As múltiplas biografias do corpo

Festival Materiais Diversos

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De Eszter Salamon e Rancho Folclórico do Covão do CoelhoMagiar Táncok (2005)Minde, CAORG, 20 de Novembro, 21hLotação esgotada

L"Après Midi, Um solo para Emmanuel Eggermont (2008)

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De Raimung Hoghe?Torres Novas, Teatro Virgínia, 21 de Novembro, 21h30Sala cheia

Em Minde, a blackbox improvisada no Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro abarrotava. Literalmente. No primeiro fim-de-semana do Festival, um público heterogéneo, maioritariamente local, assistia a Magyar Táncok (dança húngara), de Eszter Salamon, coreógrafa magiar radicada em Berlim, e ao Rancho Folclórico Covão do Coelho.

Filmes de recolhas etnocoreográficas, trechos de dança e música tradicionais apoiaram Salamon numa conferência dançada onde desenvolveu uma reflexão sobre o folclore húngaro, a partir da sua biografia profissional (da formação em ballet e folclore, no tempo da Hungria comunista, à descoberta da dança contemporânea) e da História da Dança. Em questão, as repercussões dos estereótipos sociais e de género, e os limites e possibilidades do intérprete na expansão criativa do vocabulário das danças tradicionais.

Com o seu repertório ribatejano, e respectivo enquadramento etnográfico, o Rancho do Covão do Coelho afirmava o seu esforço de resistência à aculturação e o compromisso com a mais pura tradição popular.

A apresentação conjunta dos grupos materializaria as polémicas sobre a preservação/transformação da cultura expressiva hoje.

A par dos aspectos comuns (o folclore como prática acessível a todos, promotora de redes intergeracionais e de sociabilidade) evidenciavam-se também contrastes. O Estado Novo deixou cicatrizes e anticorpos face ao património das tradições. E, apesar de o popular não se enquadrar na auto-imagem moderna e europeia do Portugal do pós-25 de Abril, o crescimento exponencial dos ranchos nesse período (forma de suprir o hiato identitário aberto pela rápida transição fascismo-democracia-Europa?) é um fenómeno não-oficial pouco conhecido. O facto é que, excepções à parte, a arte e a dança contemporâneas pouco se têm debruçado sobre a cultura expressiva nacional.

Na noite seguinte, em L"Après Midi, Raimund Hoghe criou, para um intérprete soberbo, dois copos, uma cena vazia, uma obra maior inspirada num dos mitos propulsores do modernismo na dança. Hoghe e Eggermont foram ao âmago e desconstruíram o solo homónimo de Nijinsky (um ensaio sobre o erotismo, que escandalizou a Paris de 1912) para erigir, num universo próprio, austero e meditativo, uma peça intensamente poética, assente em procedimentos de contenção e subtracção.

L"Après Midi era um solo apenas na aparência. Hoghe e Eggermont urdiam entre si um elo tenso e secreto, fossem eles figurações espectrais das respectivas efabulações eróticas. E havia ainda uma beleza trágica, no discreto enlevo de um corpo acanhado e disforme perante a perfeição esfíngica de efebo do outro corpo. Poderíamos aqui ler uma catarse pessoal. Mas, o que encontramos é uma subversão silenciosa dos cânones estéticos, uma ode universal aos enigmas da atracção sexual, uma delicadíssima alegoria ao que de transcendente pode existir na experiência do amor físico.

Abrir espaço de reflexão, suscitar questões. Eis, em síntese, a principal impressão da abertura do festival. Como podem os corpos em cena reverberar História, cultura e biografia? Ou problematizar as múltiplas relações entre memória e contemporaneidade, cultura erudita e cultura popular? O que significa, nos dias de hoje, falar em "identidade"?

Materiais Diversos, mais do que programar, tem um programa. É um projecto que se quer "internacional, nacional e local", revê os conceitos de centro e periferia, e defende uma ideia sobre o papel da cultura na intervenção e participação cívicas, no desenvolvimento da consciência social.

Luísa Roubaud

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