"A revolução parece gostar do Inverno"

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Na Tahrir, todos se manifestam com todos e até as claques dos dois grandes do Cairo trocam as bandeiras do Al-Ahly e do Zamalek pelas cores nacionais ODD ANDERSEN/afp

Khaled foi morto numa noite de Verão em Alexandria, outro Khaled nasceu dois outonos depois no Cairo, quase a adivinhar-se um novo Inverno. "Isto parece-se muito com Janeiro e Fevereiro", diz Mona Soueif, activista, tia do segundo Khaled. Já está frio no Egipto e é quase Janeiro outra vez.

O comboio que vem do Cairo pára em Sidi Gaber antes de chegar à estação principal, no centro de Alexandria. O Mediterrâneo adivinha-se, o ar é fresco e enche depressa os pulmões de quem chega da capital, mas ainda não se vê. Nas ruas mais largas de Sidi Gaber os prédios são quase todos da mesma altura e alguns já foram bonitos, brancos ou amarelados, com varandas de bico, e há palmeiras. O que sobra de elegância à cidade de Alexandre é colonial e não imperial.

Foi da esquadra de Sidi Gaber que saíram os dois polícias vestidos à civil que mataram Khaled Said à pancada. Fizeram este mesmo caminho, de carro, numa terça-feira de Verão à noite. Mesmo a pé, continuando em direcção ao mar e ao centro depressa se alcança Cleopatra Hammamat, Banhos de Cleópatra, uma área mais movimentada mas, como o resto da cidade, ainda a acordar nesta manhã de sexta-feira.

Khaled Said era um "filho de Cleópatra", um habitante deste bairro da segunda maior cidade do Egipto. Vivia entre cafés envelhecidos onde é possível acreditar que já tudo foi pensado, não longe da Biblioteca onde todo o mundo já coube, com o Mediterrâneo inteiro à frente dos olhos. Morava neste prédio e passava parte do tempo no cibercafé em frente, que agora está fechado, como o comércio à volta. Haitham Misbah, filho do dono, viu Khaled entrar nessa noite de Verão. Ahmed Manduah, um jovem empregado, também. Viram-no entrar e morrer.

"Agarraram-lhe na cabeça e bateram contra uma prateleira de mármore", contou Misbah, num testemunho citado pela Human Rights Watch. Arrastaram-no para a rua. "Bateram com a cabeça contra uma porta de ferro. Bateram-lhe na cara e estômago. Deram-lhe pontapés com tanta força que ele caiu de um degrau. Pegaram-lhe pelo pescoço e bateram com a sua cabeça contra o degrau." Khaled ainda disse "vou morrer". "Eles continuaram a bater-lhe mesmo quando ele já estava morto."

Khaled Said morreu a 6 de Junho de 2010, aos 28 anos. Em Outubro teria cumprido 29, este ano teria festejado 30. Nasceu em 1981, dias depois do assassínio do Presidente Anwar Sadat, mesmo a tempo das leis de emergência que permitiam às autoridades prender e espancar sem razão alguma.

As autoridades disseram que Khaled morreu ao engolir um saco de marijuana, mas sabe-se que acreditavam que o jovem tinha filmado um grupo de agentes a dividir droga apreendida numa operação. Na morgue, o irmão fotografou com o telemóvel o rosto de Khaled, desfigurado e pisado, a boca aberta, os dentes a menos, as marcas de sangue.

A fotografia chegou à Internet e Wael Ghonim viu-a em casa, no Dubai. Alaa Abd El Fattah viu-a na África do Sul, onde vivia desde 2009 com a sua mulher, Manal. Os dois rostos de Khaled - o sorridente e o torturado - começavam a entrar nas casas dos egípcios. Cinco dias depois da sua morte, Ghonim, que trabalhava na Google, criou a página de Facebook "Somos todos Khaled Said". Ainda era Verão.

Dezembro em Sidi Bouzizi

Mohamed Bouazizi imolou-se pelo fogo na rua principal de Sidi Bouzizi, no centro da Tunísia, a 17 de Dezembro do ano passado. Nas semanas seguintes, tunisinos em todo o país gritaram "Somos todos Mohamed Bouazizi". "Somos todos Khaled Said" já tinha dezenas de milhares de seguidores - na primeira hora já eram quatro mil. Mas foi o grito "Somos todos Mohamed Bouazizi" que primeiro levou um ditador árabe a cair sob a pressão das ruas.

