Rodrigo Areias e Guimarães

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Rodrigo Areias encontra vários espaços a abrir no centro de Guimarães, para onde vai morar em breve, e convence-se de que a cidade está mesmo a ficar ainda mais bonita Nelson Garrido

O cineasta e produtor já viveu no Porto, em Lisboa e em Nova Iorque, mas regressou há quatro anos à cidade natal. Visitámos a antiga fábrica da família Areias, parte da sua infância e que está hoje transformado num espaço da Capital Europeia da Cultura. Mas antes fomos passear pelo centro histórico, onde o sino da igreja toca o hino da cidade e há arrumadores com tatuagens de D. Afonso Henriques. O realizador está em casa.

Hoje, quando entra na antiga fábrica de Guimarães, a ASA, Rodrigo Areias, cineasta e produtor de 33 anos, continua a sentir o mesmo cheiro da tecelagem. Brincou muitas vezes dentro daquele edifício quando era criança. Descia rampas de bicicleta, entretinha-se com espadas de madeira que os carpinteiros faziam só para ele. Foi no final da década de 1990 que aquela unidade que produzia lençóis deixou de pertencer à família Areias, depois de ter sido erguida pelo bisavô de Rodrigo e de ter passado para as gerações seguintes, até ao pai do realizador. Actualmente está de portas abertas, mas como espaço dedicado às artes no âmbito da Capital Europeia da Cultura (CEC), que este ano é em Guimarães.

Esta é uma transformação que acompanha um pouco a história da própria cidade. Guimarães foi, durante a infância e adolescência de Rodrigo Areias, uma cidade fortemente industrializada, com inúmeras fábricas ligadas à produção têxtil. Hoje, e depois de muitas delas terem fechado portas e ficado ao abandono, chegou a CEC e tirou-lhes o pó, transformando-as em lugares de arte e cultura. A ASA, que queria dizer Agostinho da Silva Areias, tem agora lojas de artesanato, salas para ensaios de teatro e dança, espaço para conferências e exposições.

Rodrigo Areias passou muito tempo ali dentro quando era pequeno: "Por acaso é engraçado. Aquilo continua a ter o mesmo cheiro da tecelagem. Enquanto se está numa exposição de arte contemporânea o cheiro está lá, o padrão do chão está lá... Tenho imensas memórias de miúdo. De andar lá de bicicleta, da carpintaria, faziam espadas de madeira só para nós, só para brincarmos", diz. Aquilo era uma autêntica cidade, tinha creche, supermercado, chegou a empregar 900 pessoas: "Tinha tudo lá dentro. E a malta ia para lá curtir", recorda o cineasta.

Não olha para trás com saudade. Ele próprio acompanhou a metamorfose da cidade, diz que faz parte da geração pós-industrial. "Estamos no coração do Vale do Ave. Guimarães era uma cidade um bocadinho fora em termos de poder de compra. Ainda hoje se nota, mas na altura era violentíssimo. Havia malta com muito dinheiro e isso notava-se. Mas o paradigma da cidade mudou. Agora já não é só têxteis-lar, agora é o turismo, os estudantes, os hotéis estão sempre cheios, agora está mais ligada à cultura, ao turismo", diz Rodrigo, produ dutor de vários filmes, cineasta premiado e autor, entre outros projectos como documentários e videoclips, das obras Tebas e Estrada de Palha.

Fábricas recuperadas

A ASA fica em Covas, no "principado de Covas", brinca. Era lá também que, em criança, o realizador vivia, numa casa grande com quintal: "Covas fica a três quilómetros e 200 metros do centro de Guimarães, mas já não levavam lá o take away", recorda a rir-se. Só lá ia almoçar, jantar e dormir. De resto, estava sempre pelo centro.

Perto da ASA, fica a Junta de Freguesia de Polvoreira, antiga casa do bisavô de Rodrigo. Mais à frente, ergue-se o agora Espaço ASA, da CEC. O produtor esteve com a equipa da capital da cultura na primeira visita ao local: "Vim só acompanhar. Não vou fazer nada na CEC ligado a este espaço. Quando vim cá fazer essa visita, não entrava aqui há uma década", conta. Já o irmão, o arquitecto Ricardo Areias, participou na recuperação do sítio.

Apesar de ter um "fascínio imenso" por fábricas abandonadas, Rodrigo Areias aprecia a transformação que foi feita nestas unidades. O Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura, onde trabalha - está a produzir 52 filmes para a CEC -, também foi uma recuperação de uma fábrica devoluta.

