Como se faz um Presidente normal

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A fotografia oficial foi tirada, em meia hora, por Raymond Depardon, a 29 de Maio, com uma Rolleiflex de 1962 RAYMOND DEPARDON/AFP

A fotografia oficial de François Hollande é assinada por um fotógrafo que dedicou a sua vida a fixar a França real. Raymond Depardon fotografou um presidente que sai do palácio para se dirigir aos franceses

Uma fotografia normal para um presidente normal? Ou uma fotografia de tal modo complexa que lança pistas para o que pode ser o mandato de François Hollande à frente da presidência francesa? A fotografia oficial do novo Presidente de França foi apresentada na segunda-feira e, desde então, a sua suposta modernidade, a ruptura que apresenta perante a anterior fotografia de Nicolas Sarkozy, tornou-se objecto de debate. Ou, para usar as palavras da crítica de fotografia Margarida Medeiros, uma discussão sobre "a fronteira muito pouco destrinçável entre a estética e a política".

"É uma fotografia que marcará a história da V República", apressou-se a dizer Sylvie Hubac, chefe de gabinete do Presidente, citada pela imprensa francesa. Uma fotografia de ruptura, escreveu-se por um lado, enquanto outros diziam que, pelo seu formato, quadrado, e sugerindo um enquandramento fora do comum, era um piscar de olho à fotografia amadora.

O Eliseu justificou a escolha com o percurso de Raymond Depardon, fundador da agência francesa Gamma e membro da Magnum, "um homem que consagrou a sua obra a mostrar os rostos dos franceses, na diversidade das suas histórias e das suas origens", da França moderna e da periferia das grandes cidades. Raymond Depardon explicou, após a apresentação do retrato, tirado a 29 de Maio, que "não procurava mais do que uma fotografia simples e natural". Usou, em meia hora, três máquinas, uma Leica, uma digital, mas foi com a sua velha Rolleiflex, de 1962, que fixou "um senhor que iremos encontrar em todos os edifícios públicos nos próximos cinco anos", contou o fotógrafo (à direita, uma imagem da produção).

O ex-director da revista Paris Match Alain Genestar, em entrevista à rádio France Inter, disse que a fotografia, "na sua ambiguidade, dá início à presidência do homem normal". Um homem que se deixou fotografar como se viesse em direcção aos franceses, de mão estendida, apanhado a meio caminho por um fotógrafo que, ao longo de décadas, tem vindo a guardar, em filme ou fotografia, a vida dos franceses, real como ela é, sem a institucionalização da política.

A simplicidade e normalidade da fotografia é Hollande aos olhos dos franceses: pacífico mais do que convencido. A esta ambiguidade não é alheio o discurso lúcido de Depardon sobre o papel que as instituições, e os seus símbolos, tiveram na erosão não apenas do Estado mas da imagem desse mesmo Estado. Hollande, ao escolher Depardon, "faz um regresso à tradição" dos presidentes que convidaram fotógrafos consagrados, diz o professor de História Visual da École de Hautes Études en Sciences Sociales André Gunthner, entrevistado pelo Le Monde. "Depardon é reconhecido como um observador do quotidiano." Hollande está em clara oposição a Sarkozy que, apesar de se ter deixado fotografar na biblioteca como outros presidentes, foi retratado por Philippe Warin, fotógrafo oficial da Star Academy, o programa de televisão para jovens talentos da música.

Cultura de elite

O historiador de arte Paulo Varela Gomes fala de uma aura que é transmitida na fotografia, "de uma cultura de elite, característica de muita fotografia contemporânea". Uma cultura que pisca o olho ao Presidente François Mitterrand (1981-1995), que se deixou fotografar com um livro nas mãos, em pose descontraída, por Gisèle Freund.

A história das fotografias presidenciais em França pode também ser vista como a história das próprias presidências. Até Valéry Giscard d"Estaing (1974-1981), os presidentes eram fotografados usando as suas insígnias na biblioteca do Eliseu. Mas Giscard d"Estaing criou uma ruptura numa fotografia feita por Jacques-Henri Latirgue, deixando-se fotografar a meio corpo, tendo atrás de si apenas a bandeira, testemunhando "uma certa modernidade", diz o fotógrafo Fred Kihn, citado pelo Libération. "A França e eu", lia-se no Le Monde, que recordou a mesma fotografia.

A escolha de Depardon por Hollande não é vista como inocente. Foi este fotógrafo e documentarista que Giscard d"Estaing convidou para acompanhar a campanha num documentário que acabou proibido até 2002. "Era penoso o retrato que Depardon fazia de Giscard", diz o fotógrafo Marc Chaumil, que não hesita em afirmar que a escolha de Hollande "é o justo reconhecimento do trabalho de Depardon sobre a política". Alain Genestar fala mesmo de "um regresso à história".

