Discos

Jazz

Um jazzista para Gershwin

A música de Gershwin com a espontaneidade e o rigor que raramente se encontra. Rui Pereira

George Gershwin

Música para piano e orquestra

Stefano Bollani, piano

Orquestra da Gewandhaus

Riccardo Chailly, direcção

DECCA 4782739

mmmmm

Quando, na década de 1920, George Gershwin começou a apresentar as suas obras para piano e orquestra no meio exclusivo e sofisticado da música erudita nova-iorquina causou grande celeuma. A sua música era considerada um misto de clássica e de jazz, música para big bands. Por um lado tinha grande popularidade junto do público, por outro era um alvo fácil para os mais críticos que apontavam a pouca coerência formal como uma fraqueza pouco digna. Gershwin nunca terá ultrapassado um certo complexo de não ser um compositor sério mas a sua música entrou no repertório de todas as grandes orquestras sinfónicas do mundo. Curiosamente, do ponto de vista interpretativo, o dilema continua. A "Rapsódia in Blue" e o "Concerto em Fá" têm que ser tocados com o rigor só conseguido pelas melhores orquestras, mas com o "swing" que normalmente atribuímos a músicos de jazz. Por essas razões é raríssimo aparecer uma versão destas obras que agrade verdadeiramente às duas facções ou até mesmo àquela que apenas encontra um equilíbrio entre as duas.

A junção do pianista de jazz Stefano Bollani à Orquestra da Gewandhaus, sob a direcção do enérgico Riccardo Chailly, é a mais recente proposta e resultou da melhor forma, oferecendo uma versão onde não falta o dito "swing" mas onde o rigor interpretativo está igualmente presente. Tudo se consegue nas acentuações e numa fluência que não compromete a continuidade do tempo. A "Rapsódia in Blue" tem algumas das melhores passagens que já ouvi, sobretudo na dinâmica e extraordinária fluência rítmica que o maestro Riccardo Chailly imprime à orquestra e que Stefano Bollani segue com entusiasmo. O pianista italiano toma a liberdade de improvisar algumas passagens, à imagem do que o próprio Gershwin costumava fazer, acentuando o lado jazzístico. Senhor de uma técnica muito sólida, de uma sonoridade grande, enquadra-se no som da orquestra e oferece uma interpretação com sal e pimenta q.b.

Completam este disco empolgante a suite "WCatfish Row", sobre temas da ópera "Porgy and Bess", e "Rialto Ripples", um ragtime onde Bollani improvisa uma vez mais, mantendo o carácter típico de uma peça surpreendente que podia ter sido escrita por Scott Joplin.

Clássica

Bach imparável

A grande gravação dos concertos para tecla de Bach em instrumentos modernos pela primeira vez disponível numa compilação. Rui PereiraJohann Sebastian Bach

Concertos para tecla

Murray Perahia, piano e direcção

Academy of Saint Martin in the Fields

3CD Sony Classical

mmmmm

Este CD triplo resulta de uma compilação da Sony de gravações aclamadas, realizadas entre 2000 e 2003, e que só agora estão disponíveis pela primeira vez numa edição conjunta. Os sete concertos para tecla de Bach tocados em instrumentos modernos pela orquestra londrina da Academy of Saint Martin in the Fields sob a direcção do maestro e também pianista Murray Perahia. O último volume também inclui o Concerto Italiano (piano solo) e um dos concertos brandeburgueses.

Se persistissem dúvidas sobre a genialidade de Murray Perahia enquanto intérprete e executante, o 3º andamento do Concerto nº 1 em Ré menor para teclas e orquestra, o mais longo e difícil de tocar entre as composições similares de Bach, basta para comprovar que estamos perante um dos maiores músicos do nosso tempo. Mas o mesmo podemos dizer sobre o início do Concerto nº 2 em Mi maior, prodigioso exemplo do embelezamento ornamental do Barroco que Perahia executa cristalinamente, ou do equilíbrio entre a parte orquestral e a presença discreta do solista que sustenta frases eternas no Siciliano que se segue.

Há na forma de tocar e dirigir de Perahia uma certa ansiedade, um sentido de continuidade rítmica que nos leva para o abismo de uma forma imparável e que devido à genialidade de Bach proporciona um encontro com sentimentos que nos deixam num puro estado de graça. Acresce uma excelente qualidade de gravação que resulta numa sonoridade de primeiríssima apanha.

Pop

A terra estremece

É difícil encontrar um fado mais verdadeiro do que este. Gonçalo FrotaAldina Duarte

Contos de Fados

Roda Lá; distri. Arthouse

mmmmnUma das primeiras lições que qualquer jovem fadista aprende a debitar é a da importância dos poemas para que o fado seja fado, para que o fado "aconteça". Mas há duas verdades que escapam a todos os intérpretes surgidos na era pós-Camané e pós-Mísia: 1) a de que os poetas a ser cantados não têm de ser necessariamente os clássicos (Pessoa, Camões, Mourão-Ferreira, Homem de Mello) e, não o sendo, não têm de limitar-se a meia dúzia de versos de parco talento sobre amores desencontrados; 2) a de que uma interpretação marcante não depende quase por imposição legal de uma descarga desabrida que comodamente se classifica como "catarse".