O vendedor ambulante de 26 anos que sustentava a família e sonhava ter um camião para deixar de empurrar o carro da fruta morreu a tentar chamar a atenção, cansado das permanentes humilhações dos polícias municipais que lhe exigiam uma licença inventada à espera de um suborno. Os tunisinos ainda não tinham percebido, mas estavam prontos. Só precisavam de um pretexto para perder o medo que paralisa e Bouazizi foi a improvável faísca.

No Egipto, alguns preparavam o momento há anos, mas faltava que muitos mais se lhes quisessem juntar. Para uns e outros, por uma sucessão improvável de acontecimentos ou porque só faltava mais um pretexto, a imagem desfigurada de Khaled tornou-se no símbolo da brutalidade do regime de Hosni Mubarak, o antigo marechal da Força Área na presidência desde a morte de Sadat.

Bastaram 29 dias de protestos para Ben Ali, há 23 anos no poder, fugir da Tunísia em direcção à Arábia Saudita. "O avião não pode fazer escala no Cairo?", perguntava-se nas redes sociais. "Cada líder árabe está a olhar para a Tunísia com medo. Cada cidadão árabe está a olhar para a Tunísia com esperança." O tweet da colunista egípcia Mona Eltahawy foi reenviado ao longo de todo o dia de 14 de Janeiro.

Janeiro na Tahrir

O primeiro protesto do último sopro de Hosni Mubarak foi marcado para 25 de Janeiro, uma "homenagem" à polícia na data em que se celebra um feriado em sua honra. Foi na página do Facebook criada por Ghonim em nome de Khaled Said que o apelo apareceu primeiro. Alaa Abd El Fattah e Manal, programadores que desenvolvem software livre, deram eco ao protesto no premiado blogue manalaa, que mantêm desde 2004.

Ghonim convenceu a Google a deixá-lo regressar ao Cairo a tempo da manifestação que se transformou em ocupação. A 27 de Janeiro, desapareceu. Regressou à Tahrir 11 dias depois, a 8 de Fevereiro, revelando ter estado preso e assumindo a autoria da página de Facebook. Nessa terça-feira, conheceu a mãe do jovem de Alexandria e ela enganou-se e chamou-lhe Khaled.

Alaa chegou à Tahrir a 28 de Janeiro, no dia da "Batalha dos Camelos", quando mercenários contratados pelo regime entraram na praça a camelo e a cavalo. Nesses dias em que nascia um novo Egipto na Tahrir, Alaa percebeu que o debate podia ser mais produtivo se fosse minimamente organizado. Decidiu iniciar as séries TweetNadwa, um modelo de encontros promovidos no Twitter para discutir questões políticas. Um conjunto de oradores inicia o debate e alimenta-o por alguns minutos, até que a conversa se alarga e cada participante pode falar durante 140 segundos.

Há duas semanas, Ahdaf Soueif, romancista e tia de Alaa, lembrava no diário britânico Guardian um desses encontros na Tahrir: "Sentámo-nos no chão, um ecrã a passar tweets que rolavam uns atrás dos outros, um debate sobre a reestruturação do brutal aparato de segurança de Mubarak. Se alguém gostava do que ouvia, agitava a mão no ar. Quem passava parava intrigado e acabava por ficar e contribuir. Gente diferente, cada vez mais, mil pessoas, e Alaa no meio delas, a facilitar, a dirigir, a articular, empenhado e apaixonado."

Quem passou esses 18 dias na Tahrir lembra muito mais o que sentiu do que aquilo em que pensou. Alaa al-Aswany, por exemplo, diz que descobriu ali o significado da palavra "povo" e que viu o seu descobrir a dignidade. Ele, que a 28 de Fevereiro de 2010 escrevia: "Já não vale a pena mendigarmos os nossos direitos apelando ao regime, porque ele não vai ouvir. Porém, se um milhão de egípcios saísse à rua em protesto, o regime prestaria atenção às exigências do povo." Um ano depois: "Li na Internet o apelo a uma manifestação na pra? ?a Tahrir, a 25 de Janeiro, mas não prestei muita atenção. [...] Acordei cedo, como de costume, e estive ocupado a trabalhar no meu novo romance até ao meio-dia, mas, quando me sentei para almoçar e liguei a televisão, vi um milagre. Um milhão de egípcios tinha saído à rua para exigir a saída de Mubarak. Vesti-me à pressa e juntei-me à revolução egípcia até ao ?m."

Alaa al-Aswany é dentista, colunista e opositor. Em 2004, ajudou a fundar o movimento de protesto Kefaya ("basta"). Também é o romancista árabe que mais vende no mundo (autor de Chicago ou O Edifício Yacoubian) e tornou-se no cronista dos revolucionários.