Quando entra no Espaço ASA, o cineasta recua facilmente no tempo: "Isto aqui era maquinaria pesada, tudo máquinas gigantes", vai recordando. "Aqui era uma caldeira também gigante, aqui as oficinas dos electricistas", aponta.

Antes de irmos à ASA, fomos passear a pé pelo centro histórico. Rodrigo entra no Milenário, café com vista para o Largo do Toural. Cumprimenta os empregados. Conhecem-se de filmagens que por ali aconteceram. Andam todos numa cumplicidade pegada por causa da CEC. Alguns participam mesmo nos filmes que Rodrigo está a produzir. O Pedro "engraxador" - que engraxa os sapatos em frente da muralha que tem a inscrição "Aqui nasceu Portugal" - entrou, por exemplo, num filme de Aki Kaurismaki.

Ao meio-dia em ponto o sino da igreja toca o hino da cidade: "Agora é o hino todo, nas outras horas é só um bocadinho", diz o realizador, enquanto acompanha as badaladas a cantarolar.

Sente-se como um peixe dentro de água enquanto deambula pelos largos, praças e ruelas do centro. Cumprimenta o barbeiro, espreita um wine bar que não conhecia. O dono aproxima-se de imediato e insiste em abrir as portas para nos mostrar o espaço que será inaugurado nessa tarde: "Passem cá às 18h, vai haver presunto, vinhos...", convida.

Rodrigo repara que é o terceiro sítio novo que vai abrir naquela rua: "E há muitas casas recuperadas. Percebe-se que a cidade está mesmo a ficar bonita". Ali, naquele centro para onde o realizador se vai mudar - escolheu uma casa junto à muralha -, a novidade não canibalizou o antigo: os barbeiros e as velhinhas lojas de brinquedos, que "devem existir há 500 anos", coabitam, lado a lado, com espaços mais modernos e sofisticados. "Tem piada", diz.

Porto, Lisboa, Guimarães

Rodrigo Areias licenciou-se em Som e Imagem, na Escola de Artes - Universidade Católica Portuguesa, no Porto, e fez um curso de Realização Cinematográfica na Tisch School of Arts, na Universidade de Nova Iorque. Apesar de já ter vivido no Porto, em Lisboa e em Nova Iorque, há quatro anos resolveu regressar à sua cidade natal, onde se instalou com a mulher e dois filhos pequenos. A principal razão foi familiar: "Não me apetecia viver com a minha família em Lisboa, não é comparável a qualidade de vida que tenho cá com a que tinha em Lisboa ou no Porto. E a CEC foi uma boa razão para vir para Guimarães", justifica.

O evento que este ano marca a cidade permitiu "uma confluência de artistas e um partilhar de ideias" que lhe agradam: "Apetecia-me fazer parte desta renovação da cidade. Para que o país tenha pelo menos talvez mais do que uma cidade", espera. E não tem dúvidas de que a CEC vai ser muito mais do que um ano de intensa programação cultural: "A cidade vai ficar diferente. Já está diferente. Jamais será a mesma coisa", defende.

Quando entramos na Adega dos Caquinhos - restaurante de comida tradicional sobejamente conhecido pelos palavrões com que são recebidos os clientes -, a dona Augusta, ou a Gusta dos Caquinhos, dá-lhe dois beijos. "Já mudaste de casa?", quer saber.

A Adega dos Caquinhos também tem sido ponto de paragem para muitos artistas em trabalho na CEC. Por lá passou, por exemplo, a cineasta Margarida Gil durante as filmagens de O Fantasma do Novais. A dona Augusta teve pena de não ter conseguido ir ao São Mamede, em Guimarães, ver o filme. "Tu foste?", pergunta a Rodrigo Areias.

O produtor fica todo orgulhoso com este interesse e participação: "É fácil as coisas acontecerem aqui. Há predisposição para ajudar", assegura. E acrescenta que não é só agora, por causa da CEC, que as pessoas se juntam para dinamizar actividades: "Guimarães tem o maior cineclube do país. Há um tecido associativo muito forte. Faz parte da própria cidade."

As tatuagens

"Rodrigo, tudo bem?", grita-lhe do Largo João Franco o arrumador de carros mais conhecido e acarinhado de Guimarães, Sousa. O cineasta pára para dois dedos de conversa. Sousa tem uma tatuagem de D. Afonso Henriques no braço. Não é o único por estas bandas. Há um polícia vimaranense que tem a Batalha de São Mamede tatuada nas costas, com um nível de detalhe impressionante, conta o cineasta. "Aqui toda a gente acha que descende do Afonso Henriques e eu acho isso muito engraçado", sorri.