Serve isto para vincar o percurso de Aldina Duarte. É difícil encontrar um fado mais verdadeiro do que este. É um fado nu, exposto, de luzes baixas, embriagado por poesia maior em que as palavras se encadeiam com sentido e sentir, não precisando sequer de contornar os clichés porque nem sequer os encontra pelo caminho. Há no canto de Aldina Duarte uma qualidade primária notável, radical (da raiz), que só encontramos noutra mulher do fado actual - Carminho. Mas enquanto Carminho é explosão, Aldina é sobriedade e contenção, uma elegância fina e enxuta.

Para "Contos de Fados", disco conceptual como Aldina gosta, a fadista pediu a Manuela de Freitas, Maria do Rosário Pedreira, José Mário Branco e a si própria que se inspirassem em obras literárias de toda a espécie para escrevinharem novos poemas, depois assentes em fados tradicionais. A única excepção foi entregue a José Luís Gordo, que deixou nas mãos de Aldina um poema baseado numa história real e não em Hermann Hesse, Dostoiévski, Tennessee Williams, Eugene O"Neill, Ricardo Reis, nos irmãos Grimm ou na mitologia grega. Inteligentemente, a literatura é convocada para o reduto do fado tradicional, mas não deixa de falar sobre Aldina. O mito de Orfeu e Eurídice serve para lhe ouvir "Diz quem já me ouvir cantar / que, quando soa o meu canto, / A terra inteira estremece", a evocação de um poema de Ricardo Reis afirma que "Se a rima for bem escolhida / Já não são contos, são fados / Já não são fados, são vida". E aqui se diz tudo.

Era só isto?

Lady Gaga

Born This Way

Interscope; distri. Universal

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Por esta altura, esperava-se que o ego de obesidade mórdiba de Lady Gaga fizesse dela um Joe Frazier ou um George Foreman, desafiando Muhammad Ali (para que não nos percamos, é de Madonna que realmente falamos) para subir a um ringue na Nigéria ou no Zaire (hoje República Democrática do Congo) e disputar-lhe o título de pesos-pesados. O estatuto de rainha da pop estaria, acreditávamos, a saque. Mas o máximo que aconteceu foi uma encenação no programa de humor (?) "Saturday Night Live" de uma briga entre as duas. Na verdade, até agora Lady Gaga não tinha mais do que um disco pobre revendido em duas embalagens diferentes de uma pop plástica, estafada e reciclada. Depois, foi só gerir a sua presença nos media através de pequenas escandaleiras a conta-gotas que a transformassem mais num ícone pop do que propriamente numa cantora pop.

"Born This Way" é enigmático. Substitua-se a maquinaria electrónica por guitarras e aquilo com que ficamos é isto: hard rock, entalado entre o final dos anos 80 e o princípio dos anos 90, disfarçado de modernidade pop. Durante a primeira audição ao segundo álbum de Lady Gaga instala-se uma sensação de ilusão auditiva, como se ainda valesse a pena combater a ideia de que "Born This Way" - da sua capa à Judas Priest a cada uma das suas canções mastigadas previamente por gente que fazia dos videoclips em que surgiam de blusão de cabedal aninhados em torno de varões de strip tease uma forma de arte autónoma - chega com 20 anos de atraso. Até os saxofones à Kenny G. e as power-ballads que eram a imagem de marca de Lita Ford por aqui se exibem galhardamente (a presença de Brian May sente-se não apenas no tema em que efectivamente participa). De resto, sobra apenas uma pífia e encolhida pop-carrinhos-de-choque, sem pingo de imaginação. A conclusão a que se chega é que Lady Gaga se concentrou de tal forma em tudo quanto era o fogo-de-artifício à sua volta que se esqueceu que convinha ter um punhado de boas canções para sustentar um regresso aos álbuns. Em rigor, não há em "Born This Way" uma única canção que possa almejar competir com Madonna. Tudo isto é pobre, fácil, pálido, irrelevante. Novo alvo: ombrear com Avril Lavigne.

O tempo esclarecer-nos-á se aquilo a que assistimos em "Born This Way" é a morte artística de Lady Gaga (ela vai andar por aí, claro, mas isso também os zombies) ou se conseguirá escapar à armadilha que montou para si mesma: a de que é mais interessante enquanto objecto de estudo da sociologia da cultura pop do que como alimento para colunas e auscultadores. G. F.

About Group

Start & Complete

Domino, distri. Edel

mmmnn

Alexis Taylor tem uma voz cristalina, delicada e melancólica, que lembra o John Lennon de "Jealous Guy". Canta pop electrónica nos Hot Chip, mas gosta de jazz e de improviso, o que o levou até ao multi-instrumentista John Coxon (Spiritualized, Spring Heel Jack) e a dois alternativo veteranos, o baterista Charles Hayward (This Heat) e o teclista Pat Thomas (Eugene Chadbourne). Estrearam-se num disco instantâneo, em edição de autor, antes de se lançarem ao vivo nos circuitos arty londrino e neste álbum que reflecte dois anos de partilha sónica. O single "You"re no good", que retoma um tema obscuro de Harvey Averne/ Terry Riley, funciona como manifesto: começa em balada romântica mas acaba por se resolver numa desbunda febril. O resto, porém, é menos radical, um punhado de canções bonitas ao piano, depois arranjadas e desenvolvidas com classe e imaginação, mas nunca ou quase descolando do formato da canção. Qualquer coisa, portanto, como mistura de pop pastoral com pós-rock, ocasionalmente brilhante, quase sempre interessante e uma vez pelo menos viciante: "Married to the sea", tema de abertura e fecha, mal se ouve nunca mais se pára de trautear. Luís Maio

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