Outubro de Maspero

"Houve um desentendimento entre a revolução e os militares. Quando os egípcios impuseram a Mubarak que deixasse o poder, era o primeiro passo para eliminar o regime. Mas o Conselho Supremo das Forças Armadas aceitou a demissão de Mubarak como salvação do regime e ainda tenta garantir a sua sobrevivência", disse-nos Aswany numa entrevista em Outubro. "A revolução é mais importante do que qualquer eleição, do que qualquer Parlamento, é mais importante do que tudo", afirmou na semana passada numa concorrida conferência no El Sawy Cultural Wheel, um centro cultural em Zamalek, bairro de classe média alta do Cairo.

A revolução que começou fisicamente com o milhão que encheu a Tahrir a 25 de Janeiro está longe de ter acabado. Outubro anunciou o regresso do Inverno.

Khaled Said foi morto em Alexandria mas é no centro da capital egípcia que as paredes exibem graffiti com o seu rosto e que ainda há tendas erguidas por pessoas que recusam esquecer a sua morte. Junto à imagem do jovem sorridente, cabelo curto e camisola de capuz, surgem dois rostos repetidos, barba curta e cabelo comprido. Alaa Abd El Fattah e Mina Daniels. O primeiro está preso desde 30 de Outubro, acusado de incitar a violência e de distribuir armas entre os 50 mil manifestantes desarmados que a 9 de Outubro marcharam até ao edifício da televisão estatal em Maspero, no Cairo, num protesto contra uma série de ataques a igrejas ainda sem suspeitos. O segundo foi um dos 27 cristãos coptasmortos pelo Exército nesse dia.

Em Maspero, um militar esmagou egípcios debaixo das rodas de um tanque. O pânico levou alguns a saltarem para o rio. Sete morreram no Nilo. Os mesmos militares que tinham recusado disparar contra os egípcios em Fevereiro deixavam de ser "os guardiões da revolução". "Em Maspero, sentimos todos que tínhamos voltado a nascer", diz à Pública Wael, um dos manifestantes.

Tantos desentendimentos

Desentendidos os revolucionários e os militares, os percursos de uns e de outros foram chocando aqui e ali ao longo do ano. Houve quem nunca mais tivesse ido à Tahrir. E houve quem nunca mais tivesse deixado de caminhar até à praça.

Mohamed Ezzat, 26 anos, já perdeu a conta às vezes que saiu de casa, em Port Said, a norte do Canal de Suez, com destino à Tahrir do Cairo. Assume que da primeira vez que se pôs a caminho, em Janeiro, o fez porque "os outros" lhe pediram - fala dos bloggers como "os outros", apesar de ter Twitter e Facebook e iPhone. Os bloggers "estão em casa ou ficam ali, no meio da praça, mas quando é preciso defender a Tahrir não são eles que arriscam a vida", diz Mohamed, sentando à porta da tenda de Port Said.

Os meses passaram e a Tahrir (o nome quer dizer "Libertação", mas hoje todos lhe chamam "praça da Revolução" ou "a midan", palavra árabe para praça) voltou a ver chegar multidões que exigiam o julgamento de Mubarak, o fim dos tribunais militares para civis, mudanças na lei eleitoral, indemnizações às vítimas da revolução (mais de 800 mortos), o julgamento dos agentes que dispararam contra manifestantes em Janeiro e Fevereiro, um inquérito independente ao massacre de Maspero. Muitas sextas-feiras com slogans diferentes e alguns acampamentos.

Pouco depois de Maspero, o Conselho Supremo para as Forças Armas (SCAF, no poder desde Fevereiro) divulgava um conjunto de princípios constitucionais que dizia querer impor ao futuro Parlamento, antes ainda de os egípcios começarem a votar. O documento estabelecia que o poder militar está acima do civil e que caberia ao SCAF escolher 80 dos 100 membros do comité que terá a cargo a redacção da futura Constituição.

Um protesto pacífico

A 18 de Novembro, mais de 40 partidos e movimentos pediram aos egípcios para protestarem na Tahrir, incluindo os jovens da geração Facebook, responsáveis por começar a revolução. Objectivo: pressionar o SCAF a abandonar os artigos pré-constitucionais e a organizar eleições presidenciais em Abril, em vez de arrastar o processo de transição até 2013.

