A euforia do espaço tipográfico

Três histórias, "algo de algodão", e mais "2 filmes". Jacinto Lucas Pires escreve e segue, procurando. Algo como uma coisa quase, antes de explodir.

Os poemas de E. E. Cummings estão entre o assombro de um fenómeno natural e o prodígio de um artefacto. Neste "livrodepoemas" os leitores portugueses passam a dispor da mais extensa e representativa antologia do modernista americano. ."Se um poeta é alguém, é alguém a quem as coisas feitas pouco interessam - é alguém obcecado pelo Fazer. Como todas as obsessões, a obsessão pelo Fazer traz desvantagens; por exemplo, o meu único interesse em fazer dinheiro seria fazê-lo. Felizmente, no entanto, antes queria fazer qualquer outra coisa, incluindo locomotivas e rosas. É com as rosas e as locomotivas (já para não falar de acrobatas Primavera electricidade Coney Island o 4 de Julho os olhos dos ratos e as cataratas do Niagara) que os meus "poemas" competem." E. E. Cummings (1926)Esta citação pertence à introdução do livro de poemas "is 5", considerado por Ezra Pound, ao lado de "The Apes of God" de Windham Lewis, e "Ulisses" de James Joyce, um dos maiores expoentes da arte literária moderna. E os poemas de Cummings parecem, de facto, algo de intermédio entre o assombro de um fenómeno natural e o prodígio de um artefacto. Senão, como explicar a intensa comoção testemunhada por muitos leitores ao descobrirem a sua poesia pela primeira vez? Que mecanismos da linguagem e da escrita e que movimentos interiores desencadeiam tal euforia?Edward Estlin Cummings nasceu em Cambridge, Massachussets, a 14 de Outubro de 1894, e morreu a 3 de Setembro de 1962, em Conway, New Hampshire. Depois de estudar Literatura Inglesa e Literatura Clássica na Universidade de Harvard, alistou-se em 1916 no Norton-Harjes Ambulance Corps, prestando serviço em França como voluntário. Por causa de cartas escritas por um seu amigo, também voluntário, e nas quais era criticada a condução da guerra, Cummings foi detido pelos franceses durante três meses, em 1917. Desta experiência nasceria o seu primeiro livro publicado, "The Enormous Room" (1922), uma espécie de diário da detenção, recheado de observações sobre a burocracia de guerra. Depois de regressar aos Estados Unidos seria ainda recrutado até finais de 1918. Depois da guerra dedicou-se por inteiro à escrita e à pintura, tendo publicado 12 livros de poemas entre "Tulips & Chimneys", o seu primeiro título, de 1923, e "73 Poems", editado já postumamente em 1963. Os primeiros contactos com o modernismo europeu começaram com a exposição de arte moderna em Nova Iorque em 1913, o célebre Armory Show. Estadias em Paris e viagens pela Europa, nas décadas de 20 e 30, permitiram-lhe manter contacto com as vanguardas europeias. Viajou também pelo Sul da Europa (Portugal, Espanha, Itália) e pelo Norte de África (Tunísia). A sua viagem à Rússia em 1931 daria origem a outro diário anti-burocrático, "Eimi" (1933). Publicou ainda peças de teatro - "Him" (1927), "Anthropos" (1930), "Santa Claus" (1946) -, diversos ensaios e conferências. Como outros modernistas, Cummings concebia a poesia e a pintura como actividades gémeas. A sua produção pictórica (desenhos, caricaturas, aguarelas, óleos e estudos diversos) tem profunda relação com a sua teoria poética. Cummings foi um dos introdutores do abstraccionismo nos Estados Unidos, com uma série de telas vorticistas caracterizadas por um uso muito vivo da cor. No entanto, as telas abstractas dos inícios da década de 20 deram lugar nas décadas seguintes a um conjunto de obras figurativas em géneros tradicionais como o nu, o retrato, a paisagem ou a natureza morta, reflectindo de certo modo a tensão entre experimentação e tradição característica da sua poesia. Cummings contribuiu ainda regularmente com desenhos e caricaturas para a revista "The Dial". A obra de E. E. Cummings tem sido vista como uma combinação