Como Salazar derrotou Kennedy

Na política colonialista dos anos 60, Portugal estava bem acompanhado. Kennedy tentou romper, mas a importância estratégica da Base das Lajes obrigou a América a render-se a Salazar. Um livro de Luís Nuno Rodrigues põe em evidência o apoio internacional ao ditador.

Em Maio de 1960, Eisenhower esteve em Lisboa e, perante um Salazar alarmado com "a criação de um multitude de novas nações independentes" em África, defendeu que o nacionalismo poderia ser o antídoto ideal para a penetração do comunismo. Convencer os povos africanos que, se optassem pelo Ocidente, teriam "melhor oportunidade de melhorar o seu modo de vida" era a teoria do Presidente americano, da qual evidentemente Salazar discordou.Foi esta uma das primeiras tentativas de persuasão por parte dos Estados Unidos, velho aliado com quem Portugal tinha renovado o acordo das Lajes em 1957, para abalar o mito da nação unida do Minho a Timor. O processo é excelentemente retratado no livro de Luís Nuno Rodrigues, professor do Departamento de História do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e Empresa (ISCTE) - "A Crise de Uma Aliança - A Relação Luso-Americana entre 1961 e 1963". O livro é uma "adaptação" da tese de doutoramento, que recebeu o prémio da Fundação Mário Soares em 2001. Recentemente, foi-lhe atribuído o prémio Aristides Sousa Mendes.Mas não é com Eisenhower que as relações entre Portugal e Estados Unidos se agravarão: em 1960, na Assembleia Geral das Nações Unidas, os Estados Unidos votaram favoravelmente uma condenação genérica de "todas as formas de colonialismo", mas quando foi preciso decidir "se os territórios administrados por Portugal poderiam ser incluídos na designação genérica de 'territórios não-autónomos', os Estados Unidos mantiveram uma posição de prudente abstenção", escreve o autor.É com Kennedy que as relações luso-americanas se vão tornar mais críticas. A primeira tensão acontece poucos dias depois da tomada de posse do novo Presidente dos Estados Unidos, na sequência do assalto ao Santa Maria. As informações de que os conspiradores dificilmente se poderiam identificar com o comunismo leva a administração americana a recuar na ajuda inicialmente prometida a Salazar.O ano de 1961 é, de resto, chamado o "ano de todos os perigos" no interior do regime e nas suas relações com os Estados Unidos da América. O golpe tentado por Botelho Moniz ficou sempre suspeito de ser uma "conspiração" apoiada pelos americanos. A passagem à acção de Botelho Moniz acontece depois de eclodirem as primeiras revoltas em Angola - o 4 de Fevereiro em Luanda, e a ofensiva da União dos Povos de Angola, liderada por Holden Roberto, a 15 de Março, no Norte do país. Por essa altura, cresciam as pressões da administração Kennedy para deixar de apoiar a política colonial do Governo português. É "difícil e desvantajoso para os interesses ocidentais apoiar publicamente ou manter o silêncio sobre as políticas africanas dos portugueses", escreve Dean Rusk, secretário de Estado dos EUA, em carta de instruções enviada para a embaixada de Lisboa.A nova política africana, sustentada pela maioria da administração Kennedy, defendia "a aproximação dos americanos aos movimentos de descolonização, a fim de suster a penetração política da União Soviética em África". O Departamento de Estado avisou Salazar de que, "caso Portugal não alterasse a sua política sobre Angola, os norte-americanos viam-se obrigados a assumir uma atitude crítica em relação ao colonialismo português" - o que viria a redundar na votação favorável de uma resolução apresentada ao Conselho de Segurança sobre a situação em Angola.Como escreve Luís Nuno Rodrigues, "a votação norte-americana no Conselho de Segurança foi um marco fundamental, simbolizando uma verdadeira inversão da prática corrente até final de 1960". Estava aberta a crise, que, "apesar do regresso a um posicionamento mais moderado dos norte-americanos em 1962 e 1963, marcaria de forma indelével o período em que J. F. Kennedy exerceu a presidência dos Estados Unidos". Traduzia-se a crise, não só no seio das Nações Unidas, mas também através dos contactos dos EUA com movimentos nacionalistas, nomeadamente a União dos Povos de Angola, de Holden Roberto. Em 1961, no início da guerra em Angola, a compra de armas aos americanos sofre dificuldades várias.Mas o historiador assinala "a velocidade surpreendente com que a crise acabou por ser atenuada". A nova viragem da política dos EUA, que "se tornaria muito mais consentânea com os interesses portugueses" explica-se pelo braço-de-ferro que Salazar decidiu empreender com a administração Kennedy, recusando renovar o acordo da Base das Lajes "e todo o complexo dispositivo de bases e instalações norte-americanas no arquipélago dos Açores", consideradas "cruciais pelas autoridades militares norte-americanas, não apenas no caso de eclodir uma deflagração mundial, como também em tempo de paz". Durante a crise, os militares avisam continuamente Kennedy da importância daqueles "poucos quilómetros de asfalto". O debate obriga os americanos a escolherem "Angola ou Açores". Mas Salazar não se limitou a ameaçar a não renovação do acordo: iniciou uma verdadeira política de "lobbying" nos Estados Unidos, nomeadamente recorrendo aos serviços profissionais da firma Salvage & Lee e, noutro plano, "prosseguiu deliberadamente uma política de diversificação de apoios e de alianças que passou, nomeadamente, pelo reforço dos seu relacionamento com a França e a República Federal da Alemanha". Datam daí as negociações para as bases alemã em Beja e francesa na ilha das Flores (Açores). Luís Nuno Rodrigues conclui, neste estudo exaustivo, excelentemente escrito e de leitura acessível ao leigo, que "mesmo durante os tempos mais complicados das relações luso-americanas, Portugal, ao contrário de se encontrar 'orgulhosamente só' continuou a contar com o apoio político e diplomático, com a ajuda financeira e com o equipamento militar de países como a Inglaterra, a França e a República Federal da Alemanha". Assim, o regresso da política dos EUA à normalidade também se deveu "à falta de apoio encontrado pelos norte-americanos para a sua política de confronto com Portugal".Para o autor, "parece ter pouco fundamento o 'autoproclamado' isolamento internacional do Governo português". Salazar defendia a guerra nas colónias como uma batalha em que "combatemos sem espectáculos e alianças, orgulhosamente sós". Mas a expressão terá sido, "acima de tudo, um tópico utilizado pelo discurso oficial do regime para demonstrar a alegada superioridade moral e política de Portugal", enquanto, ao mesmo tempo, "assentava como uma luva às pretensões e aos discursos das oposições", empenhadas em propagandear "o isolamento do regime como prova do seu anacronismo". Neste livro, o mito é integralmente desmontado.

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