Não há dúvidas: Rodrigo está em casa. Garante que, mesmo em termos profissionais, ter uma produtora audiovisual como a Bando à Parte numa cidade mais pequena é "divertido". "Por um lado é muito mais difícil, há mais viagens, é mais caro produzir filmes em Guimarães do que em Lisboa, porque está lá tudo. O material técnico e os recursos humanos são mais escassos cá, mas filmar em Guimarães é mais fácil. É possível cortar as ruas em cinco minutos, a polícia chega num instante, podemos filmar num palácio, é preciso menos autorizações. As pessoas têm vontade de ajudar e de fazer parte", explica.

O produtor tem mais dois irmãos -todos regressaram a Guimarães, e todos estão a viver no centro, perto da muralha. "Engraçado, não é?", questiona-se. É o fascínio das praças, das ruelas, das casas antigas, da proximidade, do não ter de pegar no carro, do cumprimentar as pessoas na rua.

Houve tempos, porém, em que esta proximidade pesava sobre o cineasta: "Quando eu era adolescente, a cidade era altamente claustrofóbica, ou parecia-me. Tinha vontade de me ir embora. Percebo que para um adolescente não seja assim tão fácil, porque não te sentes propriamente anónimo e isso era um bocadinho complicado de gerir", explica.

Mas não foi só a cidade que mudou, o próprio Rodrigo também: "Hoje sinto-me bem. Neste país, não me apetece viver noutro sítio. Ou no estrangeiro ou aqui. É uma cidade pequena, claro, mas hoje a senhora das castanhas pergunta-me pelos meus filhos e eu gosto, na altura era diferente. Hoje há mais gente a viver na cidade. Mas eu também mudei", reconhece.

O facto de, nessa altura, muitos jovens saírem da cidade para estudar, entre os 17 e os 25 anos, fazia com que existisse "um buraco geracional imenso". Mas isso também se alterou: "Hoje há a Universidade do Minho e não só. Há mais concentração de massa crítica no centro da cidade. Deixou de ser um centro envelhecido e passou a ganhar uma vida incrível, até em termos de animação nocturna", diz.

Omeletas nos Caquinhos

Rodrigo Areias também se recorda de, nos tempos da sua adolescência, não haver muita produção cultural e artística, apesar de haver oferta: "Havia, e há, escolas de música, mas não criação espontânea, como fazer uma banda de rock. Nisso, havia um défice pesado e aí a CEC está a ser determinante", diz.

Estamos agora nas praças. É de manhã e há muita gente, de todas as idades, nas esplanadas da Praça da Oliveira. Rodrigo diz que as pessoas gostam de sair à rua. Apesar de aquelas praças continuarem a ser ponto de encontro obrigatório para os jovens, hoje há lá muitos avós e netos, crianças a correr de um lado para o outro.

Durante a adolescência do realizador, o ambiente era um pouco diferente. Na rua ao lado, conhecida como Rua Nova, havia prostituição; debaixo dos arcos, vendia-se droga. Nem por isso deixava de ser o sítio mais frequentado por todos os adolescentes e jovens adultos. "Nunca ligámos puto ao castelo e ao Paço dos Duques. Nós ligávamos era a isto, onde vínhamos beber copos", diz, referindo-se às praças da Oliveira e de Santiago.

Há bares que se mantêm desde então, como o El Rock ou o Tásquilhado. Abriram outros novos, foram poucos os que desapareceram. Havia um café, mesmo em frente ao Instituto Britânico, na Praça de Santiago, onde os miúdos iam comprar gomas e outras guloseimas, que deu lugar um café/bar renovado e mais arejado: "Aquilo era um tasco fedorento que vendia bagaço e gomas", recorda, entre risos, o realizador.

Mais do que o castelo em si, o Paço dos Duques e todos os outros postais da cidade, o que realmente inspira Rodrigo Areias é o ADN vimaranense, a forma como olham para o património, para as tradições, para o que consideram a sua identidade.

E gosta da forma calorosa como as pessoas são acolhidas, mesmo que seja entre abraços e palavrões, como na Adega dos Caquinhos. À hora de almoço, estava lá uma equipa estrangeira a filmar e um deles não comia carne. Já não é a primeira vez que Gusta dos Caquinhos tem de fazer uma omeleta para os vegetarianos que agora lhe entram pelo restaurante dentro e recusam a tradicional vitela. A dona Augusta resmunga, resmunga, diz frases intraduzíveis, com palavrões que o dicionário nem sonha, mas lá faz as omeletas... E com todo o gosto, diga-se. Bem-vindos a Guimarães.

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