Al-Rasheed começou a vender gasolina na rua, para dar de comer aos filhos. Os filhos cresceram. Ridha tem dez anos e Hassan tem 13 e já não a deixam vender gasolina na beira da estrada. "Quando ficaram mais crescidos disseram-me para ficar em casa e foram eles trabalhar."

Agora, são eles que se põem a caminho, vendem pacotes de lenços no meio da estrada, entre os carros, entre o trânsito, de manhã e depois de novo à tarde. Há muitas crianças a vender pacotes de lenços no trânsito de Bagdad e de outras cidades do Iraque. Ganhem o que ganharem é esse o rendimento da família, é com isso que a mãe e eles e a irmã mais nova, Hanabi, sete anos, comem ou deixam de comer.

"Às vezes ganham 5000 dinares por dia, às vezes 8000. Não é suficiente, mas o que é que podemos fazer? Se eles não conseguem vender não podemos comer", diz Salwa.

Ridha e Hassan não têm outros amigos no Al-Rasheed. "Brincam um com o outro. Lutam entre eles", explica a mãe. Ridha e Hassan não sabem dizer o que gostariam de fazer se não tivessem de vender lenços no trânsito de Bagdad para dar de comer à mãe e à irmã. "Ir à escola", diz Ridha, sem grandes certezas.

"Às vezes ouvimos dizer que o Governo nos vai expulsar. Mas para onde é que podemos ir? Se o Governo vier, vou ficar na rua com os meus filhos", diz Salwa. Rajah diz o mesmo, sentada no sofá da sala da mãe, com Theba, de 20 dias, deitado no seu colo.

À força

Há uma cidade, Bagdad, grande e desestruturada. Já foi uma grande cidade, quando no Médio Oriente se dizia bagdadi para dizer gastador, no tempo das mini-saias e das artes e das ideias. Que durou pouco. Antes também já tinha sido uma grande cidade, noutro tempo, nos tempos em que os árabes viviam as luzes. Depois, continuou a ser, menos, mais ainda uma cidade. Com o rio Tigre e o Parque Al-Zawra. Com a rua dos livreiros e com os mercados de pássaros e de tudo.

Hoje, Bagdad é uma cidade mudada e em mudança. Muitas capitais foram mudando à medida que chegaram pessoas de fora, de outras cidades ou de zonas onde não há cidades a merecer esse nome. Bagdad mudou à força das bombas, dos tiros, dos muros, das estátuas derrubadas e de outras erguidas e já danificadas. Também mudou à força de todos os que a deixaram, em fuga, e de outros que ali chegaram, em fuga. Vindos de outros bairros, de outras cidades, do campo e dos pântanos.

Há uma cidade, Bagdad, com muitas ruínas. A maior é esta: o antigo quartel Al-Rasheed, que já foi o maior quartel de Bagdad e hoje é uma enorme ruína, com prédios de pé e outros no chão, com restos do que já foram arcos, com erva e lixo, muito, muito lixo, carros abandonados, pedaços de água com erva onde há búfalos e vacas a pastar, entre o lixo e as ruínas.

Visto ao longe, do viaduto que liga o bairro de Karrada, a leste do Tigre, à saída de Bagdad em direcção ao Sul, o Al-Rasheed, ali à direita, é só lixo, montes e montinhos, a perder de vista. Mas depois, o lixo começa a mexer-se e entre lixo reconhece-se um miúdo pequeno. Outro ainda. Mais à frente, ovelhas. Há vida no lixo. Há vida no Al-Rasheed, só que é preciso aproximarmo-nos para a conseguirmos ver.

Quem vive no Al-Rasheed não escolheu assim. Foi lá parar, quando o resto falhou. Quando a renda subiu, como tantas rendas subiram nos últimos anos. Há mais de oito milhões de pobres no Iraque. Quando as ameaças soaram mais a sério e não havia dinheiro para alugar uma casa de verdade em Bagdad nem noutra cidade. Cinco a seis milhões de iraquianos fugiram das suas casas para não serem mortos. Os que puderam fugiram para a Suécia ou para a Síria, a maioria árabes sunitas. Muitos mudaram só de bairro ou de cidade, a maioria árabes xiitas. Não parece, mas o Al-Rasheed é um refúgio, um abrigo, mesmo que pareça o fim do caminho.

