Amores de Eça na América

Terem chegado ao nosso convívio é um mistério. Se não mesmo um suave milagre: um pequeno, mas intenso, conjunto de cartas inéditas de duas namoradas americanas de Eça. É uma das obras que A. Campos Matos põe nos escaparates para reconstituir o fascinante universo do escritor. A outra é "Diálogo com Eça de Queiroz".

20 de Dezembro de 1872. Eça de Queirós, com 27 anos, chega a Havana, Cuba, onde vai ocupar o primeiro posto diplomático da sua carreira, cônsul de 1ª classe das Antilhas espanholas. Na bagagem literária leva folhetins para a "Gazeta de Portugal", crónicas-notícias-textos-de-toda-a-índole no "Distrito de Évora", alguns versos de Fradique Mendes, "O Mistério da Estrada de Sintra". Na forja estava o conto "Singularidades de uma Rapariga Loura" e, provavelmente, os primeiros esboços de "O Crime do Padre Amaro".Quando chega a Cuba, não se dá bem com o clima nem com a atmosfera - como confessa numa carta a Ramalho: "Vivo inquieto, num ar que não é o meu." A 15 de Março de 1873, inicia uma viagem aos EUA e Canadá de quase meio ano, depois de ter solicitado autorização ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Tudo indica que, à parte as suas moléstias, outras foram as razões que levaram Eça a partir, apenas cinco meses depois de chegar a Havana!, para os States. Apesar de ter sido sempre muito cuidadoso, tímido até, nas confidências que fez sobre a vida íntima, noutra carta a Ramalho, já em Julho de 1873, escreve: "Saí de Nova Iorque tão triste, tão fantasticamente nervoso!... e ainda assim tão feliz! meu amigo - passemos. Eu estou aqui para conversar de cidades e não para escorregar nas tendências perigosas da autobiografia". Não escorrega: acontece que, entretanto, o romancista não só tinha conhecido duas mulheres americanas como se tinha envolvido com elas. Embora Campos Matos só nos anos 90 tivesse encontrado no espólio da Fundação Eça de Queirós, sediada em Tormes, os dois maços das cartas agora vindas a lume - aquando dos trabalhos para "Eça de Queiroz-Emília de Castro, Correspondência Epistolar", Lello, 1995, ver PÚBLICO de 13-4-1996 - um dos filhos do escritor, António, já tinha levantado a ponta do véu destas aventuras amorosas, para responder a João Gaspar Simões. O crítico-biógrafo escrevera de Eça que "apenas cultivara aventureiras. Em Portugal, em Havana, em Espanha, no Oriente, e agora em Inglaterra, quase só privara com uma espécie de fêmeas: as mundanas, as prostitutas". O filho respondeu-lhe: "Pouco rasto existe dos amores que meu pai pôde ter antes do casamento. Mas de dois posso eu dar notícia ao mal informado sr. Gaspar Simões. Um de Havana e Nova Iorque, outro de Nova Iorque e Chicago." Se de um deles não abre muito o jogo ("porque meu Pai não gostaria decerto", embora fosse "formosa", "uma grande senhora pela qualidade e inteligência"), quanto ao segundo acrescenta, para rebater Gaspar Simões: "Bastará dizer que, com o consentimento dos seus, esteve noiva do meu Pai." Era Mollie Bidwell. A primeira era Anna Conover, de origem alemã. O véu, agora, com a publicação de "Cartas de Amor de Anna Conover e Mollie Bidwell para José Maria Eça de Queiroz Cônsul de Portugal em Havana (1873-1874)" fica muito mais visível. Mas alguns mistérios ficam por esclarecer... As cartasAo todo são 33 cartas: sete de Mollie, cinco dos seus pais e vinte e uma de Anna. Um primeiro dado a reter: Eça trocou correspondência durante cinco meses com Mollie e treze com Anna; mas enquanto esteve à beira de dar o nó com a primeira, com a segunda nunca se quis comprometer, ou, utilizando as palavras de Campos Matos, ia-lhe "dando assistência epistolar" - muito embora seja Anna que, pelo menos a julgar pelas cartas