Ser mãe aos 70 é uma vitória mas pode ser falta de bom senso

Uma indiana de 70 anos teve gémeos, depois de uma fertilização in vitro. Seria possível isso acontecer em Portugal? Dificilmente, respondem os especialistas. E aproveitam para lembrar que está na hora de alargar a aplicação das técnicas de procriação medicamente assistida

Roménia

Em Janeiro de 2005, a romena Adriana Iliescu (na foto), de 66 anos, deu à luz uma menina, depois de nove anos de tratamentos consecutivos. Também tinha engravidado de gémeos mas um dos bebés morreu ainda no ventre. Na reacção às críticas de que foi alvo, a antiga professora universitária e autora de livros para a infância lembrou a tradição de longevidade na sua família e considerou que a maternidade era a sua missão na vida. A bebé, Eliza Maria, nasceu com um quilo e 400 gramas mas desenvolveu-se normalmente. Espanha
Em Dezembro de 2006, uma espanhola de 67 anos teve gémeos num hospital de Barcelona, depois de se ter submetido a um tratamento de fertilidade num país da América Latina. Nascidas com recurso a cesariana, as crianças ficaram numa incubadora durante alguns dias. Resistiram ambas.
a O rastilho da discussão acendeu-se, em 2005, quando uma romena de 66 anos foi mãe. E alastrou, no ano seguinte, quando uma espanhola de 67 anos deu à luz uma criança, depois de se ter submetido a um tratamento na América Latina. O recorde voltou agora a ser quebrado.
Na Índia, uma mulher de 70 anos teve gémeos na sequência de uma fertilização in vitro. O marido já tem 77 anos e a história surgiu nos jornais do último fim-de-semana embrulhada nalgum folclore étnico, porque o casal já tinha duas filhas e cinco netos e hipotecou os bens para satisfazer o desejo de ter um filho varão, ou seja, alguém capaz de garantir um dote e administrar o negócio familiar.
Em Portugal, a legislação que regula a procriação medicamente assistida (PMA) não impõe limites de idade, mas os especialistas ouvidos pelo P2 condenam com veemência os médicos que aceitaram fazer o tratamento à indiana Omkari Panwar. Defendem uma alteração à lei portuguesa, sim, mas noutro sentido.
Por partes. No caso indiano, o que o especialista em medicina reprodutiva Mário Sousa condena são as motivações do casal, mais do que a idade avançada. "Não aceitaria fazê-lo [o tratamento], porque o que os movia era unicamente o desejo de ter um rapaz. Estava fora de questão", rejeita o também director do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), no Porto.
Mário Sousa considera, porém, que a idade por si só não deve funcionar como critério. "Já tive mulheres de 70 anos a que não dava mais de 40, assim, só de olhar para o rosto. E nessa idade muitas pessoas estão magníficas, porque tiveram sorte nos genes ou na vida. Vou responder-lhes que são demasiado velhas só porque têm aquela idade no bilhete de identidade?"
Claro que, na prática, quanto mais velha for a mulher mais entraves se levantam. "Na maior parte das vezes, o exame ginecológico encarrega-se de demonstrar que o útero já não tem condições para levar uma gravidez até ao fim", lembra Mário Sousa.
Idade aumenta obstáculos
São de resto inúmeras as etapas que uma mulher tem de cumprir para recorrer a uma técnica de PMA. Os obstáculos aumentam com a idade. "O primeiro passo é fazer um exame ginecológico para perceber se a mulher está em condições de levar uma gravidez até ao fim. Depois, faz-se uma análise da história médica para perceber quais os riscos de contrair uma doença que a faça morrer mais cedo. Imagine que tem hipertensão ou diabetes, ou que na família há um caso hereditário de algum tipo de doença que se costume instalar nas idades mais avançadas, como Alzheimer ou cancro", exemplifica o director do ICBAS.
Se os candidatos passarem nesta avaliação, o passo seguinte é perceber, por exemplo, se há suporte familiar capaz de amparar a criança em caso de morte dos pais. "Se houver um bom círculo de familiares, não vejo por que não. No ano passado, tive um casal de 63 anos que nunca tinha conseguido ter bebés porque nunca tinha ido aos sítios certos pedir ajuda. Não passaram nos testes, mas, se tivessem passado, não me faria espécie ajudá-los a ter um filho. Numa altura em que a esperança de vida para as mulheres já chegou aos 84 anos... Agora, no caso indiano, se era só para ter um filho rapaz, diria ao casal onde poderia fazer isso, mas eu recusava-me."
O especialista em genética médica Alberto Barros também diria que não ao casal indiano. "Lamento esta falta de rigor e até de bom senso elementar na aplicação destas técnicas", condena aquele que foi um dos precursores da PMA em Portugal, antecipando que o recorde de idade da mãe possa ser novamente batido (ainda falta, aliás, a certidão a comprovar a idade da mãe indiana), "porque infelizmente há médicos que actuam desta forma leviana".
