Bendito entre as mulheres

Hannah, Ingrid, Barbara, Irm ou Julianne cresceram nos filmes de Fassbinder. E hoje falam sobre o homem das suas vidas, o Pigmaleão que lhes deu a vida que elas não sabiam que existia dentro delas.

O "novo cinema alemão" morreu com a morte de Rainer Werner Fassbinder, em 1982, e no vazio que ficou ouve-se ainda o pranto das viúvas - as mulheres que tiveram um papel central na obra e na vida do genial alemão, que foram atraídas como os insectos para a luz, para que ele as moldasse e lhes desse a vida que elas não suspeitavam que existia dentro delas.Foi assim com Hannah (Schygulla), Ingrid (Caven), Barbara (Sukowa), Irm (Hermann) ou Julianne (Lorenz). Algumas tornaram-se estrelas, outras nem por isso, algumas foram esposas e amantes episódicas de um cineasta homossexual, mas todas elas ficaram em perda, sem autoridade que as guiasse."Fassbinder et les femmes", documentário que o Arte exibe hoje, fala sobre elas. É um retrato de grupo com fantasma em fundo e foi realizado por Rosa von Prauheim, companheiro de Fassbinder nos primeiros tempos do "novo cinema alemão" e com quem sempre teve relações tensas (Prauheim admite: sempre sentiu ciúmes do sucesso do autor de "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant"). Diz Prauheim que esta é, por isso, uma visão "fascinada" e simultaneamente "invejosa" do seu contemporâneo. "A maior parte dos seus filmes são sobre mulheres. E entre todas essas mulheres, ele era sem dúvida a mais forte. Ele amava o seu desespero e fazia disso a matéria dos seus filmes. Fassbinder podia identificar-se com as mulheres enquanto homossexual de uma maneira que não é acessível aos outros homens."Instrumento de terror. Enquanto a vida íntima de Fassbinder foi marcada (de forma trágica, até) por três intensas relações masculinas - perante as quais, o breve casamento com Ingrid Caven, no início da década de 70, ou a partilha dos últimos anos com Julian Lorenz, que se tornou montadora da sua obra, fazem figura de recolhimento do guerreiro - os filmes eram o espaço de projecção dos seus fantasmas e obsessões, variações fantasiosas, irónicas e cruéis da sua vida. E aí quem mandava eram as mulheres. E aí ecoavam as tensões e jogos de poder que ele imprimia no interior do clã que o rodeava, que era o laboratório humano onde testava ao vivo (assim se testando a si próprio) os limites emocionais - e onde, predador de almas, causava as maiores devastações em nome da experiência das coisas.Muitas vezes retratadas como vítimas do poder masculino, as mulheres nos filmes de Fassbinder eram sempre capazes de transformar a vitimização em instrumento de terror para cercar os homens. Eles, ao contrário, como dizia o realizador, "são tão simples... e tão primitivos na forma de se exprimirem". Por isso se identificava tanto com elas, e com essa visão tão pouco politicamente correcta delas (muita da perversidade de Irm Herrman em "As Lágrimas Amargas..." é auto-retrato dele). Isso irritou o dogma feminista (como as suas personagens homossexuais tanto irritaram o dogma da representação "gay"), que via sinais de "misoginia", quando o que lá estava era auto-exposição do cineasta e dos seus preferidos mecanismos de subjugação. Aquele sobre o qual Ingrid Caven disse um dia: "Nunca sabíamos se a mão de Fassbinder nos ia acariciar ou bater", era, simultaneamente, tirano e figura de aconchego paterno, capaz de olhar para Hannah Schygulla e dizer: "És a mais bonita, és a melhor, vou fazer de ti uma estrela", capaz de dar à mãe, Liselotte Eder, papéis de mãe opressiva e fria para se vingar da sua infância emocionalmente abandonada, e obrigar Irm Herrman a representar os mais desagradáveis papéis sob a ameaça de, se ela recusasse, a ignorar no filme ou na peça seguintes - ou seja, de maneira geral, exigia provas de amor e retirava-as como jogo de punição ao critério do "príncipe".Mas esse grupo de dependentes de que se rodeava não podia deixar de ser visto como sincera tentativa de encontrar uma família alternativa e uma utopia de um colectivo artístico. E era capaz de questionar esse papel de cruel guru que praticava na vida real as crueldades que as suas personagens praticavam nos filmes, como o fez, de forma desesperada e nostálgica, em "Cuidado com Essa Puta Sagrada".Depois da morte, as lágrimas amargas juntaram-se à inveja ou à despeita, houve lutas para ocupar a posição de "herdeiro oficial", vieram os ressentimentos e os livros de revolta a culpar o chefe dos seus pecados. Mas como ele as amou mais a elas nos filmes, no final foram elas que se mostraram mais agradecidas. Basta ler "Caos as Usual - conversations about Rainer Werner Fassbinder", uma compilação de entrevistas feita por Julian Lorenz (a quem cabe a administração do legado de Fassbinder) aos membros do "clã", para perceber essa relação privilegiada com uma geração de mulheres que foi crescendo com os filmes do seu Pigmaleão. Viveram todos aterrorizados, como um dia contou Caven - menos Schygulla, que mais distâncias tomou em relação a alguém que "tinha a obsessão de tentar perceber a que extremos é que podia chegar com uma pessoa". Mas todas elas terão de dizer que "o homossexual que precisava de mulheres", para citar de novo Caven, foi o homem das suas vidas.de Rosa von PrauheimArte, hoje, às 21h25

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