"É impressionante pensar que temos um modelo económico que exporta parafusos para importar pão"

Fundador do Partido Popular Monárquico e do Movimento Partido da Terra, Gonçalo Ribeiro Telles há muito que defende o campo às portas da cidade. Aos 89 anos, o antigo ministro da Qualidade de Vida alerta que ainda há muito a fazer, pois "os espaços verdes nem sempre são convidativos para o lazer"

Num momento em que se avizinha a votação do Plano Director Municipal de Lisboa e do Plano de Pormenor do Parque Mayer pelos deputados municipais, o PÚBLICO falou com o arquitecto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles sobre a vida na cidade. O "jardineiro de Deus", como lhe chamou o Prémio Pessoa 2011, Eduardo Lourenço, foi homenageado este mês pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Centro Nacional de Cultura por continuar a ser um visionário.

Qual é o principal problema da cidade de Lisboa?

A sua relação com a área metropolitana - e também com o país. Muitas vezes os planos directores municipais [PDM] não atendem a essa relação. Hoje o grande problema de uma cidade é o abastecimento alimentar. Não só quanto à qualidade como quanto ao custo e facilidade de obtenção. Uma cidade como Lisboa depende muito da produção alimentar que lhe é fornecida. Quanto de mais longe vier, maior o custo. A subida dos preços do leite, da carne e tudo isso influi extraordinariamente na qualidade de vida.

Qual é a solução?

Tem de ser lançada uma campanha de agricultura de sustentabilidade dos agregados urbanos. É preciso valorizar o mundo rural - que não pode viver exclusivamente da exportação, mas também do consumo interno. É impressionante pensar que temos um modelo económico que exporta parafusos para importar pão. Com uma agricultura sustentável na envolvência das cidades, impede-se a impermeabilização do solo pela construção e as suas consequências [as cheias].

Mas os subúrbios estão cheios de betão. Defende a sua implosão para fazer hortas?

Hoje as hortas já são indispensáveis às cidades europeias. Temos de alargar esse conceito a aspectos mais próprios do campo rural do que a horta. Podemos ter nesses terrenos a agricultura da região onde se localizam.

Como?

A cidade tem de deixar de se desenvolver em sucessivos anéis de construção na sua orla periférica. O campo tem de estar à porta da cidade com toda a sua riqueza. As pessoas devem poder lá ir sem terem de se deslocar centenas de quilómetros.

Está a falar de terrenos ainda vagos nos arredores?

É isso. E que são considerados por muitos responsáveis como espaços a rentabilizar [com construção].

Como vê Lisboa daqui a 100 anos?

Como vejo surgir empreendimentos urbanísticos em zonas absolutamente necessárias ao abastecimento e ao recreio da população, temo muito pelo seu futuro. Tanto na margem Norte do Tejo como na margem Sul. Depende muito do que se fizer em matéria de ordenamento do território. Há neste momento um ministério que além desse pelouro tem a agricultura, o mar, o ambiente... Mas não pode funcionar sectorialmente. E muitos dos seus responsáveis mais directos não têm ideia de como harmonizar todos estes valores.

Lisboa vai ter um novo PDM. O que acha do documento?

Ainda não o conheço bem. Como é óbvio não se pode circunscrever ao concelho, tem de se coordenar com os planos directores dos municípios que confinam com Lisboa, como Loures ou Oeiras. O que gostava de ver discutido neste PDM era a estrutura verde da cidade e a sua relação com os concelhos circundantes. E toda a política de ambiente e ordenamento do território do Governo tem de exigir este tipo de inter-relação entre os PDM. Se não, criaram um Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território para quê?

A cidade tem-se portado bem em matéria ambiental?

Tudo quanto seja o aumento da impermeabilização do solo é portar-se mal. Isso tem acontecido, sobretudo nos logradouros interiores e quintais. Também se tem portado mal quando a estrutura verde cresce artificialmente nos terraços dos edifícios com o objectivo de deixar o solo livre para construção.

