Famílias e doença mental

A s famílias dos doentes psiquiátricos têm pouca força no nosso país. Ao contrário de outras afecções, em que os representantes dos pacientes são interlocutores do Governo e fazem ouvir a sua voz em muitas circunstâncias - como é o caso dos diabéticos e dos insuficientes renais, por exemplo -, na doença mental o silêncio predomina. Quem se interessa sobre o que pensam as famílias dos esquizofrénicos ou dos depressivos graves?E, no entanto, a sobrecarga familiar é significativa. As doenças mentais são muito frequentes, calcula-se que atingem cerca de 20 por cento da população e não é fácil lidar com o problema. Existe uma sobrecarga visível, que se traduz pelo absentismo, pelas rupturas familiares e pelo sofrimento que resulta do convívio quotidiano com uma pessoa com uma doença mental grave. Mas que dizer da sobrecarga invisível que afecta a vida daqueles que cuidam? Por exemplo, quando vemos um doente com esquizofrenia grave aparecer "com bom aspecto", saberemos o esforço que os familiares tiveram de fazer para que ele se levante, cuide da sua higiene, tome o pequeno-almoço e utilize um transporte para chegar até nós? E estaremos conscientes dos complexos de sentimentos de culpa, vergonha e hostilidade que lhes inundam a consciência, motivados pelas dificuldades de convívio com os doentes e pelo estigma social que a doença mental continua a provocar? Já pensaram na angústia que sente uma mãe de um doente psiquiátrico grave perante o seu próprio envelhecimento, porque sabe que depois da sua morte ninguém cuidará do filho do mesmo modo?
Por isso é urgente mudar. Começar por lutar diariamente contra a discriminação de que são alvo os doentes mentais, considerados muitas vezes preguiçosos ou desinteressados em melhorar. Para aqueles que conhecem o problema, é urgente que saiam dos seus gabinetes de consulta ou do silêncio das suas actividades e comecem por informar: as doenças mentais têm tratamento e a evolução da Psiquiatria nos últimos 30 anos deve deixar-nos cheios de esperança! Depois, precisamos de ouvir essas famílias e estimular o seu convívio com outros agregados familiares com problemas semelhantes: o isolamento sempre piora a situação e, sobretudo, a troca de testemunhos leva à descoberta de soluções, porque todas as famílias têm competências que a interacção vai fazer descobrir.
A seguir temos de lutar, junto de quem de direito, para que haja mais intervenções destinadas a estas famílias. Num primeiro nível, importa compreender que a informação, a referenciação para o local apropriado ou a educação sobre os aspectos principais da doença não é difícil de fazer e pode estar ao alcance de um técnico dos cuidados de saúde primários, não exigindo a intervenção da Saúde Mental. O que interessa é garantir à família o conhecimento mínimo sobre o problema e facilitar o acesso a um serviço especializado, se for o caso (em muitos casos, as pessoas não sabem onde se dirigir).
Num nível mais diferenciado, é importante garantir para estas famílias a possibilidade de recuperação da sua capacidade de resolução de problemas, bem como a oportunidade para serem escutadas de forma activa, mobilizando-as para novas competências de reorganização das suas vidas: este objectivo requer a intervenção de um técnico de saúde com algum treino de trabalho com as famílias.
O último nível é o da terapia familiar, a ser utilizado em determinadas situações, mas a que é fundamental recorrer quando necessário.
Acima de tudo, é preciso dar voz a estas famílias, em vez de as ignorar, como infelizmente tantas vezes acontece nos nossos serviços de saúde. a

Psiquiatra d.sampaio@netcabo.pt

P.S. - A minha crónica sobre a homofobia de alguns psiquiatras portugueses teve muitos ecos. Ainda bem que há uma consciência crítica face a posições tão retrógradas, em médicos com responsabilidades.

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