Na Amazónia com teatro cheio

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JORDI BURCH/KAMERAPHOTO

A comunidade portuguesa no Pará fez fila para ouvir fado com Ana Moura. Noite de espanta-espíritos no mítico Teatro da Paz

O Teatro da Paz está todo iluminado no meio da praça. É um dos ícones da Amazónia, memória de quando Belém do Pará vivia da borracha, há mais de um século. Madeiras, mármores, cristais, frescos: os "barões" de então não pouparam para que a cidade tivesse um palco operático. Mas esta noite o cartaz tem a cara da fadista Ana Moura. E, por baixo, na interminável fila até à porta, ouvem-se ecos das Beiras, do Norte: porque hoje, 2 de Junho, é o arranque e ponto alto das comemorações do 10 de Junho, organizadas pela comunidade portuguesa de Belém do Pará.

A bela e caída Belém das mangueiras nas avenidas, dos casarões art-déco, do mercado Ver-o-Peso, é uma cidade onde à noite, nesta praça, as pessoas evitam atravessar o jardim e os carros evitam parar no vermelho, por causa dos assaltos.

Então noite no teatro é uma espécie de espanta-espíritos: muita luz, muita gente. E de gala mesmo: tafetás, saltos altos, jóias. Os portugueses de Belém puseram as suas melhores roupas para vir ao fado e a lotação está esgotada.

A dinâmica Vilma Reis, 33 anos, coordenadora da rádio local de notícias, faz as vezes de anfitriã, conduzindo a repórter ao camarote dos organizadores. A sua ligação a Portugal é mais que herança. Viveu em Coimbra com os pais, estudou jornalismo enquanto a mãe, também Vilma, estudava arquivologia. O pai morreu lá, mãe e filha voltaram a Belém, mas Vilma-mãe voltaria a viver em Portugal amanhã e Vilma-filha tem de se vigiar para não dizer paragem em vez de parada, autocarro em vez de ônibus. Na escadaria, sob o lustre, impossível dizer qual das duas está mais elegante, mãe ou filha.

Partilhamos um camarote de onde, às 20h30, se avista o teatro realmente lotado. As luzes apagam-se, ecoa uma gravação. É a voz do vice-cônsul português agradecendo ao secretário de cultura do Pará o apoio na comemoração, incluindo o aluguer do principal teatro do estado.

Baixo, viola e guitarra portuguesa abrem caminho à protagonista, num coleante vestido negro de lamê, xaile negro, colares: "Boa noite Belém!", Belém responde "Boa nôitchi!", Ana Moura conta que hoje viu o Mangal das Garças, amanhã vai a Ver-o-Peso, e será assim entre vários fados, diálogo do palco para a plateia. Depois de cantar um fado chamado Búzios, que mete mãe-de-santo, agarra num dos colares que tem ao pescoço e diz que foi prenda hoje, uma Nossa Senhora da Nazaré, devoção maior de Belém, de todo o Pará, peregrinação de milhões.

Da Murtosa

Ovação, encores e os camarotes desaguam pelos corredores, comentando a surpresa deste fado, que aos ouvidos de Belém parece novo. Discretíssimo na sua camisa de quadradinhos, ninguém diria que um dos benfeitores (leia-se patrocinador) das comemorações é este cidadão natural da Murtosa, distrito de Aveiro: João Pisco, 73 anos e ainda tímido.

"Vim em 1956 para o Brasil", conta, na varanda sobre o jardim. "O meu pai já cá tinha estado, tinha vendido peixe em Ver-o-Peso, depois foi para os Estados Unidos, voltou a Portugal e voltou a Belém." Da segunda vez já tinha família, mandou vir João Pisco aos 17 anos. Quase um mês sozinho num navio de carga, parando nos portos.

"Eu vinha com todo o entusiasmo. Naquele tempo o Brasil já era falado muito no futebol. Eu gostava muito de futebol. Mas o meu pai dizia que era para vagabundagem e malandros." O pai queria-o a trabalhar no café-mercearia que montara, a Casa Pisco. "Aí trabalhei dez anos. Nunca mais estudei." E como em Portugal só tinha a quarta classe, por aí ficou.

Mas como todos os portugueses de Belém, o muito trabalho foi dando dinheiro. "Dediquei-me aos transportes. Comprei um ônibus - lá é autocarro -, fiz uma sociedade com dois amigos também portugueses, um de Estarreja e outro de Vila da Feira. Hoje temos uma frota de 120 ônibus e 600 funcionários."

Dura há 43 anos e João Pisco está bem aqui. "Nunca pensei voltar. Gosto deste clima maravilhoso, e do calor do povo também, carinhoso, bondoso." Os assaltos não lhe tocaram. "Ando tranquilo a qualquer hora."

Fala no plural quando fala da Amazónia, o que é uma forma de estar em casa: "Já viajei a alguns interiores do nosso estado. Não sei se sabe que o nosso estado é detentor de 20 cidades com nomes portugueses." Quem não sabe? Santarém, Óbidos, Alter do Chão, por aí vai.

Amália não

"Encontrámos esta casa muito desarrumada", diz o secretário de cultura Paulo Chaves, recebendo a repórter junto ao camarim da fadista, cheio de gente à porta. Chaves ocupou o cargo 12 anos, saiu quando o PSDB perdeu para o PT, voltou quando o PT perdeu para o PSDB. No estado vizinho, o Amazonas, a repórter encontrou uma história semelhante: secretários estaduais que se prolongam por anos. E como Paulo Chaves é arquitecto, os anos do seu mandato são marcados por obras suas de impacto na cidade, como o restaurante em forma de grande cabana índia do Mangal das Garças, a que Ana Moura foi levada hoje, ou os restaurantes da Estação das Docas, um point favorito da nova burguesia de Belém.

Quando Chaves fala na casa desarrumada, refere-se ao intervalo do PT. "Este teatro já estava tomado por cupim, nos camarotes, nas frisas, incluindo risco de desabar", diz. "Teve de parar muitos meses." Reabriu em Novembro e esta é a primeira vez que Chaves aqui vê fado, não contando os Madredeus que ele já trouxe aqui. "Agora quero trazer a Mariza, que é uma visão luso-africana do fado. Uma coisa de colonizado: acho que ela canta com um certo tom crítico."

Terá Amália estado alguma vez por aqui? Na ante-sala do camarim, o vice-cônsul Joaquim do Rosário diz achar improvável: "Alguém já me teria falado nisso e haveria memória no teatro." Um retrato, ao menos.

Mas a comunidade portuguesa no Pará sempre foi das maiores do Brasil, 8000 pessoas hoje, 90 por cento concentradas em Belém. A que se dedicam? "Comércio automóvel: a Chevrolet e a Fiat são de portugueses", diz o cônsul. "Transportes, como o senhor Pisco, ônibus e barcos. Padarias." E a conversa sobre como é difícil arranjar bom pão no Brasil só é interrompida pela chegada de Ana Moura, já vestida para jantar.

As comemorações do 10 de Junho seguem amanhã, com almoço no Grémio.

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