O velho "faraó" foi a tribunal, para espanto dos egípcios e aviso aos ditadores

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Multidão reage nas ruas à transmissão televisiva do julgamento: "Nem em sonhos imaginei isto" MARWAN NAAMANI/AFP

Visto como intocável durante décadas, Mubarak começou ontem a ser julgado. A televisão mostrou-o ao povo, numa maca e atrás das grades

Não havia algemas nas mãos do faraó deposto, que chegou de helicóptero ao tribunal. Mas ver Hosni Mubarak deitado numa maca, atrás das grades, para responder pela morte de opositores foi já razão de espanto para milhões de egípcios, ensinados a ver o ex-Presidente como símbolo do poder intocável. Apesar da idade, da doença, dos militares que ainda estão no poder e das muitas dúvidas que assaltam a transição política, o velho raïs começou ontem a ser julgado - um processo que é um teste à revolução egípcia e um aviso aos autocratas da região.

O Cairo quase parou. Por todo o Egipto, os cafés encheram-se de gente que assistia à transmissão em directo do momento histórico. "Esta é a mesma televisão que costumava dar a entender que o mundo girava à volta de Mubarak e agora está a mostrá-lo ali, numa jaula", surpreendia-se Mohammed Farouk, um farmacêutico do Cairo, de olhos postos no ecrã, citado pelo Los Angeles Times.

"Nem em sonhos imaginei isto", admitia à Reuters Ahmed Farghali, um activista de Sharm el-Sheik, momentos antes de o ex-Presidente, de 83 anos, sair do hospital onde estava internado. Mubarak foi levado de ambulância até ao aeroporto, de avião até ao Cairo e de helicóptero até à academia de polícia onde vão decorrer as sessões e que, por ironia, ostentou o seu nome até à revolução. No exterior, o forte aparato de segurança não impediu confrontos entre manifestantes e um grupo que ali foi jurar fidelidade ao raïs.

Quando Mubarak chegou finalmente a tribunal, "ouviu-se primeiro um silêncio na sala lotada e, a seguir, todos sustiveram a respiração", descreveu o jornalista da BBC John Simpson.

Depois de todas as dúvidas - até ao último momento, a defesa insistiu que Mubarak estava demasiado doente -, a junta militar cumpriu a promessa que fizera de levar a tribunal o ex-Presidente. Ao lado da sua maca estavam os filhos, Alaa e Gamal, como ele acusados de corrupção e enriquecimento ilícito. A alguns metros, dentro da mesma jaula de ferro, sentava-se o ex-ministro do Interior, Habib El-Adly, e seis comandantes da polícia, como ele acusados pela morte de 846 manifestantes nos primeiros dias de protestos - crime que lhes pode valer a morte.

"Nego completamente todas essas acusações", disse Mubarak, numa voz rouca mas firme, segurando o microfone que lhe estendiam. Minutos antes, o procurador acusara-o de ter ordenado, ou pelo menos ter dado aval, ao uso de munições reais contra os manifestantes pacíficos que desde 25 de Janeiro enchiam a praça Tahrir "com a intenção de matar".

Diferente de Saddam

"Alegrai-vos mães dos mártires", escreveu uma activista no Twitter, uma das "armas" usadas pelos revolucionários egípcios e que se encheu de mensagens, mal a audiência começou. "Este é o primeiro autocrata a ser julgado no seu país. Que venham os outros", acrescentou Shahira Amin, apresentadora de televisão que se demitiu no auge da contestação, citada pelo jornal egípcio Al-Masri Al-Youm.

Mubarak não é o primeiro ditador da região a responder pelos seus crimes, nem é sequer o único destronado pela Primavera árabe a ser julgado. Mas ao contrário de Saddam Hussein foi derrubado pelo próprio povo e, ao invés do tunisino Ben Ali, está a responder perante a justiça do seu país. "Este é um momento decisivo na história do povo egípcio, que durante décadas viu Mubarak retratado como uma figura divina", disse ao Washington Post o juiz e conhecido opositor Mahmoud al-Khodairy.

Eram palavras de satisfação (e também de sede de vingança) que se ouviam ontem nas ruas do Egipto, mas para muitos activistas o julgamento é sobretudo simbólico e, também por isso, insuficiente. "A maioria dos oficiais envolvidos na morte de manifestantes ainda não foi acusada e muitos estão ainda a trabalhar", lembrou à televisão Al-Jazira a egípcia Mona Seif.

Outros lamentam que o ex-Presidente vá a tribunal responder pelo que fez nos últimos dias de poder e não pelos abusos cometidos em 30 de regime - um processo que seria não só mais longo, como também mais arriscado para a junta militar e aqueles que se mantêm no poder. "Esta é uma investigação muito limitada a um antigo chefe de Estado", criticou a representante da organização Human Rights Watch no Cairo, avisando que a pressa em condenar Mubarak pode manchar o legado da revolução. "O conteúdo e a duração do processo são um sinal d que está para vir no Egipto", escreveu Thanassis Cambalis na revista Atlantic, lembrando que também o Iraque quis mostrar que era capaz de julgar Saddam com justiça, mas foi a vingança que acabou por imperar.

E o simbolismo do julgamento não se esgota no Egipto: ver atrás das grades aquele que foi durante décadas um dos grandes líderes da região é uma imagem poderosa em todo mundo árabe, onde corre a mesma indignação que varreu o Egipto e a Tunísia.

"Queridos ditadores árabes, olhem bem para Mubarak. Ele era tão poderoso quanto vocês. O vosso tempo está a esgotar-se", escreveu no Facebook um activista do Bahrein, um dos países onde a repressão foi mais dura. Na maioria das capitais, imperou o silêncio, rompido apenas por um conselheiro do rei saudita, de quem Mubarak era um aliado-chave. "Esta gente idiota está a destruir o que ainda restava do Estado egípcio", disse à Reuters. "Este é um espectáculo humilhante para todos." Mubarak regressa a tribunal dia 15. Até lá, ficará internado num hospital do Cairo.

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