O homem de Côja

O século viu-o nascer e ele seguiu-o com as luzes da Razão e do Republicanismo. Com os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade traçou a esquadro e compasso o campo político onde quer estar - a democracia parlamentar. Foi "guerrilheiro" contra o Estado Novo, partidário republicano na guerra civil de Espanha, apoiante das candidaturas presidenciais de Norton de Matos (1949) e Humberto Delgado (1958) e em 1973 fundador do Partido Socialista. Tinha 74 anos quando chegou a revolução de Abril. Sem ser optimista é um homem de esperança, que deposita por inteiro na juventude.

Fernando Baeta Cardoso do Vale nasceu em 1900, em Cerdeira, aldeia a poucos quilómetros de Côja, no centro de Portugal continental, filho de Alberto Valle e Maria Adelaide. Aos dois anos foi viver para Côja, numa casa solarenga que continua na posse da família.Do pai, que nada cobrava aos doentes que o consultavam, guarda a recordação de "alguém bom em excesso". Era um agnóstico positivista, formado nas virtudes da ciência. A mãe, "uma mulher católica, muito religiosa, sem ser fanática", respirava a tradição portuguesa das serranias. Foi ela a comandar os negócios da casa de lavoura, de onde vinha o alimento para a numerosa prole. Tiveram seis filhosA implantação da República, em 1910, foi o primeiro evento político da sua vida e determinou "uma atitude" para toda a vida.Em 1920, estudante de medicina, casou com Beatriz Simões Dias, sua conterrânea. O casal teve seis filhos, criados em Côja, referência matricial destes Vales.O ano de 1923 é um momento alto da sua vida. Em Coimbra conheceu os ideais maçónicos e aos 23 anos entrou no Grande Oriente Lusitano. Escolheu Egas Moniz para nome de iniciado, pelo "exemplo de lealdade" do aio de Afonso Henriques. Opôs-se desde o primeiro dia ao movimento militar do 28 de Maio de 1926, porque a "linguagem ordinária de caserna de Gomes da Costa identificava-o logo".A chegada de Salazar ao poder "foi coisa má para Portugal". Não justifica, mesmo historicamente, o chefe do Estado Novo: "Gostava do poder e queria o poder pelo poder. Tornou-se, por isso, um homem mau". Não esquece o "rancor" de Salazar para com os seus opositores políticos, mesmo quando estes estavam já neutralizados. "O que fez a Alberto Moura Pinto" (republicano da primeira geração, ministro de vários governos, incluindo o de Sidónio Pais, e que a esse título foi um negociadores dos acordos de pacificação da República Portuguesa com a Santa Sé), indigna ainda hoje o velho médico de Côja. Rememora episódios dessa inflexibilidade:"O Moura Pinto era procurador em Miranda do Douro e quando vinha a Coimbra ou a Côja, que ele era destes lados, fazia transbordo em Santa Comba Dão, onde havia duas pensões e ele ficava na do 'tio António Feitor', pai de Salazar. Veio de imediato com a implantação da República e quando desembarcou em S. Comba Dão o seu hospedeiro diz-lhe de pronto: 'Bem me desgraçaram. O que vou fazer ao filho que tenho no seminário?', aludindo a Salazar que tomara esse ano as ordens menores. 'Homem se é só isso, ele que faça as equivalências e vá para Coimbra, que eu recomendo-o a um professor meu amigo, para que o promova a sebenteiro. Com isso, no primeiro ano já se governa, depois logo se desenrascará'".Esta dívida de gratidão, diz Fernando Vale, aumentou o rancor de Salazar contra Moura Pinto, que se exilara em Espanha e fazia parte do "grupo dos Budas" com Jaime Cortesão, Jaime Morais e outros. Isto fez de Vale um "guerrilheiro" anti-salazarista, dando abrigo aos revolucionários durante a guerra civil de Espanha.Participou activamente nas campanhas democráticas do pós-guerra, do MUNAF (Movimento de Unidade Anti-Fascista) às de Humberto Delgado. O nome que realça neste período é o de Norton de Matos, candidato às eleições presidenciais de 1949. Preso por ter participado nesta campanha, Vale foi demitido do posto de médico municipal, sob acusação de "desafecto ao regime". Disseram-lhe que "Salazar não regateava benesses a quem se atrelasse a ele", mas não deu seguimento a um "conselho" que não pediu. Em vez disso aceitou participar na Frente Patriótica de Libertação Nacional, sediada em Argel, e isso custou-lhe nova detenção no Aljube. Teve em 1971 uma das maiores alegrias da sua vida. O regime salazarista quis também afastá-lo do Hospital da Misericórdia de Arganil. Mas quando veio a informação, organizou-se uma manifestação de mulheres em seu favor, impedindo que a medida se concretizasse.Fiel ao seu ideário, em Março de 1973 participou na reunião fundadora do Partido Socialista, em Bad-Munstereifel, na Alemanha. Depois do 25 de Abril não aceitou qualquer benesse política. "Os velhos - diz o homem de Côja - têm o privilégio da tranquilidade" e, citando Jefferson, acrescenta: "Podem fugir à vozearia da multidão e dedicarem-se à conversa com os netos".

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