Federalismo e federalismos

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A discussão sobre o federalismo, velha na Europa, urgente depois da Segunda Guerra Mundial, inevitável face à crise do euro, vai obrigar a um debate em Portugal, uma das principais vítimas do actual impasse na construção europeia.

Se estamos atentos ao que se passa na comunicação social, a problemática do federalismo entrou na ordem do dia num país que tem andado alheado deste tipo de debates: é enorme o número de artigos de opinião que propõem, como medida de fundo para se ultrapassar a atual crise do euro, que se avance resolutamente para a criação de uma Europa Federal.

No passado, a generalidade da classe política portuguesa apenas se preocupava com as vantagens da integração, indiferente aos interesses nacionais a longo prazo, quando se devia manifestar na defesa do modelo de integração mais adequado para uma Europa plurinacional e pluricultural. Sendo nota do oportunismo reinante o uso de expressões como a de "estar no pelotão da frente".

Para participarmos neste debate, sobretudo por estarmos filiados em partidos diferentes (sempre se manifestaram a favor do federalismo europeu correntes liberais, conservadoras, democratas-cristãs, socialistas e comunistas), vamos referir-nos a tomadas de posição, discutíveis (como são todas), neste domínio, de líderes políticos portugueses.

A atual crise do euro traduz-se em movimentos de sentido oposto. Por um lado, estimulando as tentações nacionalistas. Por outro, fomentando a adesão ao federalismo.

A primeira tendência conduzirá à desagregação da União Europeia, com repercussões dramáticas também a nível mundial. O reforço da componente federal dar-nos-á garantias de que, no futuro, não haverá exigências impostas aos Estados que não sejam compensadas com soluções e medidas de solidariedade federal, garantidas constitucional e judicialmente. Um pacto de estabilidade será compensado com a assunção federal da dívida dos Estados nacionais, em termos que partam do estatuto e da experiência da Reserva Federal americana. Numa Europa Federal, não teria havido a crise relacionada com a dívida soberana. Eventualmente, não teria mesmo havido, a montante, descontrolo neste domínio. Retrospectivamente, surpreende a pressa em entrarmos no euro sem um enquadramento federal.

Vamos discutir, para dar vida ao debate, opiniões manifestadas por importantes políticos da atualidade. Como já o referimos noutro artigo aqui publicado, Francisco Louçã, ao mesmo tempo que se afirma antifederalista, defende a construção europeia segundo o modelo de duas câmaras, uma representando os Estados em absoluta igualdade, outra os cidadãos segundo o modelo da proporcionalidade.

Concordamos com as duas câmaras. O que é federalismo democrático puro e duro. Foi esta a proposta avançada por Alexander Hamilton, o pacto federal, aprovado na Convenção de Filadélfia de 1787, criando-se assim os EUA.

Recentemente, também Paulo Rangel, federalista e principal chalanger de Passos Coelho, em artigo de opinião neste jornal, defendeu, compreensivelmente, um Monti preocupado com a lentidão da ultrapassagem da actual crise do euro dependente de decisões parlamentares, especialmente do parlamento alemão, mas avançando com a noção de que a construção europeia é um problema de política externa da exclusiva competência dos governos.

Discordamos. Não é, nem a opinião pública europeia o vai consentir em mudanças profundas na arquitectura europeia sem debates nacionais, votações parlamentares e referendos. É o preço da democracia e da transparência, sem o que falhará a adesão popular. A exigência de se fortalecer a componente participativa da democracia agravou-se pela crise do euro, que aumentou a desconfiança em relação à classe política e a democracia de delegação.

Várias vezes, no século passado, os avanços federais foram inviabilizados, sobretudo pela França. A consequência foi, como muito bem referiu Viriato Soromenho Marques (Federalismo, Ed. Esfera do Caos), o reforço da influência dos "funcionalistas" agora esgotada: "de forma insegura, atabalhoada e ziguezagueante, os acontecimentos da última década da construção europeia têm revelado que o funcionalismo tem limites evidentes. À tecnocracia falta essencialmente o suplemento de alma e legitimidade que permite encontrar e vencer os momentos de crise e angústia". Importa reconhecer que o funcionalismo, sem prejuízo de ter permitido avanços significativos no processo unificador, revela hoje limites inultrapassáveis.

Havendo componentes federais na União Europeia (traduzidos, desde logo, em muitas matérias sujeitas a voto por maioria e aprovação simultânea dos representantes dos governos e do Parlamento Europeu assim como na própria eleição direta deste), surpreende que um deputado europeu queira entregar apenas aos governos nacionais a definição das políticas europeias e sobretudo da futura organização constitucional da Europa. O tal "suplemento de alma e legitimidade" só pode vir da discussão democrática sobre a construção europeia, debates e votações parlamentares, de referendos nacionais ou europeu, ou de uma convenção europeia exclusivamente com esse fim, com delegados eleitos por todos os Estados-membros da União Europeia, que legitime os avanços federais e o seu enquadramento.

Também António José Seguro propõe, como medida federal, a eleição por sufrágio directo do presidente da Europa.

Discordamos. Embora bem-intencionada, não deixa de ser uma proposta ingénua.

Não se pode avançar com este tipo de propostas, sem comparar os diferentes modelos de federações democráticas (e discutir o que mais convém a Portugal e à maioria dos Estados integrados na UE): alemã, americana, austríaca, brasileira, canadiana, helvética, indiana, etc.

Duvidamos, seriamente, que o modelo presidencialista seja o mais adaptado para a Europa. Além de não parecer o mais adequado a uma UE composta por tantas antiquíssimas nações e Estados, constituída por, entre outros, eslavos, anglo-saxões, latinos, gregos, turcos, com referências culturais diferentes, línguas e tradições religiosas diversas. Dificilmente a generalidade dos cidadãos se poderia identificar com um presidente que encarne uma nacionalidade, eleito por sufrágio direto. Julgamos mais plausível uma solução soft: a de reforçar a legitimidade de um Governo europeu exercido pela comissão europeia em regime parlamentarista, investida por um parlamento europeu remodelado na sua constituição e competências.

O mais importante que a tradição federal americana e suíça, as mais antigas, nos aporta é a existência de duas câmaras parlamentares, uma representando em absoluta igualdade os estados ou cantões, a outra os cidadãos segundo o modelo proporcional, com a necessária votação das leis nas duas câmaras.

Mas devíamos estar mais atentos à constituição da ainda erroneamente chamada Confederação Helvética. O modelo americano e suíço são modelos que já deram provas. Mas o modelo helvético, não presidencialista, mas parlamentarista, que tem um colégio presidencial (conselho federal) como órgão supremo da federação, num país que reúne diversos povos, culturas, línguas e religiões, parece-nos ser o mais adaptado à construção europeia. A Suíça é uma miniatura da Europa. Deseje a Europa ser uma grande Suíça!

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