Muitos ensaiaram os slogans da Irmandade Muçulmana, o maior grupo islamista do país, um dos promotores do protesto. Alguns trouxeram cartazes a lembrar Khaled Said e Mina Daniels, outros retratos de Alaa Abd El Fattah. Da prisão, o blogger pedira que celebrassem o seu aniversário na praça. Alaa só fez anos, 30, no dia 28, no mesmo dia em que os egípcios começaram a votar, mas não tinha como adivinhar que dia 18 não seria a única oportunidade para a Tahrir lhe dar os parabéns.

Salma El Tarzi, cineasta de 33 anos, veio sem cartazes. "Quando estávamos aqui acampados, em Fevereiro, ainda não tínhamos consciência disso, mas a revolução que estávamos a começar já era contra o Exército. Mubarak era só o tipo que por acaso estava no poder", diz a jovem.

Mohamed Mohsen, um músico de 25 anos, não perde uma manifestação desde Janeiro e poucas foram as sextas-feiras em que não esteve na praça. Entretanto, vai cantando a revolução e já dedicou uma canção a Mina Daniels: "95% das minhas letras são de intervenção cívica. Era tão fácil se eu quisesse cantar sobre amor. Mas é melhor cantar para o meu país, para o meu povo, sobre as suas queixas, as suas esperanças."

Saleh Mohamed só trouxe um autocolante do grupo contra os julgamentos militares - para além de Alaa Abd El Fatah, o SCAF prendeu 12 mil activistas que enviou para tribunais militares. Saleh não pertence a este grupo nem a nenhum. Com 24 anos, o jovem técnico de segurança numa empresa de gás é apenas um manifestante. É dele um dos retratos do portfólio de Peter Hapak que acompanha na revista Time o anúncio da figura de 2011: "The Protester".

Salma riu com os amigos, Mohamed cantou, comeram-se pipocas e algodão doce, os vendedores de bandeiras e de t-shirts da revolução encantados com a enchente.

Parabéns a Alaa

A festa de aniversário de Alaa estava marcada para as 18h diante da Mugamma, o grande edifício governamental que é o maior da Tahrir. Começou com atraso, mas teve dois bolos com velas, garrafas de sumo e muitos convidados. Saleh conseguiu abrir caminho entre os manifestantes e os fotógrafos e cantou os parabéns a Alaa de cócoras, a dois metros da família. Sentada no chão, Ahdaf Soueif bateu palmas e sorriu, rodeada de irmãos, tios e sobrinhos. "Penso que o mantêm preso porque viram nele aquilo que eu já tinha visto, capacidade de liderança", afirmava numa entrevista, dias mais tarde. "Estamos esperançados, mas cautelosos."

Nas últimas semanas, a família dividiu-se em piquetes, uns ocupados a fazer a revolução na Tahrir, outros a acompanharem sucessivas sessões em tribunal, outros ainda ocupados com Manal, a mulher de Alaa, grávida do primeiro filho de ambos.

"O Eid [al-Adha, a festa do sacrifício, a 7 de Novembro] passou e o mesmo acontecerá com o meu aniversário, mas eu estou habituado a passá-los longe da minha família", escreveu Alaa a partir da prisão. "Mas como é que eu posso falhar o nascimento de Khaled, o meu primeiro filho? Como é que vou poder olhá-lo nos olhos quando lhe prometi que ia nascer livre? Decidimos chamar-lhe Khaled em homenagem a Khaled Said, a quem estamos profundamente em dívida. Mas em vez de prenderem os que mataram Khaled Said, somos nós que estamos na prisão!"

As velas do bolo de anos de Alaa apagaram-se e a multidão começou a abandonar lentamente a Tahrir. Os partidos islamistas disseram aos seus seguidores que podiam ir para casa, depois de terem começado por defender que o protesto desse início a um sit-in, a manter até o SCAF aceitar as reivindicações dos manifestantes. Uns cem familiares de mortos de Janeiro e Fevereiro e feridos desses protestos ficaram acampados. Mohamed Ezzat, o jovem de Port Said, também ficou. Ahmad Ibrahim passou a noite na Tahrir com um grupo de amigos, incluindo a irmã mais nova de Alaa, Mona Soueif, 25 anos, uma das fundadoras do movimento No Military Trials.

Sábado, 19 de Novembro

Mohamed e Mona estavam na praça quando a polícia entrou, à bastonada. Ahmad tinha ido a casa e estava a tomar banho quando o telefone começou a tocar. Eram 9h30 e o dia 19 de Novembro estava apenas a começar.