das duas, estivesse mais apaixonada por José Maria. Mais: era casada e acabou por separar-se, apesar de uma forte educação e prática religiosas.Anna e Mollie são dois corações românticos. Do pouco tempo que privaram com Eça, logo nas primeiras missivas suplicam ao escritor que lhes escreva, as visite, não deixe de pensar nelas. Quando se separam ficam ambas prostradas. Outro dado curioso: as suas caligrafias, miudinhas e inclinadas, são muito parecidas. Mas quão diferente é o tom e os gestos das duas. Anna é arrebatadora, e chega mesmo a desconfiar (a intuição feminina a funcionar?) que existe alguém que leva Eça a não se lembrar dela, o que segundo Campos Matos, é de todo em todo possível; Mollie, mais jovem, é paradigmática - abre o jogo rapidamente e termina o namoro de uma rajada, secamente, naquele que é um dos mistérios não só da correspondência como da relação entre os dois.AnnaA primeira carta de Anna data de 1 de Abril de 1873 e é de Cuba. Como acontece em muitas outras missivas, é escrita com lápis: "Desde ontem o meu único pensamento tem sido como me vou sentir em Abril quando tiver de regressar aos Estados Unidos." A rematar, escreve: "Pense sempre na sua fiel." A segunda, já traz o carimbo de Nova Iorque, onde terão estado hospedados num mesmo hotel. Continua a pedir para não se esquecer dela - "Eu pensarei em si sem ofender Jesus Cristo meu Salvador", ao mesmo tempo que lhe pergunta: "É verdade que me amou um poucochinho? e ainda me ama? Oh desculpe!". Um e outro "temas" são recorrentes em praticamente todas as cartas de Anna. Dolorosas, patéticas, angustiadas à medida que o tempo vai passando, as suas súplicas vão sendo cada vez mais desesperadas: "Imploro-lhe, Oh tenha piedade de mim e não me exponha, desculpe-me dizer isto, mas sou eu que o tenho perseguido." Quando Eça não lhe responde - e o mesmo acontecerá com Mollie - abre com um "Como é cruel!". Logo a seguir pede-lhe desculpa, mil desculpas, sem fim, evocando o nome de Deus quase sempre. Não se conhece nenhuma das cartas que Eça terá escrito (há apenas no espólio de Tormes um bilhete, onde aceita um convite para ir ao Teatro com Anna), até porque Anna não quer deixar rasto das cartas nem levantar suspeitas: "Sabe que tenho que tomar cuidado, assim li-as até sabê-las 'de cor'. Decorei-as. 'Apertei-as' contra os lábios e depois de o fazer muitas vezes, rasguei-as aos bocados." Por pequenos apontamentos-referências que Anna vai anotando, Eça dá-se conta de estar na presença de uma mulher com um "temperamento irrequieto" ou com uma "mente turbulenta" (carta 6). Anna refugia-se na sua condição de mulher mal-tratada, incompreendida - sem nunca ter tido o carinho de uma mãe, como aconteceu com Eça... - "tolinha", chega a desabafar, com um coração sensível e a educação dos dois "filhinhos". Há um drama, por detrás deste choro, deste suspiro que se vai tornando cada vez mais intenso à medida que o tempo escorre. As cartas de Agosto de 1873 são notas de uma ópera-trágica. "Porque não recebi uma notasinha sua, apenas para dizer que não me despreza mas que se compadece de mim. Oh! não me despreze. (...) Sou tão feliz se ao menos me perdoar e consentir que pense em si" (carta 13); "Pensa em mim algumas vezes, meu querido amigo? Recebi esta tarde, 11 de Agosto, a sua querida carta. Trago-a junto do coração. Não meu 'querido' não estava zangada consigo, apenas pensei que deveria saber que o amava sem ter que perguntar, pois já não lhe disse e escrevi-o também? ama-me realmente um pouco? Amo-o 'de todo o coração' para pensar em si secretamente." Platonicamente, Anna vai idealizando dia após dia, a possibilidade de regressar ao dia D da sua vida. "Talvez nos encontremos um dia - sim!, essa será a minha esperança!, que o verei novamente (...)