singular do formalismo Modernista com o essencialismo Romântico. O primeiro manifesta-se através do culto da precisão técnica no trabalho sobre a linguagem, visível na experimentação sintáctica e na exploração da materialidade dactilográfica e tipográfica das letras. O segundo surge na relação entre o eu e a natureza, fonte de um lirismo sensorial e autobiográfico. E. E. Cummings veio a ser considerado, juntamente com T. S. Eliot (1888-1965), Ezra Pound (1885-1972) ou William Carlos Williams (1883-1963), uma das vozes mais originais da poesia modernista americana. Tal como Pound, Cummings parece ter assimilado uma tradição selectiva de autores gregos, latinos, provençais e orientais. Entre os modernos, os tipogramas de Mallarmé (1842-1898), os caligramas de Apollinaire (1880-1918) ou os optofonopoemas de Kurt Schwitters (1887-1948) estão entre as suas principais influências. À poesia da natureza e ao registo lírico, acrescente-se o gosto pelo burlesco e pela sátira, manifesto em poemas de tema americano. E. E. Cummings percebeu bem cedo que o canto de mim mesmo whitmaniano, no seu desejo omnívoro de tudo incluir e tudo celebrar da democracia e da natureza americanas, ganhava sinistros contornos na sociedade belicista, tecnocrática e consumista que se desenvolvia entre Guerras. Daí a sua sarcástica rejeição da americanidade e do militarismo, como nos poemas "next to you of course god america i" ou "ygUDuh". A sintaxe fluente e enumerativa do idioma whitmaniano deu lugar aos repelões tensos de uma gramática sui generis que dá voltas sobre si mesma e cospe a retórica da pátria.Duas características são essenciais na sua escrita: o elevado grau de objectivação da gramática da língua e a utilização do espaço tipográfico como pontuação do texto. A noção de que todo o espaço da página é um elemento de pontuação e de que toda a pontuação é um elemento de significação permite a Cummings revelar a força icónica da escrita e dos misteriosos processos de simbolização que em nós desencadeia. Os movimentos do mundo e das paixões do sujeito são transferidos para os movimentos de ligação das palavras e para os elementos de pontuação (espaços em branco, vírgulas, parêntesis) que os realizam. Estes movimentos comunicam-se ao leitor ao tentar ligar e separar as palavras e os silêncios do texto. A sensação de observar a linguagem a trabalhar sobre o papel é talvez o efeito mais forte do verso visual de Cummings. Por isso o espaço de ligação/separação entre palavras define a sua técnica: a divisão dos versos em sílabas ou letras que não coincidem com a divisão sonora ou lógica, a interrupção das expressões por espaços, por vírgulas ou por parêntesis, obrigam constantemente a refazer as ligações. A aglutinação de termos, como "livrodepoemas", escolhido para título desta antologia [agora publicada pela Assírio & Alvim, com selecção e tradução de Cecília Rego Pinheiro], tem efeitos similares de reconceptualização das palavras. Graças a este estranhamento as palavras são rematerializadas, quebrando-se a transparência semântica. Esta tecnologia da máquina de escrever e da tipografia permite trazer à tona da página os movimentos secretos e silenciosos da língua e da escrita. Trata-se de uma poesia da escrita e da leitura enquanto tecnologias da palavra. A decomposição das palavras em letras, as estranhas transliterações ou aglutinações obrigam o leitor a soletrar, isto é, a decompor e recompor os significantes escritos. Devido às anomalias sintácticas, idêntico processo ocorre com os significados. A materialidade gráfica interfere nas cadeias de significação despoletadas pelas palavras. A tecnologia da leitura torna-se de repente evidente, quando os processos fisiológicos e mentais do acto de ler são tornados conscientes como matéria poética: "silêncio//.