O primeiro avanço da polícia, quando não havia mais de 150 pessoas na praça, prolongou-se até ao meio-dia e saldou-se em pelo menos 25 detidos. A segunda investida começou pelas 15h, altura em que já havia milhares na Tahrir. Algumas ambulâncias foram impedidas pela polícia de se aproximar dos feridos, que sofriam de asfixia por gás lacrimogéneo e feridas de balas de borracha ou pedras - muitos agentes atiravam de volta pedras lançadas pela multidão. Eram quase 18h quando a polícia decidiu reentrar na praça, lançando continuamente gás e disparando balas de borracha, até empurrar toda a gente para as ruas e pontes que desembocam na Tahrir.

Depois da fuga, milhares reagrupam-se ao lado do edifício cor-de-rosa do Museu Egípcio. Avança-se e recua-se, sem saber o que pensar ou esperar. Há agentes que caminham na direcção dos manifestantes, com os seus capacetes e escudos, todos vestidos de negro. Chovem cilindros de gás que fazem chorar e irritam os olhos, a pele, a garganta e o juízo. Há quem ofereça lenços de papel. Daqui a umas horas já serão distribuídas máscaras cirúrgicas. Alguns jovens começam a arrancar nacos de passeio para preparar munições. Uma senhora de 50 anos aproxima-se com a filha adolescente e estende as mãos para receber as pedras acabadas de arrancar, atirando-as contra o asfalto até se partirem em pedaços mais pequenos.

Durante quase duas horas a multidão parece derrotada, dispersa. Mas "a praça é do povo" e a polícia não fica. Sem que ninguém consiga explicar como nem porquê, os agentes recuam enquanto os grupos que antes fugiam avançam de regresso à Tahrir.

A polícia não desapareceu, mantendo posições em duas das ruas que saem da Tahrir, incluindo a Mohammad Mahmoud, que dá acesso ao Ministério do Interior. "Liberdade, liberdade", cantam dezenas de milhares. "O povo quer a queda do marechal", "a praça é do povo".

"Estou tão cansada de tentar perceber porque é que nos atacaram. Por um lado, ganham em manter este estado de coisas, com tudo a arder, para dizerem que são necessários. Mas também acho que o Ministério do Interior não sabe fazer as coisas de outra forma. Eles não sabem lidar com protestos pacíficos, só sabem responder com violência", diz Mona Soueif. "Agora a praça começa a parecer-se com a praça da revolução. Sem os palcos dos islamistas. Cheia de gente que não sabe o que vai acontecer. Sabe bem", diz Ahmad Ibrahim. "Isto parece-se muito com Janeiro e Fevereiro. Espero que seja uma nova vaga da revolução", acrescenta a jovem activista. "Há bocado estávamos a brincar com o facto de se estar a aproximar o Inverno. A revolução parece gostar do Inverno."

Ahmad e Mona estão no passeio da Tahrir que fica em frente à rua Mohammad Mahmoud, onde a polícia continua a lançar gás. O grupo de activistas amigos começa a crescer. O último a chegar é igual a Wael Ghonim, sweatshirt, mãos nos bolsos, óculos rectangulares pequeninos. "Desculpem, mas deixei de dar entrevistas. Ia mesmo agora pôr o capuz e esconder a cara com a camisola."

Saleh também está de volta, agora já com os olhos sujos de uma mistura de fermento e água que os egípcios descobriram ser eficaz contra o gás, como na foto da Time. "Isto foi muito parecido com o 28 de Janeiro, só que com menos pessoas." Abd El Halim, um amigo, só veio ao final do dia, depois de ver as imagens de uma carrinha celular a arder na Tahrir. "Querem manipular as pessoas, passaram as imagens da carrinha num plano fechado durante imenso tempo para culpar os manifestantes. Disseram que só havia aqui bandidos que querem destruir o governo. Eu vim pela [ponte] Qasr el-Nil e encontrei os meus amigos, cruzei-me com crianças, raparigas, só pessoas normais. Vi o Ayman Nour [ex-líder da Liga Árabe, candidato à presidência]."

Domingo, 20 de Novembro

Sábado dia 19 de Novembro só fez Saleh lembrar-se de 28 de Janeiro porque o domingo ainda não tinha chegado. Não há quem tenha estado na praça ou nas suas imediações sem ter visto um morto, muitos atingidos na cabeça com munições reais. Pelo menos 45 pessoas morreram nessa semana, a maioria nesse dia. Ahmad Gamal, finalista de Medicina de 23 anos, passou a tarde num hospital improvisado num rés-do-chão, duas ruas atrás da Tahrir. Viu o gás chover pelas duas entradas sem acreditar. Viu um manifestante morrer asfixiado, depois de o ter começado a tratar por um ferimento menor. Dezenas de pessoas ficaram cegas. Centenas foram feridas.