A casa de Salwa tem um quintal, dentro do muro de chapa de carros e pneus, e duas divisões. A cozinha é lá fora. A família juntou-se na sala, que tem tapetes, um sofá, a televisão, o frigorífico. Na segunda divisão também há tapetes no chão e um armário grande, sem portas, cheio de cobertores que fazem calor só de olhar. Está tanto calor no Al-Rasheed. Em Bagdad, o termómetro mostra sempre o ponteiro perto dos 50 graus.

Tantas fugas

Na mesma rua de Salwa, na casa do lado, vive Mohammed Saleh, de 53 anos, com a mulher e os filhos. O Al-Rasheed parece só uma grande ruína, aos bocados. Mas quando nos aproximamos, aparece vida em todo o lado. Esta família saiu de casa e está mesmo ali, à porta de Salwa.

"A minha mulher está doente e já passou por todos os médicos do Iraque. Tem coágulos", diz Mohammed, com a mulher, barriga muito inchada, e os filhos, ao lado. Moates, de sete anos, chinelos e calções; Doha, de oito anos e pijama vermelho. "A minha mulher já perdeu quatro bebés por causa da doença."

A família Saleh já viveu em tantos sítios. "Vivi sempre com dificuldades, nunca vi grande futuro", diz Mohammed. Primeiro nos pântanos, entre Amara e Bassorá, no Sul. "Deixei a zona em 1996, por causa da seca." A seca era a das nuvens e a de Saddam Hussein, que drenou a água dos pântanos para castigar os árabes que ali viviam, acusando-os de traição, durante a guerra com o Irão (1980-88) e depois em 1991, quando os xiitas acreditaram que os Estados Unidos iriam derrubar o ditador e se revoltaram contra o regime.

Depois, a família Saleh mudou-se para Tharmia, a norte de Bagdad. "Aí fui agricultor. Tinha melancias e produtos de Inverno, como batatas, e outros vegetais", diz Mohammed. Mas a seguir veio o medo. "Vimos outros serem mortos. Ameaçaram-nos, atiraram papéis com ameaças para a porta da nossa casa. Não sei quem. Eram sunitas, nós somos xiitas." Depois, a família mudou-se para Taji, o outro grande quartel de Bagdad, no tempo de Saddam, à saída da cidade para Norte. Ao Al-Rasheed chegaram em 2008.

"Ele trabalha na construção, quando há trabalho. Vai para o centro de trabalhadores e espera lá. Às vezes varremos ruas", diz Iusea, a mulher de Mohammed, de 36 anos e barriga de grávida por causa da doença. "Estou doente, não posso pagar nada ao médico. Disseram-me que eu tinha de fazer uma operação, para tirar um coágulo do estômago e outro do pâncreas. Já fiz uma cirurgia, em 2007. Dois meses depois estava na mesma."

Se fossem à escola, Moates e Doha estariam de férias. Mas as férias deles começaram há mais de um ano. "No ano passado iam, pagávamos a setuta, 6000 dinares por mês, para os levar. Este ano não foram. Não pudemos pagar. Alguém me pode ajudar?", pergunta Mohammed. A setuta é uma carroça a reboque de uma mota, um meio de transporte ainda comum nas ruas de Bagdad, Kirkuk ou Kerbala.

Mercearias à janela

Ainda não conseguimos sair desta rua, com uma fila de dez casas. O Al-Rasheed só começa verdadeiramente a seguir a esta rua, depois de percorrida uma grande distância, sempre sem se perceberem os caminhos por entre a erva e o lixo. Só depois se alcança o portão, o posto de controlo, onde estão os polícias que trabalham para Abu Mohammed e decidem chamá-lo. Para lá do posto é o campo propriamente dito, o antigo quartel, com edifícios de pé e outros de joelhos. Ali vive a maioria das famílias que Abu Mohammed tem nos seus registos.

Há vacas a virem na nossa direcção, vagarosas, com calor, passam o velho portão e vão à vida delas. Atrás há uma casita com uma janela que é um café e um minimercado. Tantas pessoas a viver no campo, claro que há café e mercearias, todos feitos à janela, todos a vender um pouco de tudo, comprado nos mercados, vendido ali. Há gente a viver no Al-Rasheed que tem carro, mas a maioria não tem.