Ouvir os fotógrafos

Foi em 2004 que Depardon conheceu Hollande, quando preparava uma série sobre políticos para o Le Monde. Depardon recorda-se, contou à revista Les Inrocks, que na viagem que os dois fizeram de Paris a Tulle, Hollande o ouviu com atenção, "o que é raro, normalmente os políticos não ouvem os fotógrafos". A fotografia que resultou desse encontro, a preto e branco, mostrava um Hollande a atravessar a rua e a cumprimentar um local, que usava um barrete tipicamente francês. Agora o convite que foi feito parece evocar essa imagem.

Dessa fotografia até à oficial, Hollande ganhou o partido e depois o país e há quem veja nas mãos caídas esse cansaço, como Klaus Zwangsleitner, autor do livro Official Portraits (Press Berlin, 2005). São "as mãos de um camponês, as mãos da terra, tal como as que foram registadas nos filmes de Depardon, como La Vie Moderne", diz a semióloga Maruette Darrigand ao Le Parisien. "Ele enfrenta a sua presidência de mãos nuas. É uma espécie de heroísmo contemporâneo", continua. "Esta fotografia conta-nos a história de um homem."

Para quem aponta à fotografia a indecisão que parece animar os discursos anti-Hollande, regresse-se ao site da campanha, onde o seu perfil tinha como título: "Retrato de um homem decidido." Hollande falava de um "projecto ambicioso que procurava devolver à França a confiança e a esperança no futuro que cinco anos de "sarkozysmo" haviam retirado". O candidato era apresentado como alguém consciente do trabalho a fazer e alguém em quem os franceses reconheciam uma "capacidade de estar atento às dificuldades dos outros, com uma certa humildade que o distinguia do então Presidente". Hollande era alguém capaz de ser autêntico e sincero.

Elodie Mielczareck, também semióloga, diz ao 20 Minutes, que a fotografia "se afasta do retrato oficial para se aproximar da pose oficiosa" e que "é uma fotografia que baralha os códigos". Mas o que mostra um retrato? E um retrato oficial? Margarida Medeiros diz que continua a existir a necessidade de "fabricar a imagem de um homem que ajude a construir uma imagem de Estado". Em Portugal, por exemplo, Cavaco Silva fez-se fotografar, há um par de meses, também nos jardins, no seu caso do Palácio de Belém. É já a sua terceira fotografia oficial, depois da que tem as insígnias e de uma segunda em que está sentado no interior. "É normal. A renovação é salutar", explica ao PÚBLICO o serviço de imprensa da Presidência da República.

"Uma imagem não é nada, ela só ganha significado quando possuímos um conjunto de informações sobre ela", explica Margarida Medeiros.

Com Hollande, escreve Bruno Roger-Petit, na sua coluna no Nouvel Observateur, "é o corpo de um homem que terminou uma etapa, que parou para fazer uma fotografia e que retomará o seu caminho". É um homem consciente "de que não se fica parado a contemplar a paisagem quando se tem o Eliseu como pano de fundo". É Hollande, mesmo sem saber o que fazer às mãos, a dizer: "Fui eleito, sei que tenho que fazer coisas, tenho de ir." Diz Maruette Darrigand, citada pelo Le Parisien: "Este é um homem que sai do palácio para se dirigir aos franceses." A fotografia "é um símbolo da emancipação em relação à própria instituição", defende. O Presidente inclina-se para o objectivo para o qual sorri, há um outro que está presente, o espectador: "Segundo a semiótica, esta fotografia inscreve-se na continuidade de uma campanha do indivíduo normal que se tornou Presidente. E coloca em cena um outro indivíduo - o francês." Roger-Petit fala de uma desbling-blinguização do papel do Presidente depois de cinco anos de um "sarkozysmo hiperpresidencial". Hollande é um homem que quer ser, e fazer, simples. E a fotografia "emana simplicidade e sobriedade", um desejo do retratado, e de quem retrata.

Paulo Varela Gomes aponta outro aspecto: "Um Presidente da República, tal como um rei, não se move. Ocupa um lugar de firmeza e estabilidade." Mas Hollande, diz o historiador de arte, "aparece como um presidente instável, simpático", como se caminhasse para uma desinstitucionalização. Margarida Medeiros salienta que uma fotografia de Estado deve ser intemporal e que esta fotografia "dá uma percepção da passagem do tempo mais imediata". "Ele é apanhado a andar, na vida de todos os dias" e essa normalidade é tudo o que os chefes de Estado querem mostrar, diz Klaus Zwangsleitner.

Genastar diz que Sarkozy parecia dizer "Eis-me perante o meu destino", numa postura um pouco ridícula. A fotografia de Hollande parece falar de um dever: "Há vários problemas e eu vou tentar resolvê-los."

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