Cada manifestante tem a câmara do seu telemóvel à mão. Há imagens de polícias a arrastar corpos até uma pilha de lixo. Um polícia a fazer pontaria ao olho de um manifestante e depois a ser saudado pelos colegas.

Mohamed Ezzat passou os dias seguintes na rua Mohammad Mahmoud. "Eles dizem que nós queremos atacar o Ministério do Interior, que estão ali para proteger o edifício. Mas pensam que somos atrasados mentais? Se quiséssemos atacar o ministério íamos à volta, pela retaguarda da polícia. O que nós estamos a fazer é a proteger a praça", afirma à Pública. Na tenda de Port Said coleccionam-se mazelas, cilindros de gás lacrimogéneo e munições variadas. "O gás é um novo pequeno-almoço."

Saleh Mohamed não acampou na Tahrir. Continuou a ir dormir algumas horas a casa, saindo todas as manhãs para o trabalho e voltando à praça ao final do dia. Na terça-feira, dia 22, foi preso na Mohammad Mahmoud e passou a noite detido. "Deram-me pontapés e bateram-me com bastões", contou dias depois, uma perna cheia de nódoas negras e um corte de dois centímetros na cabeça. Na primeira semana, Saleh queixava-se do corpo mas garantia que estava bem, cada vez com menos dores. Na semana passada, dizia-se cansado e em baixo.

Depois de Dezembro

Depois dos mortos de Novembro, "os mártires da Mohammad Mahmoud", vítimas da "segunda vaga da revolução", até gente que nunca se tinha manifestado na vida esteve na Tahrir. Mas o Egipto não voltou a ver marchas de um milhão.

Mohammed Ezzat foi o último a sair da "midan". Na verdade, ainda lá está, de quinta a sábado à noite. Faz sit-in ao fim-de-semana, para não perder o emprego. Os outros vão e vêm, mas quase já não ficam. A Tahrir foi-se esvaziando à medida que o cansaço de Saleh Mohamed aumentava, Alaa Abd El Fattah ainda na prisão. Há uma semana, o trânsito voltou a circular na "praça do povo", onde só permanecem as tendas nos relvados diante da Mugamma e, no passeio central da rotunda, pouco do que já foi o comité organizador.

Mas a revolução já transbordou da Tahrir e os egípcios vivem-na todos os dias. Quando votam nas legislativas que só terminam em Janeiro, quando escolhem não o fazer por considerarem que o SCAF não tem legitimidade para as organizar. Quando vão trabalhar ou se dirigem à mesquita. Quando escolhem sair de casa e ir à conferência que Alaa al-Aswany deu em Zamalek, rir das piadas do romancista ou abanar a cabeça em sinal de discórdia quando este acusa a Irmandade Muçulmana de ter vendido os revolucionários em troca de votos. Não cabem nos lugares sentados da maior sala do centro cultural, levantam-se e discutem, apupam e aplaudem.

"Eu estava na Mohammad Mahmoud", afirma um senhor mais velho a chorar. Uma mulher de lenço e dedo em riste tenta dizer que os polícias estavam a defender o ministério. "Nunca esqueceremos os que morreram, nunca!", grita-se. Dez minutos de indignação geral e a senhora de dedo no ar está esgotada. São dez da noite e a conversa promete continuar. Aswany ainda não parou de limpar a testa mas não mostra outros sinais de cansaço, blazer e cachecol ao pescoço, papéis brancos a voarem entre as mãos. Há intervenções espontâneas e fazem-se chegar perguntas escritas à mesa. "A revolução não é um ponto de vista, é um facto", diz Aswany. Na Tahrir ou em Zamalek.

Até quarta-feira passada, 1.794.367 clicaram "gosto" na página "Somos todos Khaled Said". Khaled, o filho de Alaa e de Manal, nasceu uma semana antes. No domingo, o pai teve a primeira audiência desde que o seu caso foi transferido para um tribunal civil e algumas das acusações foram retiradas. Saleh Mohamed acaba de trocar a fotografia no seu perfil de Facebook por uma imagem a preto e branco. Uma rua larga, manifestantes ao fundo, no chão um chapéu de oficial e ao lado uma data: 25 de Janeiro de 2012.

sofia.lorena@publico.pt

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