Há crianças a brincar lá ao fundo, para lá do que já foi um mural de respeito e onde ainda se pode ver o rosto de Saddam Hussein. Pensávamos que os norte-americanos tinham derrubado todos ou pelo menos riscado os que ficaram de pé. Mas este não, ninguém se deu ao trabalho e ele está a desaparecer por si, ao ar.

Olhando para trás, para a primeira fila de casas, vêem-se os fios da electricidade, muitos, como uma instalação que se espalha por todo o lado. Chegam ao muro, passam o portão, vão-se distribuindo no ar, abrindo caminho entre os amontoados de pedra e o campo aberto. Lá atrás há palmeiras, mais amontoados de pedra. Para a esquerda é só vegetação seca. À direita, ao fundo, vêem-se grandes chaminés, de uma central eléctrica, a lançar fumo branco e depois negro.

Em frente há um edifício grande de três andares e escadarias no meio que era o hospital do quartel. Agora, vivem aqui famílias. Em todas as divisões, duas para cada. Cada porta que sai de cada corredor que começa em cada vão de escada dá casa a uma família. Às vezes, para lá das portas, há uma casa de banho. A família agradece. Há famílias muito grandes, outras mais pequenas.

Diante do edifício há uma rua e dos dois lados dessa rua há ruínas e pedaços de objectos, de tudo e de nada, misturados com pedras. "O município de Bagdad quer fazer aqui investimentos. Construir casas neste espaço", diz Abu Mohammed, enquanto indica o caminho.

Avisámos antes de entrar, mas mesmo assim ainda apanhamos Mohammed de tronco nu e a mãe, Hadhija Hantub, viúva há menos de quatro meses e dez dias, de rosto descoberto. "Quando um homem morre, a viúva deve ficar separada de outros homens durante esse período. Assim, se ficar grávida, ninguém dirá que o filho não é do marido", explica Mohammed, de 27 anos. Ninguém sabe bem dizer quantos anos tem a mãe. Ele já não está em tronco nu e a mãe já cobriu a cara.

Esta família é especialmente grande e Mohammed é o chefe que sobra, depois da morte do pai. Tem um irmão, Ahmad, de 19 anos, que não trabalha; outro, Muslim, de sete anos; uma irmã, Busha, de 15; Zeinab, de onze anos, e ainda Zahra, a irmã mais nova, de dez anos.

Tantos filhos

Mohammed é casado e tem um rapaz de sete meses que é passado de mão em mão e de colo em colo pelas irmãs, que às vezes o pousam no chão, em cima de um tapete pequeno. A mulher de Mohammed chama-se Jaossum e tem 23 anos. "Era vizinha do meu avô. Apaixonámo-nos e casámos. Já foi há muito tempo, há seis anos." O bebé que anda pelo chão e pelo ar chama-se Sajad.

Há nove pessoas nesta família. Uma sala, que faz de cozinha, um quarto e uma casa de banho lá ao fundo. Vivem aqui desde 2006, só Sajad é que ainda não existia. Até 2003 viviam numa casa alugada em Jamila. Pagavam 60 mil dinares de renda e depois deixaram de conseguir pagar. Nessa altura ocuparam um edifício que tinha pertencido ao Partido Baas, de Saddam, que tinha acabado de se evaporar, no bairro em que viviam na casa alugada. Depois, foram despejados pelo Ministério da Educação, que transformou o edifício numa escola. "Evacuaram o edifício. Não nos deram nada." A escola ficou e eles acabaram aqui.

Mohammed deixou de estudar na quarta classe. Os mais novos deixaram de ir à escola há um ano, mais coisa menos coisa. Busha, por exemplo, nunca foi. Zahra estava no sexto ano quando deixou de ir. "Só eu é que trabalho. Vou para o mercado de Sorja. Transporto coisas para as pessoas. Quase não trago dinheiro para casa", explica Mohammed.

Entretanto, Mohammed está a tentar que a mãe comece a receber uma pensão de viuvez. "Tenho ido a vários gabinetes. O meu pai trabalhava no Ministério da Saúde. Era exterminador, matava formigas e baratas."

