O pano liso das palavras secas

Movido por um humor e um sentido expressivo que evocam Bocage ou O'Neil, Pedro Tamen foi construindo uma extraordinária obra poética que prolonga em alguns aspectos, tanto temáticos como vocabulares, a herança de Vitorino Nemésio.

1. Folheando revistas como "Ler", ou seguindo polémicas como a que contrapõe Eugénio Lisboa a Fernando Venâncio nas páginas do "JL", ficamos às vezes com a sensação de que as "guerras de gosto" se mantêm ainda vivas: quantas vezes não gastamos o melhor do nosso latim a tentar demonstrar que se alguém elogia o autor A faria melhor em elogiar o autor B, que tem sido, para utilizarmos a forma consagrada e mesmo extenuada, "injustamente esquecido". Acontece que ninguém pode ter a pretensão de escrever sobre todos os livros, como se estivesse no lugar justiceiro de um Deus absoluto. Quem escreve nos jornais tem "os seus autores" e faz o possível por convencer os outros, utilizando os meios retóricos de que dispõe, de que esses autores merecem um esforço de leitura. Quem acha que outros são injustamente esquecidos só tem que pegar activamente na pena para os lembrar, e não andar a puxar a aba do parceiro. Evitemos aqueles truques rasteiros de adolescência retardada com que se pretende convencer o auditório, ao sabre e à cotovelada, de que (é apenas um exemplo) "quem não elogia Adília Lopes não é bom chefe de família" ou é tão burguês que receia uns bons palavrões na sopa. Há boas razões para gostar de Adília Lopes, há também boas razões para achar que aquela desmistificação do lirismo sentimental foi chão que deu antiquíssimas uvas - o que não vale a pena é chatearmo-nos uns aos outros por causas tão pífias.2. Dito isto, à laia de desabafo, mas sobretudo para criar balanço, tentemos prosseguir caminho, e nada melhor para isso do que escolher um dos "meus autores" para dar notícia do que me move e interessa. Dele acaba de sair um livro: estou a falar de Pedro Tamen, que publicou "Memória Indescritível" na recém-formada, e esperemos que de longa e feliz vida, editora Gótica. Pedro Tamen não é dos autores para quem o lirismo tem de ser necessariamente ascensional. Mas também não é daqueles que reduz a poesia a alimentar-se de uma polémica anti-ascensional - um desses alquebrados reactivos que vivem agarrados ao que detestam. Procura encontrar a medida certa - um pouco como, no conhecido exemplo de Pascal, cada um de nós na vida precisa de olhar o quadro que tem à frente nem demasiado perto, para não se perder em pormenores, nem demasiado longe, para acabar por não ver coisa nenhuma, mas começando por encontrar a distância certa. Ora essa distância varia com as idades da vida. E é por isso que, na actual perspectiva de Pedro Tamen, na física da sua metafísica, uma cadeira é um bem precioso. Vamos ver porquê.Talvez venha a propósito lembrar um brevíssimo mas estimulante ensaio de António Pinto Ribeiro que tem precisamente por título "Por Exemplo a Cadeira" (Cotovia). Contrariando a tendência para "o corpo esvoaçante do ballet romântico", Pinto Ribeiro evoca as primeiras modernistas do século (Loie Fuller, Isadora Duncan, Maud Allan, Ruth Saint-Denis) para nos falar duma aprendizagem da queda - isto é, duma "arqueologia da descida". Como escreve António Pinto Ribeiro, "o recurso à cadeira supõe a consideração de uma série de acções inequivocamente humanas: os ritos sociais -, como as refeições, as reuniões planeadas -, de integração cultural -, como a leitura. Em particular, elas definem o homem como ser que, em determinados momentos do seu percurso histórico, necessita de conter a energia das acções e dos movimentos para pensar essa mesma energia".Poderíamos ir mais longe: no momento em que a cadeira institui "a boa distância" em relação à vida, ela permite pelo menos três coisas: atenuar o impacte da queda (ou, se preferirmos, o pressentimento da morte), estabelecer o círculo de uma convivialidade realista e reconfortante, promover o trabalho da memória face ao indescritível do que em certos momentos foi sobrevoo vivido, atapetado e enlevado de todas as cadeiras e voo verbal da poesia.Se "nesta cadeira me sento", escreve Pedro Tamen, isso serve sobretudo para expandir