é/um/pássaro//olhando:a//curva;/aresta,da/ vida//(indagação antes da neve" (p. 77)Uma das manifestações da experimentação sígnica de Cummings reside nos múltiplos valores do parêntesis, usado, por exemplo, para simular outro nível de representação, ou mesmo duas formas de consciência simultâneas ou antagónicas. Muitos textos começam ou acabam dentro do parêntesis, sugerindo assim uma materialidade que excede o texto escrito, integrando o espaço aquém da palavra, ou além da palavra, no contínuo da significação, como se o poema registasse apenas o momento da sua própria passagem. Este modo de emergir na superfície da página sugere, através de tal incompletude e fugacidade, os movimentos da imaginação e da sensação no curso da linguagem: "supondo que sonhei isto)/imagina só,quando o dia estremece/tu és uma casa em torno da qual/eu sou um vento-" (p. 91)A sua poesia joga também com a dialéctica da palavra e do silêncio aprisionados no espaço tipográfico. De forma paradoxal, parece tornar audível a natureza silenciosa da leitura sobre o papel. A modelagem do espaço em branco, dentro e à volta do texto, é por isso outra essência da sua forma. O espaço em branco é de tal forma integrado no texto que é por vezes impossível lê-lo em voz alta: a sua existência material é a sua significação. Não se trata de uma mera notação de silêncio e de pausa (embora muitas vezes também o seja), mas de uma representação do silêncio mágico da escrita que é feito com a sua própria matéria. Enquanto escrita tipográfica, já não é uma mera representação de segundo grau de uma ordem verbal e oral, mas possui uma substância e uma forma irredutíveis e intraduzíveis por outro meio.A poesia de Cummings vive ainda de transformações sintácticas que recategorizam e justapõem palavras de categoria gramatical similar, por vezes atraídas para posições excêntricas pelos seus valores sonoros. Transformar conjunções, preposições e outras partículas de ligação em verbos e nomes dá bem a medida do movimento que Cummings imprime à língua. Algumas das suas expressões têm feito correr rios de tinta da pena de linguistas, ansiosos por explicar as causas e os efeitos da sua desregrada e improvável combinação. As palavras de ligação tornam-se os eixos da desordem frásica de Cummings, ora parando esse movimento em pausas sincopadas, ora relançando o movimento para as palavras seguintes. Cito dois versos do belíssimo "os verdadeiros amantes a cada acontecer dos seus corações": "tal para sempre é um qualquer agora do amor/ e o seu cada aqui é um tão qualquer lugar," (p. 117)Cecília Rego Pinheiro traduz com extrema fidelidade a peculiar gramática de Cummings, conseguindo aquilo que me parece o mais difícil na sua poesia: dar sentido aos segmentos sincopados da sua escrita e, simultaneamente, projectar a leitura para toda a sequência de palavras, isto é, para o texto enquanto frase, ele próprio muitas vezes incompleto, ambíguo ou obscuro, insinuando-se como um fragmento que começou a meio e acabou a meio, ou como uma perturbação da língua que não chegou a dizer-se completamente. O fulgor da intensidade lírica comunica-se na desordem das palavras. A selecção de poemas, da responsabilidade da tradutora, permite uma imagem global da obra de Cummings, em particular do lirismo amoroso, representado aqui por textos produzidos em períodos distintos. Sendo proporcionalmente menor o número de textos de leitura vertical, como "silêncio", podemos ainda assim sentir a natureza visual e tipográfica de toda a sua poesia. Neste "livrodepoemas" os leitores portugueses passam a dispor da mais extensa e representativa antologia de E.E. Cummings, enriquecida por introdução, notas, cronologia e bibliografia seleccionada. O trabalho de Cecília Rego Pinheiro junta-se ao de outros tradutores que têm tentado recriar em português a poesia de Cummings, como o brasileiro Augusto de Campos, ou Jorge Fazenda Lourenço (19 poemas, editados em 1991 pela Assírio & Alvim).

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