Dois terços dos casos de abuso de menores são arquivados

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Maioria dos casos perde-se por insuficiência ou ausência de provas MANUEL ROBERTO

Crianças abusadas sexualmente deviam ser ouvidas uma só vez e apenas por psicólogos forenses, apelam especialistas

Mais de metade dos casos de abuso sexual de menores que entram nos tribunais portugueses acabam arquivados por falta de provas: 68,1%, segundo Patrícia Jardim, que, no âmbito da sua tese de mestrado em Ciências Forenses, analisou 185 decisões judiciais relativas a abusos sexuais de menores, ocorridos entre 2004 e 2008 na área de influência da delegação do Norte do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML).

Daquele universo, só 30,8% dos casos foram acusados e julgados, tendo resultado em 86% de condenações e 14% de absolvições. Temos assim que, em 185 casos de abuso sexual de menores, apenas 26,5% resultaram na condenação do agressor. Porquê?

"Por insuficiência ou ausência de provas", responde Teresa Magalhães, professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e coordenadora desta investigação, para quem os tribunais sobrevalorizam a existência de vestígios físicos ou biológicos do abuso em detrimento do testemunho das vítimas.

"As vítimas, e muitas são pequeninas, revelam muito mal e muito tardiamente os abusos, que, por isso, chegam demasiado tarde à Medicina Legal para se poder fazer prova, porque as lesões já cicatrizaram ou porque os vestígios como sangue, esperma ou saliva foram lavados ou destruídos. Por outro lado, ainda há profissionais - cada vez menos - que não orientam imediata e correctamente os casos a fim de ser feito o diagnóstico. Depois há casos em que os abusos sexuais simplesmente não passam por contacto físico, não deixando por isso de ser abusos", explica Teresa Magalhães, também responsável máxima da delegação do Norte do INML.

A par de uma campanha de sensibilização da população para os abusos sexuais de menores, capaz de promover a denúncia atempada dos casos, Teresa Magalhães insiste que era "fundamental" que os tribunais portugueses começassem a valorizar mais o testemunho das vítimas. Tal implicaria, porém, mudanças.

Estudo pioneiro

"Há estudos que comprovam que uma criança é ouvida em média oito vezes e por profissionais diferentes, o que, além de contaminar o relato, resulta na vitimização secundária da criança. O INML vai lançar agora um segundo curso de formação de psicólogos forenses para dotar o país de profissionais aptos a lidar com estes casos, porque há modelos de entrevista e critérios científicos que permitem avaliar a veracidade dos relatos. Porém, obviamente que não adianta ter profissionais se os tribunais não lhes dão espaço para trabalhar e, sobretudo, se em termos legais não forem criadas condições para eles poderem actuar", apela aquela especialista.

O ideal era que, à semelhança do que se passa noutros países, "os psicólogos forenses fossem os primeiros e os últimos a falar com a criança, sempre na presença de um juiz de instrução, idealmente através de um vidro unidireccional, que já existe no INML e na Polícia Judiciária". Gravado em registo áudio ou vídeo, o depoimento serviria para memória futura.

O estudoO impacto da perícia médico-legal na decisão judicial nos casos de abuso sexual de crianças, cuja amostra vai agora ser alargada no âmbito do doutoramento de Patrícia Jardim, é o primeiro que analisa os casos de abuso sexual de menores que foram alvo de decisão judicial e que avalia o efeito do exame médico-legal nessas decisões. O pressuposto inicial é que muitas das situações arquivadas ou absolvidas podem corresponder a efectivos crimes de natureza sexual, tendo o seu desfecho decorrido de falhas na recolha de prova ou de uma avaliação errada por parte dos tribunais.

"Claro que, em caso de dúvida, o tribunal decide a favor do alegado agressor", ressalva Teresa Magalhães. "A questão é que a evidência científica já demonstrou que numa alta percentagem destes casos não existem, nem nunca vão existir, evidências físicas ou biológicas."

Elas vítimas, eles agressores

Admitindo que algumas práticas possam ter melhorado, as conclusões do estudo ajudam a desenhar o cenário em que se desenrolam estes crimes. As vítimas eram maioritariamente do sexo feminino. Ao contrário, 99,5% dos agressores eram do sexo masculino. O tipo de práticas mais descritas foram as carícias sexualmente explícitas (33,5%) e a penetração vaginal e/ou anal (27%). Os abusos, praticados maioritariamente na casa da vítima ou do agressor, terão sido recorrentes em 43,6% dos casos.

Em 75,7% dos casos, o intervalo de tempo entre o último contacto sexual e o exame médico-legal foi superior a 72 horas, o que inviabiliza a colheita de vestígios biológicos para estudo de ADN. A entrevista forense só foi solicitada em 52,4% dos casos, percentagem que, segundo Patrícia Jardim, "poder-se-á dever ao facto de, no período em estudo, não se contar com uma equipa de entrevistadores forenses capazes de dar resposta às necessidades do país".

Quanto às penas aplicadas pelos tribunais, 49% dos agressores foram condenados a prisão efectiva e 42,8% a pena suspensa. O tempo médio das penas foi de 4,1 anos. Entre a realização do exame médico-legal e a decisão judicial, nos casos que foram a julgamento, as vítimas tiveram de esperar, em média, 22,4 meses.

Note-se, contudo, conclui Patrícia Jardim, que "este valor médio poderá ser ainda maior para os casos sujeitos a julgamento, pois só se obtiveram as decisões judiciais relativas a 17,7% de todos os casos solicitados, sendo que muitos deles podem não ter sido disponibilizados por ainda não estarem concluídos".

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