Sem a pensão, resta o que Mohammed consegue ganhar no mercado. "Às vezes o Ahmad vai comigo, mas nem sempre", diz o chefe de família sobre o irmão de 19 anos, que estava em casa quando chegámos mas entretanto já desapareceu. Resta Mohammed, 27 anos e chefe de tanta família. "Sofremos muito. Já sofríamos antes, agora é pior. A casa de Jamila era boa, mas não podíamos pagar. No outro edifício também não pagávamos nada, como aqui. Sofremos por causa da falta de electricidade. Não posso comprar um gerador", diz Mohammed. A mulher, Jaossum, sorri: "Abanamo-lo para ele ter menos calor", diz. Ele é o bebé, de fraldas.

"Gostava de fazer qualquer coisa. Não tenho nenhuma profissão. Não sei fazer nada. Gostava de ser condutor, de trabalhar para um gabinete do Governo", diz Mohammed, que pode não saber fazer nada mas assim, rodeado de irmãos e irmãs e mulher e filho, todos a sorrir, ninguém diria. Sabe tratar de todos o melhor que pode e isso não parece assim tão pouco.

Um poster de Ali

Mesmo em frente à família de Mohammed, do outro lado do corredor, vive Abu Khadim, com a mulher, a mãe e os três filhos: Khadim, de sete anos; Hussein, de dois, e Salih, de um ano apenas, dois dentinhos à mostra.

Os filhos mais velhos repararam nas visitas que os vizinhos tinham em casa e já estavam à porta, a chamar. A mulher, Umm Khadim, apareceu a espreitar com o bebé ao colo. Na sala, a maior divisão da casa, espaçosa, mais ainda por ter apenas um tapete e um poster do imã Ali na parede e ao lado um pedaço pequeno de espelho, está Abu Khadim, que tem 26 anos, mas que ninguém diria ter menos de 36, e a mãe, toda de negro e de rugas, tatuagens nos braços e nas mãos.

Umm Abdullah mal se pode levantar, estava sentada no tapete quando entrámos, mas levanta-se para oferecer água e erguer as mãos e os braços. "É hajj", explica o filho. Já foi a Meca durante a grande peregrinação, aquilo que qualquer muçulmano quer fazer pelo menos uma vez na vida. Umm Abdullah tem 63 anos, é viúva, e faltam-lhe dentes, mas sobram-lhe tatuagens e rugas e cigarros para fumar entre os dedos e os dentes e forças para erguer os braços e as mãos no ar.

Nesta família, só os mais pequenos é que nasceram em Bagdad e nem todos. Chegaram aqui há seis anos, vindos de Baladrus, em Diyala, província a nordeste da capital. "O meu tio foi morto. Como era xiita, fui ameaçado. Não podemos voltar. Nunca mais. Todos os nossos tios e primos vieram para Bagdad", diz Abu Khadim.

Esta já é a segunda casa em que esta família vive no campo Al-Rasheed. Abu Khadim também já teve vários empregos desde que deixou Diyala. Primeiro, arranjou trabalho como motorista numa base norte-americana, em Habbaniyah, 80 quilómetros a oeste de Bagdad. Ia, ficava, vinha. E a família vivia no Al-Rasheed, mas noutra casa. "Um dia, um tanque entrou-me em casa e eles levaram-me. Houve um problema financeiro com outro tipo e eu fui a vítima", diz. A punição foi grande. A família arranjou outra casa, mas ele passou um ano em Camp Bucca, a prisão que os americanos tiveram no Sul do país, perto de Umm Qasr, a cidade que é um porto no Golfo Pérsico.

Depois, Abu Khadim foi libertado e continuou a trabalhar na mesma empresa de segurança, como motorista. "O director fugiu com os nossos salários. Ainda sou empregado deles, mas como não me pagam deixei de ir. Agora trabalho na construção", diz, enquanto aponta para a roupa suja, calças de ganga e camisa pintalgadas de tinta.

"Eu trabalho no hospital, toma conta dos doentes e limpo", diz Umm Khadim, com o filho mais pequeno sempre ao colo dela. No hospital, Umm Khadim ganha 120 mil dinares, o que é pouco, mas não é assim tão pouco. Ela é que trabalha muito.

