Tomas Tranströmer: a procura da última palavra

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Quase um ano depois de a Academia Sueca ter atribuído o Nobel da Literatura ao poeta, são por cá traduzidos dois livros: uma antologia (50 Poemas) e as memórias da infância e juventude (As Minhas Lembranças Observam-me).

Há coisas que só podem ser lidas nas trevas. Há livros como caminhos obscuros que se abrem iluminados diante dos nossos olhos. Para depressa se fecharem depois de por eles passarmos. São assim algumas lembranças: um breve rasto de luz que se acende diante de nós, agora que já somos crescidos e o medo do escuro continua a assolar-nos. Aquele que já chegou tem diante um longo caminho para andar.

Tomas Tranströmer: uma criança que para sempre se recordará da sua primeira morte: tinha cinco anos naquela tarde e sentiu-se morto. Era a hora breve do crepúsculo. Continuou a caminhar depois de se perder da mãe à saída da Konserthus. Schubert: alguém toca algures. As trevas encandeiam quem anda depressa entre a multidão. No coração da cidade não há clareiras inesperadas cercadas de abetos enegrecidos. A morte é uma criança que ninguém vê, é uma criança andando pelas ruas perdidas de uma cidade que já foi tomada pelo frio. Essa criança não sabe onde é a casa a que pertence (há lá um quarto cheio de vozes que o chamam mas ela não as ouve). Tenta lembrar-se do prédio onde mora. E continua a caminhar pela rua que viu de cima do banco pela janela do autocarro, daquele banco onde vinha ajoelhado. Depois vai por outra rua. E por mais outra. Paragem a paragem. Tem poucas palavras para dizer, procura-as, como fará toda a vida (mas isto a criança ainda não sabe). Lembra-se de uma palavra: morrer. Aquele é o dia da sua primeira morte. Essa criança chega a uma ponte, a Norrbro, e vê a água. "Aqui há muitos carros." Um homem dá-lhe a mão para a ajudar a atravessar a rua. Nada lhe pergunta. Nada lhe diz. Um ao outro. O sussurro do trânsito. Depois o homem deixa a criança seguir o seu caminho. Mas ela não sabe qual é o seu caminho. Sabe só que se chama Tomas. Vaguear com direcção no escuro das ruas de Estocolmo. Atravessar as cores carregadas da Gamla Stan, a "cidade velha", o Slussen e o bairro do Söder. Estranha bússola aquela que a leva de volta a casa. Como o mistério da migração das aves.

Tomas Tranströmer: um nome que ele aprenderá a escrever. Isto será ainda alguns anos antes de o som das palavras lhe começar a trazer alegria. O vigor e a força das palavras. A beleza que se escreve. Pássaro: um melro num vidoeiro ao lado da casa. Noite: a luz escura, verde e aveludada, que se enrosca nas águas. Neve: uma mancheia de água que nos ilumina. Céu: tão azul da cor do gelo em Junho. Mar: "A tempestade abocanha a casa" e ao fundo neva sobre o gelo.

Os longos dias do Báltico. As noites ensolaradas, azuis. Os nomes todos dos versos e das árvores. O cheiro das ondas que enchiam as manhãs de férias da infância numa ilha perdida. O diálogo com o mistério. A procura da palavra. Os pássaros que chegam com a manhã que lhe traz os poemas. Os pássaros deixam-nos. E o poeta depois ausenta-se: "A única coisa que brilha / é o amarelo das flores. // Sou levado na minha sombra / como um violino / no seu estojo negro. // O que quero dizer / tremeluz fora do meu alcance / como prata / em montra de casa de penhores."

O Grande Enigma

Sentado no bosque com os versos em volta, estuda latim e lê Horácio. Um cuco empoleirado num vidoeiro espera que o Verão envelheça. Longe, há uma aldeia onde as mulheres lavam a roupa com fúria e melancolia (ele ainda não sabe), e no mar diante delas passa uma traineira portuguesa, dizem que azul, que "enrola um bocado do Atlântico". Ele escreve poemas modernistas para o jornal do liceu. Os primeiros poemas: "potros azulados do tempo gélido". Sem saber, ele acabara de desembarcar "num aroma desconhecido que aveludava o ar".

História, religião e literatura: estuda-as para continuar a tentar decifrar o Grande Enigma, a encontrar as palavras, a palavra. A psicologia: para ter uma profissão. O psicólogo trabalha num Centro de Saúde com jovens problemáticos, acompanha-os, tenta ajudá-los. Assim como a música o acompanha e ajuda, ele é aquele que ama o piano e que toca de maneira exímia. O pianista amador. Os anos passam e vão-o encurralando a um canto, diz ele: "o número de anéis na árvore da idade aumenta". Os óculos são precisos para ler "o cinzento ar marítimo".

O mundo da década de 70 não foi o mesmo da década anterior. Há poetas que erguem a voz para o acusarem de estar fora do seu tempo. A poesia era uma arma política, mas só para os outros. Para ele é a sua maneira de olhar para a noite interior, para o fundo do mundo onde "Deus escreve na areia", para o que lhe trazem os sonhos: pequenas coisas, simples como o degelo nos dias de Março, as nuvens escuras no céu do mar, o azul das urzes, uma casa junto a um rio caudaloso, um bando de estorninhos que faz frente ao nascer do dia, "a luz teatral dos candeeiros" nas noites de Verão, um barco que parece "um alaúde enorme sem cordas". Ele percebe esse mundo em mudança, a ciência que avança sem se deter, os nomes novos das coisas: nos seus sonhos há duas paisagens numa encruzilhada, a natural e a industrial. A memória e a história: "pedras brancas / sinalizavam o caminho para a lua".

Os amigos. O poeta americano Robert Bly, que o traduz. O poeta sírio Adónis, que o acompanha em leituras de poemas pelo mundo árabe. Há o desastre de Bhopal, na Índia (1984), gases tóxicos são libertados de uma fábrica como nunca antes acontecera. "A Primavera mostra-se deserta". A morte disse presente com a voz grave e cheia. Pouco tempo depois, Tomas Tranströmer (entre muitos outros) lê os seus poemas no lugar da tragédia. O violino saiu da sua caixa negra. Os versos do poeta estão espalhados pelo mundo. Dizem que em 60 línguas.

Em 1990, o sangue derrama-se devagar no cérebro de Tomas Tranströmer. "Acontece a meio da vida, a morte bater-nos à porta / e tomar-nos as medidas. Esta visita é esquecida, / e a vida continua. O fato, porém, esse / é cosido em silêncio." Ele perde a possibilidade de dizer as palavras, e a metade direita do corpo fica paralisada. Mas continua a escrever. E a tocar piano com a mão esquerda. "Sonhei que desenhava teclas de piano na mesa da cozinha. / Tocava nelas surdamente. / Os vizinhos chegavam para me escutar."

Setenta e cinco anos depois daquele crepúsculo frio em que demorou a chegar a casa, sozinho, levado pelo mistério da migração das aves, e quando torna a não poder usar a sua voz, irão reconhecê-lo. Dele dirão então muitas coisas. O seu momento chegou. Mas continuará, como sempre, a procurar a última palavra. Aquela antes da morte chegar de novo.

Ver crítica de livros págs. 30 e segs.

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