Os que deram as palavras à expressão fadista

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Amália foi a primeira fadista a procurar alternativas na lírica culta DR

A poesia do fado é um mundo ecléctico, povoado por versejadores mais ou menos iletrados, poetas cultos, letristas, dramaturgos revisteiros, romancistas

Até meados do século XX, as palavras do fado eram um território quase exclusivamente ocupado pelos chamados poetas populares, expressão um tanto vaga, já que nela se tende a incluir autores com níveis de literacia bastante diversos, e cujos versos demonstram também diferentes graus de sofisticação literária. Era o tempo do grande Linhares Barbosa (1893-1965) - outro autor de fados da época, Carlos Conde, fez-lhe o epitáfio - "A fadistagem chora, anda saudosa/ Pela falta do seu vate consagrado./ A morte de João Linhares Barbosa/ Roubou-nos meio século de fado!" -, de Frederico Brito (1894-1977), vulgo Britinho, de José Galhardo (1905-1967), autor do Fado Malhoa, do farmacêutico alentejano Alberto Janes (1909-1971), a quem se deve o Foi Deus, expressamente escrito para Amália Rodrigues, ou, entre muitos outros, do autor de peças revisteiras Aníbal Nazaré (1909-1975), em cujo célebre Tudo isto é fado, Vasco Graça Moura encontra uma espécie de Cesário Verde travestido em fadista: "Almas vencidas,/ Noites perdidas,/ Sombras bizarras./ Na Mouraria/ Canta um rufia,/ Choram guitarras./ Amor, ciúme,/ Cinzas e lume,/ Dor e pecado./ Tudo isto existe,/ Tudo isto é triste,/ Tudo isto é fado".

A primeira fadista que, sem deixar de interpretar o património poético tradicional do fado, vai, de modo sistemático, procurar alternativas na lírica culta, é Amália Rodrigues, que canta poemas de autores tão distantes no tempo como os trovadores medievais (que foram, na verdade, os primeiros song writers), o inescapável Camões ou poetas do século XX, como José Régio, Sidónio Muralha, Vasco de Lima Couto, Luís de Macedo, Alexandre O"Neill, Manuel Alegre ou Ary dos Santos. E deixa-se para o fim dois poetas que deram as suas palavras a algumas das mais extraordinárias interpretações da fadista: Pedro Homem de Mello e David Mourão-Ferreira.

No fado pós-Amália

Alguns destes poetas vão escrever expressamente para fado, levando-lhe uma qualidade literária que nunca tinha possuído. Mas a diferença flagrante ente estes dois registos só se torna verdadeiramente óbvia lendo-se os textos lado a lado, e não tanto ouvindo-os nas vozes dos fadistas. Há razões para isso. A primeira é que um poema banal pode ser convertido, pelo mérito de quem o musica e de quem o interpreta, numa canção notável. A segunda prende-se com o facto de os poetas eruditos que escreveram fados partilharem deliberadamente com os autores populares algumas predilecções métricas - que facilitam o canto -, um léxico limitado e um conjunto bastante cerrado de tópicos: a omnipotência trágica do destino - no antigo panteão nórdico, o destino está acima dos deuses -, o namoro, o ciúme, as traições e outras variantes da relação amorosa -, uma Lisboa castiça de que hoje pouco resta, e ainda o próprio fado, que sempre foi tema de si próprio, jogando com a ambiguidade entre a designação de um tipo de canção e o substantivo sinónimo de sina.

No pós-Amália, esta ligação entre o fado e a poesia culta vai decaindo, apesar de exemplos como o de Carlos do Carmo, amigo e intérprete de muitos poetas, sobretudo de Ary dos Santos, ou de João Braga, que se atreveu mesmo a cantar os poemas da Mensagem de Fernando Pessoa. Mas é novamente reactivada nos últimos anos, num movimento que se inicia com Mísia, que conseguiu mesmo arrancar um fado, bastante notável, As garras dos sentidos, à romancista Agustina Bessa-Luís - "Não quero cantar amores,/ Amores são passos perdidos./ São frios raios solares, /Verdes garras dos sentidos". É surpreendente, aliás, a disponibilidade dos romancistas, alguns deles sem nenhuma produção poética anterior conhecida, como Lobo Antunes (cantado, sobretudo, por Katia Guerreiro) ou Lídia Jorge, para escrever fados. Outros ficcionistas, mas estes já com currículo lírico, que escreveram fados são, por exemplo, Mário Cláudio, cantado por Mísia, ou Hélia Correia, que escreveu designadamente para Cristina Branco.

Entre os poetas, o também romancista Vasco Graça Moura é o caso mais singular, com o seu livro Letras do Fado Vulgar (1997), cujos poemas fazem conviver os temas e as métricas tradicionais do fado com alusões cultistas descaradas ou veladas, como sucede no texto que fecha o livro, fado do amanhecer, onde uma citação truncada de T. S. Eliot se intromete sem se dar por ela na descrição muito fadista de uma despedida amorosa. Alguns destes fados foram já cantados, outros aguardam quem lhes pegue. E alguns bem o mereciam, como o madrigal do peixe fresco, em que descreve assim uma peixeira de mercado invejada pelas vizinhas: "(...) fazem um grande escabeche/ com inveja da mais pura/ dos tabuleiros de peixe/ que te chegam à cintura/ a rematar-te a figura/ e a pôr-lhe um brilho que mexe/ de escamas a meia altura".

Célebres e desconhecidos

O exemplo de Mísia foi seguido por outras fadistas, como Cristina Branco, que canta, no seu disco Kronos, poemas de Álvaro de Campos, Manuel Alegre, Hélia Correia ou Júlio Pomar - o divertido Fado do mal passado é apenas uma das incursões fadistas do pintor -, ou Aldina Duarte, com o seu singular trabalho Contos do Fado, para o qual pediu a autores como Manuela de Freitas, Maria do Rosário Pedreira, José Mário Branco ou José Luís Gordo que escrevessem fados a partir de obras literárias. Das muitas fadistas que também escrevem algumas das letras que cantam, Aldina Duarte é provavelmente a que tem textos mais conseguidos, ainda que talvez nenhuma fadista tenha até hoje produzido um poema comparável ao Estranha forma de vida, de Amália Rodrigues.

A par destes escritores que também criam canções, há ainda especialistas do ofício, uma espécie de sucessores escolarizados dos poetas populares do fado tradicional, como José Luís Gordo, marido da cantora Maria da Fé, para quem escreveu o célebre Até que a voz me doa, Tiago Torres da Silva, um engenheiro zootécnico que se apaixonou pelo meio teatral, ou ainda o guionista e encenador Mário Rainho. Estes "poetas do fado", para usar a expressão consagrada num dos prémios atribuídos pela Fundação Amália Rodrigues, são tão célebres no mundo fadista como desconhecidos no meio literário. Embora alguns deles tenham livros publicados, raramente são bons poetas, ainda que os seus poemas possam funcionar lindamente na voz de quem os canta. Há uma notória excepção: a actriz, diseuse e letrista Manuela de Freitas, autora de grandes poemas-canções, interpretadas por Camané, José Mário Branco e outros cantores. A título de exemplo, leia-se esta primeira quadra do seu Fado Penélope: "Sagrado é este fado que te canto/ do fundo da minh"alma tecedeira/ da noite do meu tempo me levanto/ e nasço feito dia à tua beira".

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