Este casal quer sair do Al-Rasheed e dar uma casa aos filhos. Ainda não pôde ser, mas o dia chegará. Entretanto, falta mobília mas não falta comida. O que queriam era que o Khadim estudasse, mas também ainda não conseguiram. "Ele já devia ter ido no ano passado. Mas como os documentos de identificação dizem que é de Diyala não o deixaram. Eu agora vou mudar o registo de residência. No próximo ano ele vai poder ir", afirma o pai.

"Eu só quero um sítio para viver. Nem eu nem os meus filhos temos uma casa para viver", diz Umm Abdullah, braços magrinhos erguidos no ar, dedos compridos, muito compridos.

Ter sorte

Abu Khadim e Umm Khadim são pessoas de sorte. Levantam-se de manhã, têm o que dar de comer aos filhos, têm onde encontrar trabalho lá fora, para lá das ervas e das pedras e das ruínas e do portão no Al-Rasheed. Têm um tecto, um chão. Os filhos têm mãe, pai, irmãos, uma avó até. Um poster do imã Ali, o primeiro mártir dos xiitas. Um tapete. Um espelho pequeno.

Khadim não vai à escola, mas brinca na rua. Há mais miúdos naquele edifício que já foi o hospital do quartel e cá fora também, em casas feitas de quase nada, uma espécie de parede meia fechada meia rede, encostada ao edifício principal. Onde há miúdos brinca-se, mesmo que não haja mais nada. Uma maçã meio comida faz de bola e se não houvesse maçã havia caroço e mesmo sem caroço haveria de certeza uma bola.

Abu Khadim e Umm Khadim e o pequeno que ainda não vai à escola até podem não saber a sorte que têm.

Abu Akram não sabe a sorte que tem, nem vê que a mulher ainda está ali, ao lado dele, a viver na mesma casa. Nem vê a filha mais velha, Abir, de 25 anos, já divorciada e a viver com os pais e com a filha, Adil, de seis anos, que Abu Akram também não vê. Nem vê a filha mais nova, Nurah, de dez anos, vestido amarelo com florzinhas brancas e um lenço negro por cima do cabelo. Abu Akram podia não ter ninguém e talvez nem desse por nada.

Abu Akram só consegue ver o que perdeu. Foi tanto. Foi demasiado. Ele não aguentou. Não foi a casa, em Sadr City, nem o trabalho. Abu Akram já nem pensa na casa e quase já nem se lembra que trabalho tinha. O que vale é a mulher, que fez desta casa no Al-Rasheed uma loja e compra no mercado e traz o que compra de autocarro e vende aqui e dá de comer às filhas e à neta. Porque Abu Akram só consegue ver o que perdeu.

De tanto ver, já nem abre bem os olhos. Encheu as paredes da sala de fotografias do que perdeu, sempre as mesmas; à entrada, no quintal, encheu uma parede com uma fotografia gigante, igual, sempre os mesmos rostos. Depois, sentou-se a chorar e a fumar. Às vezes, vai lá fora, para lá do quintal, ao sítio em que enterrou os filhos, três campas lado a lado, e ele sempre a chorar. "Eles costumavam jogar futebol aqui. Adoravam jogar futebol. Quando estou aqui ainda sinto os passos deles. As pessoas não compreendem. Algumas, acham que eles deviam estar fora daqui, num cemitério. Mas eu preciso de ter os meus filhos perto de mim. Tentei mantê-los aqui na esperança de que eles voltem para mim."

O dia em que a vida de Abu Akram acabou - ou parou - era um dia de mercado. Akram, 16 anos, Karam, 14, e Sajad, 12, tinham ido às compras e não quiseram esperar pelo pai, que poderia ter ido mais tarde. Estavam empolgados. "Eles adoravam futebol e queriam comprar equipamentos novos, calções, camisolas. Eu disse-lhes para não irem, que iríamos juntos. Mas eles recusaram e quiseram ir logo", diz Abu Akram. Eles foram de bicicleta até ao mercado de Nova Bagdad no dia em que uma mulher com um falcão na mão e um colete de explosivos decidiu fazer-se rebentar no meio das pessoas que antes atraíra com o falcão.

1 de Fevereiro de 2008.

"O tempo parou para mim. Foi como se não houvesse chão debaixo dos meus pés."