São críticas que fez ao futuro PDM... não foram tratadas?

Gostava de sabê-lo. Mas não sou fiscal. É bom que o novo PDM mostre qual vai ser a relação da cidade com os seus aspectos naturais - jardins, parques, arvoredos. A estrutura verde não pode depender da edificada. Tem que valer por si própria. O verde não pode ser visto como uma sobra consentida entre prédios.

Falou dos parques e jardins de Lisboa. Estão a ser devidamente tratados?

Muitos deles, julgo que não. Ainda há um modelo de gestão bastante antiquado. É o caso do tratamento dos relvados e das diferentes massas arbustivas. Claro que existe o problema da segurança, de haver quem se possa esconder no arvoredo. Mas não se pode resolver o problema à custa da depilação de todo o espaço verde - tudo é podado para ter a forma de árvore, mesmo que seja um arbusto, de forma a que se possa ver o que se passa por baixo, junto ao chão.

Foi o que se passou no jardim do Príncipe Real?

Pois foi. Claro que o desenho dos espaços verdes deve ter em atenção a questão da segurança. O problema começa na concepção. Quando não é apropriada, a gestão também não pode sê-lo.

E o Corredor Verde que projectou para ligar os Restauradores a Monsanto? Por que não está pronto?

Tem de perguntar à câmara. Não faço ideia do que aconteceu. Nem sei se o consideram pronto. Mas há muitos outros percursos verdes - como é o caso do Parque Periférico [cintura verde à volta da cidade, projecto dos anos 1990, apenas pontualmente concretizado]. Tem de perguntar como funciona o PDM no que respeita à possibilidade de criação dessa rede de percursos. A câmara é que deve dizer claramente o que está a fazer nesse campo.

Como vê o facto de os parques e jardins da cidade serem tão pouco frequentados, mesmo no Verão?

Talvez o defeito seja dos próprios espaços, que nem sempre são convidativos para o lazer e para a circulação das pessoas. É preciso dialogar com as populações para saber aquilo de que necessitam - e não o que querem, porque isso às vezes são grandes asneiras de que alguém as convenceu.

Desde que começou a receber o Rock in Rio, o Parque da Bela Vista, em Chelas, tem a zona central estragada. Uma parte até foi pavimentada. Estará o parque preparado para tal?

Tudo aquilo é cópia de Central Park, em Nova Iorque, um prado onde se promovem grandes eventos. Não se pode é fazer um parque para funcionar para a população 365 dias por ano e condicioná-lo de repente a duas ou três realizações anuais. É preciso conjugar os dois aspectos - sem destruir a ideia permanente de parque.

As novas construções autorizadas na cidade põem em causa o sistema de vistas de Lisboa?

Muitas vezes sim. De vistas e de circulação do ar.

É o caso do plano de pormenor da zona do Parque Mayer...

Não se deve destruir a relação entre o Jardim Botânico e a Av. da Liberdade, e o plano pode fazê-la perigar. Não sei se os protestos que houve deram ou não resultado. O aumento da volumetria edificada em redor do jardim prejudicá-lo-á ao nível da circulação das brisas, tal como o aumento das áreas subterrâneas de garagem prejudicará a circulação das águas.

Hoje ainda apoiaria o vereador dos Espaços Verdes, Sá Fernandes, como fez nas últimas autárquicas, apesar de ele permitir este tipo de coisas?

Não sei se é ele que permite ou se é o vereador do Urbanismo. Em última análise é o presidente da câmara.

Tem falado com António Costa?

Por amor de Deus, não ando a bater à porta das pessoas e a dizer "Cá estou eu!"

E ao vereador Sá Fernandes já transmitiu as suas preocupações?

Com certeza. Ao Ministério do Ambiente é que ainda não consegui. Mas também me podem dizer: "Não temos nada que ouvir esse fulano".

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