Máscara, mato e vida

Obra densa e emotiva, "Máscara, Mato e Morte" apresenta as notas etnográficas e analíticas da investigação do antropólogo Paulo Valverde em São Tomé. Publica-se agora em edição póstuma.

Esta é uma obra inacabada mas inteira. Obra completa de itinerâncias e etnografias entre São Tomé e a academia; deambulações analíticas entre "performances" teatrais e quotidianas e cosmologias e terapêuticas. É incontornável - muito mais numa altura em que o antropólogo se assume também como viajante - falar aqui de viagem, e por isso não tentarei ser original. Paulo Valverde era um residente. Tornou-se num residente em São Tomé e a progressão das notas do seu diário vai dando conta dessa passagem. Primeiro, ultrapassa a "síndrome do turista", o que proclama como grande êxito em carta ao orientador do seu doutoramento (João Pina Cabral, que compilou estes textos). Depois, é tomado como professor (era, de facto professor no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa), como jornalista, como elemento de um "projecto de cultura" (Valverde esteve inicialmente ligado à Cena Lusófona, projecto financiado pela Secretaria de Estado da Cultura, depois a sua pesquisa para doutoramento foi financiada pelo Programa Praxis XXI). Mais tarde, julgam-no pastor, espião, até ele alcançar o estádio almejado de confusão com o campo de análise. No caso, passou, então, a ser apresentado como aprendiz de curandeiro.Houve encantamento que o ligou de forma mais definitiva a São Tomé, mas também houve estratégia e ponderação na opção pelo sedentarismo clássico da antropologia moderna, por um trabalho em residência: o incómodo "da devassa da vida privada, o não poder dispor de um 'quant a soi' de que (...) como solitário por vocação" necessitava, o risco de alienação da "independência face aos diversos grupos" foram riscos analisados.Apesar do reforço táctico da residência, adivinha-se que preferia a deambulação e que gostava de ser visto como um viajante. Indícios estéticos dessa opção são as cartas que escreveu - mas das quais guardava registo -, o tom epistolar de algumas notas, mesmo as referências a Malinowski - que não são as que escandalizaram aquando da publicação do Diário do mestre polémico, mas antes a evocação da produtividade espontânea dos passeios matinais (aos quais Paulo preferia os crepusculares). Numa nota já de 1998 acaba por assumi-la: "Posso perder o tão decantado 'sentido de lugar', mas, em contrapartida, 'pratico o sentido da itinerância' e calcorreio muitos lugares, a desoras e, algumas vezes, com o corpo que Deus me deu." Isto diz ele, com a ironia que frequentemente irrompe, depois de, em nota anterior, se ter referido aos espíritos que invadem os quintais como "tendo sentido de lugar, apesar de serem, definicionalmente seres a-espaciais".Estes "exercícios de itinerância", que é como gosta de apresentar o seu trabalho, justifica-os por mimetismo com o universo em que se move agora, preferencialmente os quintais dispersos e distantes dos curandeiros. O antropólogo "andou mato mato" (quer dizer em forro, de mato em mato, de visita e consulta a vários curandeiros, mas também em vagabundagem mais ou menos libertina). E nestas itinerâncias descreve com o mesmo detalhe quase obsessivo e com objectividade possível as caminhadas e os seus destinos; a paisagem densa e povoada e os locais, "performances" e intervenientes da possessão e da cura, nos seus excessos, todos num quadro próximo do hiper-realismo. Esta captação quase pictórica (mas nunca pitoresca) do universo tem a ver com outra opção, embora não tão deliberadamente exposta, de mimetismo com os são-tomenses. Valverde fala-nos dos espectadores "flâneurs, voyeurs" do tchiloli (as soberbas encenações do ciclo carolíngio que foram o seu primeiro foco de análise); diz-nos que uma pessoa se pode deslocar a um djambi, a uma sessão de possessão, pelo mero gosto voyeurístico, na esperança de assistir a alguma das automutilações que são muito faladas; e depois descreve-nos arenas várias onde o olhar excessivo se pode tornar perigoso: a festa de Santana, na sua multifocalidade, ou a Praça, incluindo a Feira Grande e o Mercado do Ponto. Estes são lugares em que o olhar, que é um "locus de agencialidade" por vezes excessiva, se transforma potencialmente em olho leve, ou em olho que fala, em olho verborreico de efeitos poderosos e temíveis. Mas os olhos podem ser "também um dispositivo de clarividência, de uma hipervisualidade que atravessa as fronteiras empíricas". Ora, nessa acepção (e só nessa), Valverde parece por vezes empreender exercícios de voyeurismo táctico e quase militante. Coloca-se ao lado dos são-tomenses, observando a dimensão espectacular das "súbitas acelerações sociais" - por exemplo, uma briga violenta desencadeada por uma querela de ciúmes entre duas raparigas - e descrevendo, estupefacto, mas lúcido, o "itinerário do sofrimento": a procissão que levou uma das meninas na sua linha de fuga "em direcção primeiro pela Av. Geovani, para se deter em casa do pai da rapariga, seguindo depois uma paralela ao estádio do Riboque para se deter, de novo, junto a uma oficina de reparação de automóveis e motos e desaparecer, por fim, na direcção da Praça".É essa confiança no olho clarividente que pode também explicar a preponderância, ao longo das suas notas, de San Andreza, a primeira curandeira que Valverde visitou (e de outras figuras excessivas). O que o marcou foi o excesso performativo, a exorbitância histriónica, "o sentido provocatório que, muitas vezes, domina a relação dos curandeiros com a sociedade são-tomense". A conjugação destes exercícios miméticos de itinerância e de voyeurismo converge nas reflexões dispersas que empreende relativamente às trocas de fotografias entre antropólogo e informantes e aos efeitos de uma distribuição desastrada e desestabilizadora. Essas reflexões liga-as a outras preocupações mais centrais que respeitam, por exemplo, a questão do nome. Não digo mais: apenas que em São Tomé se diz - sobretudo quando se fala em crença na eficácia dos curandeiros e dos feiticeiros - que "tudo o que tem nome existe". Esta conferência de uma dimensão política ao nome presta-se evidentemente a múltiplas negociações e interpretações, das quais a mais óbvia é o recurso a diferentes nomes próprios - nomes de enguiço, nomes de saída, nomes para o bem e para o mal -, evidenciando, por um lado, a capacidade de constituição de discursos e de "performances" de contrapoder, através da utilização de nomes alternativos, e, por outro, a conceptualização da sociedade e do indivíduo com zonas mais e outras menos privadas.Também aqui o antropólogo parece mimético (embora isso não implique, em caso algum, paternalismo). Como ele diz, no terreno e face a situações menos confortáveis: "Por obstinação, porque gosto de ser assim, marco uma diferença, não sou um imbecil irreverente." Manteve bem claros, na sua escrita e na forma como a organizou, os limites entre esferas mais e menos privadas da sua pessoa. Na mais pública, foi grande, como agora sabemos. Na mais privada, como adivinhamos, e dizem amigos e colegas, foi inteiro.

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