Arte & soul

Um das mais dignos representantes do hip-hop está de volta: o trio De La Soul. Depois de dificuldades várias que ameçaram pôr cobro à carreira, andam agora às voltas com uma trilogia. Um caso sério, numa altura em que também se anuncia o regresso de um velho senhor, Grandmaster Flash, que na viragem da década de 70 para a de 80 foi crucial para a implantação de um dos géneros mais influentes para a música popular das duas últimas décadas - o hip hop, que, se existe em Portugal, tem certamente na linha da frente os Micro. Pertencem, então, ao território do hip hop as páginas que se seguem.

Quando, em 1989, os De La Soul editaram "3 Feet High and Rising" mudaram por completo a face do hip-hop. Anunciado por Chuck D dos Public Enemy como "a CNN dos pretos", o hip-hop servia na altura os intentos de novas reivindicações sociais mesmo que assente noutro tipo de descriminação, como o machismo que grassava na mair parte dos seus artistas. Em "3 Feet High and Rising", os De La Soul reabriram as fronteiras do hip-hop, deixando-o contaminar-se pela influência do jazz, do funk, do soul ou do reggae, numa panóplia de referências que lhes ajudou a criar uma certa imagem psicadélica. Ao facto não seria alheio o uso pioneiro do sampler, que lhes acarretou vários problemas legais, mas que os veio a tornar em percursores de projectos como os A Tribe Called Quest, Arrested Development ou, mais recentemente, Dilated Peoples e The Roots.Os discos seguintes, como "De La Soul Is Dead", não seriam - não poderiam ser - tão fundamentais como o primeiro, mas o ano passado os De La Soul deram início a uma trilogia que lhes valeu a nomeação para um Grammy e a reconquista de um lugar ao sol entre a comunidade hip-hop. "Art Official Intelligence - Mosaic Thump" mostrou-os dispostos a lidar de novo com a história da música negra, repetindo a dose no final de 2001, com o segundo volume da trilogia, singelamente intitulado "Bionix". Tal como é habitual nos discos de hip-hop a lista de convidados de "Bionix" é imensa, tendo sido, para o efeito, convocados José Hernandez, Devin the Dude, Elizabeth Bingham, Cee-Lo Green dos Goodie Mob, B-Real, Slick Rick, Glen Lewis, Divine, Jeff dos Wall Street, além de inúmeros produtores - sendo justo nomear Megahertz, Dave West (que já havia colaborado em "Mosaic Thump"), Kev Brown (da equipa de Jazzy Jeff) e Jay Dee dos Slum Village. Os De La Soul não desperdiçaram o ensejo de experimentar vários estúdios em Nova Iorque e viajaram mesmo até Los Angeles para trabalhar com B-Real dos Cypress Hill. A qualidade da produção é intocável mas a maior virtude de "Bionix" não passa tanto pela profusão de meios que Posdnuos, JoliCoeur e Mase (nomes artísticos do trio que forma os De La Soul) tiveram à sua disposição como pela eficácia diletante que colocam em cada das faixas. caleidoscópio. Notoriamente marcado por uma sonoridade mais soul e r&b que os seus predecessores, "Bionix" não deixa de funcionar, mais uma vez, como um caleidoscópio em que os mais diversos elementos são convocados. Tanto faz estarmos perante a verve de um pregador qualquer ("Reverend do good" partes 1 e 2) capaz de remeter para o gospel, como iluminados pelo clima de festa disco-funk ("Simply havin"), ou pelas divas soul capazes de transformar momentos de cio em libertação espiritual ("Special") ou pelo registo de vozes porno ("Pawn star") ou mesmo a revisitação de "Wonderful Christmas Time" de Paul McCartney ("Simply"). Os De La Soul conferem uma coerência assinalável a uma multidão de géneros, sejam eles a música latina ("Watch out"), o electro de outros dias ou rap que continua, obviamente, a ser a sua imagem de marca. "Bionix" abre com um alerta: uma doce voz feminina indica que este disco é "maior, mais rápido e mais forte", mas o aviso deve ser considerado como mais uma manobra humorista, típica de cada produção dos De La Soul. Mesmo a seriedade que uma trilogia, à partida, implica, é facilmente posta em causa fazendo uso de uma ironia por vezes disfarçada, outras nem por isso. O final do álbum/capítulo anterior, "Mosaic Thump", está em perfeita sintonia com a introdução que abre este novo disco, criando a ilusão de uma coerência que é, precisamente, construída a partir de uma manta de retalhas infinitos. É essa capacidade de criar uma unidade a partir do caos que confere aos De La Soul um papel único entre os praticantes de hip-hop norte-americanos, sem nunca extremarem as suas posições, evitando tanto o militantismo demagógico como o diletantismo mais vazio.Ainda que tenham sido pioneiros na utilização do sampler, os De La Soul não se escusam a enveredar pela utilização de intrumentação orgânica em várias faixas de "Bionix" como acontece em "Trying People", o tema que encerra o álbum com sopros e contrabaixo, ou em "Held down", tendo para o efeito convidado Willie Mitchell, pianista que habitualmente acompanha Al Green. Mais uma vez, a coesão, desta feita entre máquinas e instrumentos, surge como impecável.Depois de oferecidos os dois primeiro capítulos da trilogia "AOI", a questão que se impõe é como será o terceiro e último tomo. Segundo o que já afirmaram em algumas entrevistas, o terceiro capítulo servirá como uma homenagem ao DJ, tal como ele é entendido no hip-hop (ver texto sobre Grandmaster Flash nestas páginas), pelo que Mase, encarregue dessas funções nos De La Soul, terá uma proeminência bastante maior, num álbum que será essencialmente instrumental. Ou será que os De La Soul irão, mais uma vez, surpreender o mundo e apostar numa revisão do papel do DJ que volte a provocar controvérsia?

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