"É inevitável o declínio do império americano"

Os habitantes dos Estados Unidos estão a ficar cada vez mais ignorantes e poderão escolher um semianalfabeto para seu Presidente; sintomas do declínio da cultura americana que, tal como outrora o império romano, vê a decadência aproximar-se. É o que diz Morris Berman, um professor universitário de Washington que vê em George W. Bush "a ponta do icebergue" de uma profunda doença cultural e espiritual.

Antes da sua entrevista telefónica com o PÚBLICO, Morris Berman fez questão de avisar que os seus pontos de vista não reflectem os do "mainstream" norte-americano. Com efeito, não faz parte da ortodoxia dos Estados Unidos - mesmo entre os mais esquerdistas círculos universitários - achar que a nação está a caminho de um colapso semelhante ao do império romano; que o povo americano actualmente não tem valores espirituais; ou que George W. Bush, o candidato republicano às presidenciais de Novembro é (numa tradução livre) "burro como uma porta".Berman é escritor, antropólogo, historiador e professor em "part-time" na Universidade Johns Hopkins. O seu último livro chama-se "The Twilight of American Culture" (O Crepúsculo da Cultura Americana), e traça um paralelo entre o declínio da civilização romana e os actuais Estados Unidos.Um dos temas abordados no livro é o aumento da iliteracia. "No século V, os intelectuais de Roma já não sabiam escrever correctamente latim. O império estava culturalmente deteriorado. Há estatísticas por todo o lado sobre esse declínio nos EUA. Somos o 49º país do mundo em literacia. Cento e vinte milhões de adultos - a maioria - são analfabetos funcionais, sabem ler e escrever ao nível de uma criança de dez anos. E temos um candidato presidencial que não consegue fazer um discurso gramaticalmente coerente a menos que lho escrevam e ele o leia no teleponto."Esse candidato é George W. Bush (ver caixa). "Não sou fã [do candidato democrata] Gore. Mas ele pelo menos fala inglês. Pelo que vi, Bush tem muitas dificuldades em fazê-lo. O inglês dele é tão mau que as suas 'gaffes' são debatidas a nível nacional, e ele pode bem ser o nosso próximo Presidente."Bem, mas se Bush é tão limitado, como é que conseguiu a nomeação republicana? "É fácil responder a isso. Se 60 por cento dos americanos nunca leu um livro na sua vida adulta, 15 por cento não consegue encontrar os Estados Unidos num mapa do mundo e 40 por cento dos licenciados de universidades não sabe em que época foi a guerra civil americana, é natural que as pessoas olhem para Bush e o vejam como um dos seus. Bush tem um estilo de rapaz de 'fraternity' [repúblicas estudantis norte-americanas], tem uma expressão simpática de 'as coisas hão-de resolver-se'. Enquanto Gore é um 'nerd', um tipo muito trabalhador e cerebral mas emocionalmente frio. Os povos não têm só os líderes que merecem, têm líderes que os reflectem. Os americanos olham para Bush e dizem 'este sou eu'. E se calhar têm razão."Para Berman, Bush é "a ponta do icebergue" de um declínio cultural profundo. "Nenhuma grande civilização conseguiu evitar o padrão clássico - nascimento, maturidade, decadência. Foi assim com a China antiga, com o Egipto dos faraós, com Roma. É típico optimismo americano pensar que vamos conseguir fugir a isso." Berman não faz previsões apocalípticas - "estes não são processos lineares, ainda há muita resistência ao declínio, sobretudo económica" - mas acredita que "daqui a 50, 75 anos" os Estados Unidos vão sofrer uma convulsão semelhante à que a União Soviética sofreu em 1989.A iliteracia crescente dos americanos é um dos factores do declínio: "Até 1965, tínhamos uma classe média vibrante, inteligente e intelectualizada, que comprava livros. Agora não. As universidades não o admitiriam, mas a maior parte delas tem uma política de selecção aberta - aceitam qualquer um, porque precisam do dinheiro. É como a venda de indulgências pela Igreja Católica antes de Lutero."Mas este não é o único motivo de preocupação. Notando que o paralelismo entre o império romano e os Estados Unidos tem sempre de ser posto em perspectiva, Berman aponta mesmo assim várias semelhanças. Como a disparidade entre ricos e pobres. "Nos EUA, um por cento das pessoas tem 47 por cento da riqueza. Em Roma, entre os anos 54 e 68, toda a terra entre o Reno e o Eufrates estava nas mãos de apenas dois mil indivíduos."Berman traça também uma comparação entre a desintegração da burocracia romana e a perspectiva de falência dos sistemas de segurança social americanos. E fala daquilo a que chama a "morte espiritual" dos EUA."A maioria dos cidadãos não acredita no Estado nem no seu futuro. Inúmeros estudos nos últimos anos têm mostrado um aumento na falta de cortesia e civismo, o que demonstra que as pessoas não se importam umas com as outras nem, em último caso, consigo próprias. O que é que interessa ao povo americano? Comprar 'brinquedos'. O espírito comunitário foi-se, mas têm os seus telemóveis. Ligam-se à Internet para comunicar com pessoas do outro lado do país mas estão-se nas tintas para se o vizinho morreu."Quanto à influência da cultura popular americana sobre o mundo, Berman também é pessimista. "Costumo dizer que o século XX foi o século americano, e o XXI será o século americanizado, em que se vai poder ouvir Snoop Doggy Dogg numa aldeia do Gana. Eu compreendo a atitude das nações que querem manter de fora a influência da cultura comercial americana, porque ela é baseada no que vende, e não se pode construir uma cultura a partir disso." Apesar do seu pessimismo, Berman tem alguma esperança no futuro. "Um crepúsculo implica uma alvorada. O declínio não pode ser evitado, mas haverá uma Renascença. E espero que ela não demore seis séculos."

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