Já voltou a haver chão debaixo dos pés de Abu Akram, mas é como se nunca mais tivesse voltado a haver. "Quero falar dos meus filhos que vivem no meu coração. O que há de mais valioso no mundo é isso. Eles eram a única razão de viver que tinha. Em poucos segundos, perdi-os e perdi tudo. Depois disso tive muitas doenças. Os meus nervos estão estilhaçados." É assim que a conversa começa e aqui voltará muitas vezes. Abu Akram só consegue falar dos filhos que perdeu e do sofrimento com que a perda deles o deixou. Até já foi à Índia por causa disso.

Um médico em Bombaim

"Tenho muitas doenças e fui a muitos médicos no Iraque e nenhum fez nada. Tive de ir à Índia." Houve amigos que ajudaram e o dinheiro apareceu. E como Abu Akram sofre foi mesmo à Índia, a Bombaim, e agora toma muitos comprimidos diferentes, mas continua a sofrer. E a fumar. "Estou proibido pelo médico, mas fumo."

Primeiro, quando Abu Akran foi à procura dos filhos e percebeu o que tinha acontecido no mercado de Nova Bagdad, só lhe disseram que tinha morrido um dos rapazes. Os outros ainda chegaram ao hospital, mas mortos também. "Depois do choque de perder o segundo, não aguentei. Na sexta-feira perdi-os todos...", diz Abu Akran, antes de recomeçar a chorar.

O sofrimento de Abu Akran impede-o de fazer quase tudo. De olhar para a filha mais nova. De brincar com a neta. Mas levou-o mesmo até Bombaim, em Fevereiro. O médico que consultou por lá chama-se N. H. Banka e é um hepato-gastroenterologista. Diagnosticou-lhe uma "infecção na ureia", "sensibilidade gástrica grave" e qualquer coisa como "sintoma do intestino grosso". Receitou-lhe uma dieta e aconselhou-a a "evitar drogas".

Antes de viver no campo Al-Rasheed e de perder os filhos, Abu Akram fazia doces. "Os meus filhos ajudavam-me." Agora, isto é tudo o que Abu Bakr faz. "Alguns homens e mulheres sofrem por não poderem ter filhos. Antes ser estéril. Eu, que vivi com estes filhos todos estes anos... Um dos meus filhos é melhor do que a minha vida. O sorriso de um deles, a respiração de um deles. Eu consigo sentir a respiração deles. Pergunto-me por que é que ainda estou vivo."

Abu Akram está sentado no chão da sala a falar, de pernas cruzadas e de frente para a parede que é um memorial aos filhos, três mártires. As duas miúdas pequenas estão na sala o tempo todo. Quase sempre quietas. Agora estão muito sérias. Na parede, há cinco fotos dos três rapazes e outras três, uma de cada. A casa é grande e tem luz, mas nesta sala nem se percebe. É só o armário que ocupa toda a parede onde as miúdas se encostam, as fotografias dos filhos mortos, um relógio. Também há um frigorífico e em cima do frigorífico há um panda de peluche. Pela porta vê-se um grande poster do imã Ali, a cavalo, com os filhos, Hassan e Hussein. Abu Akran está todo vestido de negro, calças e camisa. Penduradas na porta estão mais umas calças e outra camisa, negras também.

No meio da conversa, quando tirou de um monte de papéis atrás de si a pasta com os documentos da consulta em Bombaim, Aku Akran também teve na mão a fotografia original, a que deu as cópias que estão na parede e lá fora, no quintal. Agora, é a neta de vestido cor-de-rosa que tem a foto nas mãos. Encostada ao armário, olha para a fotografia, diz qualquer coisa à tia, baixinho, depois dá beijinhos na fotografia que tem na mão.

A custo, Abu Akram lá conta que vive no Al-Rasheed há sete anos. "Tinha uma casa arrendada em Sadr City e deixei de poder pagá-la quando a renda aumentou. Era melhor não ter vindo", diz, sempre de olhos no chão ou nas mãos ou no cigarro.

"Eu não ando na rua como um louco. Guardo a minha dor. Eu adoro crianças, adorava os meus filhos. A mãe deles já não pode ter mais filhos por causa da idade. Agora, repito os passos deles. Qualquer estrada que eles costumavam fazer, eu volto a fazê-la. Todos os dias eles estão comigo. Sinto sempre que se morresse seria melhor, porque até o dia me parece negro. Sinto que eles são mais velhos do que eram. O que tenho mais são lágrimas", diz Abu Akram, a chorar.