uma fala em "ento" por onde passa, lentamente, não apenas aquilo em que me lamento e avelhento mas também ainda o vento de alguma invenção. E do "ento" ao "igo" em que "prossigo", Pedro Tamen vai buscar o "abrigo", o "amigo e o inimigo", o "pascigo" ou o "castigo", mas também, através de um escapulido "irrigo", passa do "lento" ao "cintilante coração" - "de vez"?Percebemos assim como, nesta poética, muita da circulação se faz a partir de nós fónicos que se tropeçam e torpediam em tropelias verbais (querem um exemplo?: "já todas as cores se benettonam nos meus olhos") que de quando em quando se iluminam até "ao grande círculo azul em cujo centro / tu dizes eternamente: o sol nasceu".Mas a cadeira lá está, como elemento estruturante de uma arte lírica. Escreve o autor: "Cheguei ao fim. Andei de pé descalço / sobre os calhaus do rio / senti / a água fria, as vozes de outro / lado. Ergui-me na cisterna, ouvi / pelo tabique o toque do relógio / e desci noutra casa, ao longe, / a escada estreita. Mas sempre / em tudo isso sentei-me na cadeira." Porque "é na cadeira que tenho de sentar / o cu dorido de toda a eternidade".3. Movido por um humor e um sentido expressivo que evocam Bocage ou O'Neil, Pedro Tamen foi construindo uma extraordinária obra poética que prolonga em alguns aspectos, tanto temáticos como vocabulares, a herança de Vitorino Nemésio. Se "Memória Indescritível" nos toca profundamente, é não apenas por este jeito de o poeta se colocar na posição da "bicho da terra" (e aqui reencontramos o melhor dos diversos casulos de Nemésio), como pela possibilidade de jogar sempre em dois tabuleiros simultâneos, que, para aquele que se coloca de entrada na cadeira, tem a ver com a relação com o chão ("Sento-me na cadeira / e olho para o chão / mesmo à minha beira / abre-se o vulcão") ou com o "terceiro elemento" ("Veio do mar contado, mas caiu do céu, / e era afinal um terceiro elemento / a completar-se à noite, junto ao fogo".)Este "terceiro elemento" reacende todos os mecanismos da memória. E por isso a infância sobe lentamente nas paredes do poema. Mais som do que imagem, mais eco do que presença. Em surdina: "e a memória irrompe qual um vento / imitação de sons de vozes tiros / num escuro que nada mais já pode iluminar". Neste ponto, há uma imagem que insiste, significativa: a da cisterna. No poema final, temos "ergui-me na cisterna, ouvi / pelo tabique o toque do relógio". Páginas antes, já encontráramos o fascínio desta experiência: sentir um solo feito de vazio e água, capaz de ganhar assim, num ápice, essa ânsia de coincidência que só uma vertical permite: "Nos pés, isso sim, o oco e a água / mundo verticalíssimo, rápido e sagaz". Porque a coincidência é, isto é, foi, ou melhor, está sempre no limite de ser - possível: "Um vento surdo liga / o A e o B. É leve o alfabeto. / Do figo traz o estorninho / a polpa. Leviano universo, / mais do que leve, airado / pedestal de nula estátua. / Contudo, em um momento existem / o vento, o voo, os pontos / de partida e chegada. / Em um momento, digo. Um só. / Depois a nova coisa ignora / outra coisa anterior. Não há."Se a possibilidade de manter a bifurcação em aberto (entre a terra e o ar) existe, é porque o poema se constrói a partir de uma espécie de zeugma reiterado. Vejamos a definição desta figura de retórica: trata-se de suspender na mesma expressão dois complementos heterogéneos entre si. Exemplo: "Pedro que sou, reduzo / o sapato em que meto / a moído parafuso / e a desgosto secreto". Quase sempre esta heterogeneidade reforça a diferença entre o muito concreto (neste caso, o moído parafuso) e o abstracto (desgosto secreto). Mas deste modo se acciona o mecanismo da poesia e da respiração (outro zeugma, aliás): entre os pés que produzem a marcha e a boca que respira o caminho. É pois nos solavancos do destino (e o uso insistente do transporte, fazendo que o sentido escorregue de um verso para outro, acentua este efeito) que o poeta encontra o ritmo secreto da sua existência. E assim, no "pano liso das palavras secas", é que algo vem "à tona do sonho de que o poema é feito": "ter havido um som, uma verdade, um antes".

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