." Desesperada, mas ao mesmo senhora de si, dá a entender primeiro, e fá-lo depois, que deixará o marido. Quando pensa que está a jogar a sua última e definitiva cartada, está ainda mais angustiada. "Oh! como 'estou tão' ansiosa por vê-lo. Por favor 'escreva-me', escreva, 'já, depressa' escreva-me. 'Tenho' que receber notícias suas meu querido, querido amigo. 'Nunca mais' viverei com o meu marido." Estamos a 20 de Dezembro de 1873. É bastante provável que nunca tenha obtido nenhuma resposta ("Em vão tenho procurado carta sua", diz na sua derradeira missiva). Agarra-se então a Shakespeare e a Byron que cita abundamente sem saber - como de resto acontecerá o mesmo com Mollie - que está apaixonada por um escritor (há apenas referências aos seus trabalhos consulares...) Com uma extraordinária lucidez escreve: "Não tenho passado muito bem mas sinto-me melhor, 'estou certa' que virão melhores dias. Shakespeare diz 'a maré dos afazeres do homem que, tomada no seu fluxo, leva à fortuna' - mas não sou um homem 'je suis une femme', é mais difícil para mim, e não sei o que me reserva o destino. Pois o 'meu poeta favorito', Lord Byron, diz: 'Há uma maré nos afazeres da mulher que, tomada no seu fluxo, leva sabe Deus onde." E tudo acaba com um "espero que esteja bem e satisfeito pois estar 'satisfeito' é ser-se 'feliz'. Sou sempre a sua amiga 'fiel'".MollieE Mollie? É mais jovem do que Anna e filha de um empresário ligado à agricultura. Na primeira carta, de 5 de Maio de 1873, confessa que também ela, quando conheceu José Maria, se sentiu a despedir-se da vida - "de facto, tudo parou a partir daí". Eça deu-lhe uma fotografia. Mollie está, como Anna, perdidamente apaixonada: enquanto coloca a foto no medalhão, as lágrimas correm-lhe pela face... Só por "pensar que apenas o podia ver num retrato." Como Anna quando recebe alguma mensagem de José Maria fica deslumbrada. "Querido a sua carta é uma raio de felicidade na minha vida." É a sua segunda carta mas assina preto-no-branco. "Sempre sua M."Dá a ler uma carta de Eça aos pais que ficam assim a par do caso - e que escreverão posteriormente ao cônsul, cartas que integram esta edição. Na penúltima e telegráfica mensagem, Mollie escreve: "Pedi perdão, meu querido, o que parece não ter sido o suficiente, 'tudo' o que pude fazer para reparar o mal que fiz ao rasgar o papel, tem apenas que mo dizer pois sentir-me-ei feliz ao sabê-lo." Que papel seria? Mistério. Tão misterioso quanto a derradeira carta, de 23 de Setembro, de 1873. Há muitas partes que são indecifráveis. O que se pode ler, porém, não deixa margem para dúvidas: "Senhor Queirós Passei o tempo desde que decorreu a sua visita a Pittsburgh a pensar cuidadosamente sobre a questão que diz respeito à nossa felicidade futura. Depois de muito pensar percebi que o nosso casamento não é possível (...) nem o tempo nem influências podem alterar esta decisão. Considero um grande favor pessoal se não voltar a esta cidade nem me escrever mais."A este mistério, juntam-se mais dois: no espólio existe uma fotografia de uma das duas. Será de Mollie, se aceitarmos a tese avançada pelo filho do escritor quando se refere à existência de "um lindo e doce retrato"? Ou será de Anna se levarmos em linha de conta que ela lhe prometeu enviar uma? E, mistério dos mistérios, como é que foi possível estas cartas chegarem até aos nossos dias? Pensando nas andanças por que andou o espólio do romancista e os cuidados - e que cuidados! - a família e os herdeiros tiveram para salvaguardar a imagem pública de do escritor, trata-se, sem sombra de dúvida, de um suave milagre...

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