Sobreviver no Al-Rasheed

Desde que perdeu os três filhos, a Abu Akram tanto faz viver no Al-Rasheed ou noutro lugar. Viveria sempre assim, em desespero, em pranto permanente de quem desistiu e não importa se a vida é boa ou madrasta, se a casa é um palácio ou uma barraca. Não importa nada, só o desespero de não conseguir parar de se consumir em mais desespero.

A mãe dos três filhos de Abu Akram, Umm Akram, não desistiu. Está a chegar a casa com a filha mais velha, sacos com as compras que trazem do mercado. Fruta e vegetais, para venderem ali, à janela. Cá fora, por baixo da grande fotografia dos três rapazes, uma parede inteira, maior do que o poster do imã Ali dentro de casa, há dois patos a bebericar da água que escorre de um ar condicionado. A família vem toda até à porta, os patos param de beber e viram-se de costas, de frente para a parede. Abu Akram leva-nos até às campas dos filhos e a mulher vem atrás, a alguma distância.

"Só temos esta loja. Mais nada. Quem nos pode ajudar?", pergunta Umm Akram quando voltamos a percorrer o caminho das campas para a porta da casa onde vive com o marido, as filhas e a neta. Umm Akram não chegou a ir até às campas, deixou lá o marido, a andar à volta delas, depois de cócoras a olhar para as lápides.

Sete anos é tanto tempo. Há sete anos, o Al-Rasheed era um quartel orgulhoso. Bagdad era tão diferente. O Al-Rasheed já teria sido mais orgulhoso antes, que o Iraque deixara há muito de ser uma potência militar e muitos soldados já não faziam mais do que picar o ponto e depois os norte-americanos entraram e eles despiram as fardas. O Al-Rasheed foi bombardeado. Ficou em ruínas. O Iraque todo também, muitas vezes. Bagdad inteira. Muitas pessoas foram mortas e muitas outras sobreviveram.

Nos últimos sete anos, morreu-se de tudo em Bagdad, de doença prolongada e fulminante, de ir ao mercado, de fogo e de afogamento, de fome. No Al-Rasheed só estão enterrados os três filhos de Abu Akram. Já não há cemitérios em Bagdad, o Governo eleito depois de Saddam ter sido derrubado tirou os mortos da cidade. Já chegavam os vivos e os mortos pelas ruas, depois de cada explosão, antes de cada rua ser limpa. Nos últimos sete anos já morreu mais gente no Al-Rasheed. Mas campas só há estas três. Em volta há terra e vegetação seca e lixo. Mas há vida, também. Muita gente que fugiu da morte e da rua para continuar a viver.

Umm Akram, de 48 anos, mais dois do que o marido, e a filha mais velha, Abir, de 25 anos, vão continuar a viver e por causa delas Nurah, de dez anos e vestido às florzinhas brancas, e Adil, de seis anos e vestido cor-de-rosa, vão crescer e sobreviver muitos anos aos três rapazes que eram os tios de Adil e os irmãos de Nurah.

Mohammed, que tem 27 anos e já é pai de uma família de nove, vai continuar a carregar as compras dos outros e a fazer sorrir os irmãos e as irmãs e a abanar o filho pequeno, para ele ter menos calor.

Abu Khadim e a mulher vão continuar a trabalhar nas obras e no hospital e Khadim há de ir à escola já para o ano. E depois vai ter uma casa melhor, fora do Al-Rasheed, onde vai brincar com os irmãos mais pequenos e com a avó.

Mohammed Saleh vai ganhar dinheiro para recomeçar a pagar a setuta, 6000 dinares por mês, e os filhos vão voltar a ir à escola. Quando regressarem a casa, todos os dias, no Al-Rasheed ou noutro lugar, a mãe vai estar à espera, com ou sem coágulos.

Os filhos de Salwa, tão pequenos ainda, dez e 13 anos, vão vender muitos pacotes de lenços de papel no trânsito. Há tanto trânsito perto do Al-Rasheed, para lá da grande ruína, há trânsito em todo o lado em Bagdad e no Iraque todo também. Theba vai continuar ao colo da mãe até ter um mês e depois vai continuar a crescer e fazer um ano. Só Abu Akram é que vai continuar a chorar. a

slorena@publico.pt

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