Subitamente, no banheiro das senhoras

Se Lorca tirou os seus diálogos das conversas que ouvia às criadas na cozinha da casa da família em Granada, já Nelson Rodrigues parece ter apontado a prosápia carioca em botequins escusos. Antunes Filho, o mais reputado encenador de São Paulo, vai mais longe, na cenografia de A Falecida Vapt-Vupt. O espaço é um bar onde param os clientes do costume, indiferentes ao desenrolar das cenas entre marido e mulher, família, amante e agentes funerários. No meio, tirando apontamentos durante toda a função, está a figura do autor. A parede do fundo é um imenso painel cheio de inscrições típicas de WC público, sugerindo que o anjo pornográfico, como lhe chamaram, escrevia directamente da secreta. Faz todo o sentido, uma vez que o facto que dá origem à crise entre Zulmira e Tuninho é um coito inesperado (com a duração de cinco minutos, calcula um dos intervenientes), subitamente ocorrido no banheiro das senhoras de uma sorveteria do centro do Rio de Janeiro; e que essa revelação é feita, no terceiro acto, num diálogo entrecortado com uma "cena evocativa", cuja forma dá a pista para a encenação desta peça como uma vertigem de quadros sobrepostos num mesmo lugar (a imaginação de Nelson Rodrigues). De facto, A Falecida, como tantas outras obras, é um retrato do combate dos baixos instintos com a moral elevada. No texto, ainda mais que no espectáculo, as personagens tossem, espremem cravos, palitam os dentes, põem o dedo no nariz, obram, têm relações sexuais. Os instintos predominam sobre a racionalidade humana, à maneira do neo-romantismo pessimista de Büchner, Wedekind e do primeiro Brecht. É o próprio Baal que diz, na peça que se pôde ver antes no TNSJ, que "o bom Deus, através da ligação do canal urinário e do membro sexual, deu bastante sinal de si, de uma vez para sempre". As personagens parecem acreditar em gestos desmedidos para se redimirem: Zulmira num funeral de luxo que a dignifique aos olhos da prima que a viu com o amante; Tuninho na prodigalidade com que distribui, no final, os 40 mil cruzeiros que extorquiu do mesmo amante, recuperando o orgulho. É nisto que, apesar do seu carácter pessimista, e de denunciarem a hipocrisia e fragilidade das convenções sociais, Rodrigues e Antunes se revelam mais moralistas. A traidora é punida duas vezes, primeiro pela vergonha, depois com um funeral de cão; o traído vinga-se, recuperando a honra, e ainda santifica a devoção ao Vasco da Gama (o clube de futebol).
Os motivos ocultos de cada personagem, e o egoísmo infantil delas, são reveladas pelo desenho claro e vincado das interpretações, por um lado, e pelos tempos farsescos do movimento, por outro, muito bem orquestrados. A encenação é um exemplo de concepção rigorosa e rica, e o dramalhão é-nos apresentado como um jogo. O público adora. Em paralelo, esta companhia apresentou três diálogos curtos, fruto da pesquisa apenas dos actores, que batiam muito certo com os temas rodriguianos, ao revelarem os costumes e as fantasias sexuais de pessoas comuns, e que valeram sobretudo pelo detalhe da composição das personagens e pela atenção à riqueza contida nas frases mais banais do português de São Paulo. Para além do mais, há que destacar como estes dois espectáculos permitiram viajar pelas tais águas da língua portuguesa, entre as expressões e palavras anotadas por Nelson Rodrigues (e que hoje nem a maioria dos brasileiros reconhece) e a prosódia paulistana que não passa na telinha.

Jorge Louraço Figueira

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