Jorge Branco, coordenador do Programa Nacional de Saúde Reprodutiva e director da Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, reage do mesmo modo. "É um acto de inconsciência e de um egoísmo inqualificável", diz, para reforçar a indignação perante o caso indiano: "As crianças têm a idade dos bisnetos do casal! E saltar gerações traz problemas gravíssimos, do ponto de vista do desenvolvimento humano. Nunca colaboraria numa coisa destas."
Fundador do Centro de Genética da Reprodução, Alberto Barros aponta os 45 anos como limite para aplicar uma técnica que implique os ovócitos da mulher. "A partir daí, a qualidade dos ovócitos é mais baixa, o que se reflecte em menor taxa de sucesso. Sendo o meu um centro privado, não me sentiria tranquilo a criar expectativas na aplicação de técnicas dispendiosas quando a taxa de sucesso não é superior a 10 por cento."
Quando houver doação de ovócitos, admite que esse limite seja alargado até aos 50 anos. "A lei portuguesa não impõe limites etários, mas pressupõe-se que estes são a idade para procriar. A partir dos 50 anos, não se justifica estar a investir, até porque a maior parte das experiências estão condenadas ao fracasso".
Barros sustenta a sua posição na lei n.º 32/2006, que regula a PMA, e cujo artigo 4.º define que "as técnicas de PMA são um método subsidiário, e não alternativo, de procriação", cuja utilização "só pode verificar-se mediante diagnóstico de infertilidade". Então, deduz, "uma mulher que tenha entrado na menopausa não pode ser considerada infértil, porque a infertilidade em si mesma significa patologia".
Por outras palavras: "Uma mulher em situação de insuficiência ovárica aos 20 anos sofre de patologia; aos 50, é uma situação que se pode considerar fisiológica". Admite, no entanto, que a lei abre a porta a interpretações divergentes. Como a de Mário Sousa, para quem "infertilidade é uma incapacidade de concepção ou de levar a gravidez até ao fim". Ora "se uma mulher aos 50 anos não consegue conceber, pode ser qualificada como infértil, logo ser beneficiária do tratamento".
Mulheres vão a Espanha
Apesar da ausência de referências ao máximo de idade para PMA (exige-se apenas ter pelo menos 18 anos), a lei impõe vários limites. Por exemplo, as técnicas só podem ser aplicadas a "pessoas casadas que não se encontrem separadas judicialmente de pessoas e bens ou separadas de facto" ou às que, "sendo de sexo diferente, vivam em condições análogas às dos cônjuges há pelo menos dois anos". De fora ficam casais homossexuais e mulheres sós. Solução? "Mandá-los para o estrangeiro", responde Mário Sousa.
"Nos EUA", acrescenta, "tudo é possível, desde que se recorra ao sector privado, mas claro que aí um tratamento com doação de útero ronda os 60 mil euros".
No caso das portuguesas que querem ter um bebé sem parceiro, basta ir a Espanha. "Faço inseminação com dador em Espanha, elas vivem cá a gravidez e depois mando-as de novo a Espanha para ter o bebé, que fica com naturalidade espanhola, porque cá é proibido ser filho de pai incógnito", assume o director do ICBAS. Não vê qualquer problema nestas "fintas" à lei portuguesa. "Há raparigas que não querem passar por uma relação ou que nunca tiveram parceiro e que querem e devem poder ter filhos."
O mesmo se aplica às mulheres que nascem sem útero ou que ficam sem ele na sequência de uma doença. "Não devem poder recorrer a um útero para terem o seu bebé?", questiona Mário de Sousa, defendendo uma abertura legislativa nesse sentido.
Alberto Barros, que foi um dos redactores da lei que regula a PMA, recorda que os condicionalismos faziam sentido. Na altura. "A lei estava a ser discutida há mais de 20 anos e era importante que saísse para resolver as situações de infertilidade, mesmo com essas limitações que na altura pareceram um compromisso sensato e prudente, dada a divisão que reinava." Passados dois anos, "é preciso começar a pensar em alargar as possibilidades a outros grupos e a situações que não são de infertilidade".
O recurso ao útero de substituição, proibido em toda a Europa, deve, na opinião deste especialista, "poder ser equacionado em casos como o da mãe que disponibiliza o seu útero para que o embrião da filha possa ser gerado". Há aqui, diz, "um acto de amor e generosidade que pode ser enquadrado no âmbito médico das técnicas." Já quanto às mulheres sós, Alberto Barros discorda. Mas entende quem tem uma perspectiva diferente. "Nunca aceitei aplicar as técnicas de PMA a uma mulher só, porque não vejo aí uma indicação ética, mas tenho dúvidas se a sociedade deve proibi-lo."
Esta questão também não levanta grandes dúvidas a Jorge Branco. "Estou aberto à possibilidade de aplicação das técnicas às pessoas solteiras, não vejo nenhum contra e até acho que se caminhará para isso um dia". Mário Sousa também. E confia que, quando Portugal aceitar os casamentos de homossexuais, estes possam igualmente recorrer à PMA. Tudo em nome do direito a ter um bebé.

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