Annemarie Schwarzenbach A viajante sem fim

Faria hoje 100 anos, e por isso há uma "leitura planetária" da sua obra, incluindo Lisboa. A suíça Annemarie Schwarzenbach é uma grande personagem trágica. Transformou a sua vida numa fuga para a frente, entre Europa, América, Ásia e África, devorada pela impossibilidade do amor, pela morfina e pela escrita. Por Alexandra Lucas Coelho

a Escavou tesouros na Pérsia. Venceu o rio Congo e os picos do Hindu Kush. Viu a ortodoxia soviética e a América da Grande Depressão. Opôs-se à ascensão de Hitler, contra a sua própria família. Casou em Teerão com um dos homens de quem foi só amiga. Entregou-se dramaticamente ao amor das mulheres, ao vício da morfina e à escrita. Escreveu sobre tudo isto e ponderava viver em Portugal quando morreu de repente, de uma queda de bicicleta, na Suíça, durante a II Guerra Mundial. Annemarie Schwarzenbach tinha apenas 34 anos. Hoje, teria 100 e o mais provável é que os leitores portugueses não conheçam a obra desta viajante, jornalista, romancista, poeta e fotógrafa suíça de língua alemã.
Em Portugal, apenas está publicada uma ficção, Novela Lírica (Civilização). Em inglês não há livros disponíveis. E se estão traduzidos em francês é porque a sua principal biógrafa é francófona e se empenhou em publicá-los um a um.
Mas Schwarzenbach tem tudo para fascinar quem se aproxime. Com o seu rosto entre Donatello e David Bowie, é uma grande personagem trágica. Viveu tanto quanto pôde, em ânsia e agonia, sempre a sentir que falhava a vida. A poeta Catherine Pozzi viu nela "o mal da Europa". A romancista americana Carson McCullers quis trocar tudo pelo seu amor. Thomas Mann chamou-lhe "anjo devastado".
E, neste dia do centenário, existem suficientes admiradores espalhados pelo mundo para acontecer uma "leitura planetária".
Em Lisboa (Fábrica do Braço de Prata, 21h30), numa sessão organizada por Emília Tavares e Sónia Serrano, os actores Diogo Dória, Lúcia Sigalho e Teresa Mónica vão ler vários textos, incluindo partes da odisseia de carro no Afeganistão com Ella Maillart em 1939-40 (na edição francesa, Où est la terre des promesses?): "Viajámos sozinhas, sem boy nem motorista e mesmo sem gentleman. Não levámos nem garrafas de cerveja fresca nem armas de fogo, mal pronunciávamos umas palavritas de persa. Tínhamos também renunciado a ter intérprete. Nunca nos pediram o passaporte, nunca nos pediram os papéis do nosso Ford com matrícula suíça. Nunca verificaram as nossas divisas e não nos obrigaram a pagar a taxa por um rádio que não funcionava, aliás, havia já muito tempo.
É verdade que num buraco completamente perdido nos perguntaram se não éramos originárias do Japão, mas não foi mesmo por mal."
Também será lido um excerto de outro dos mais importantes livros de Schwarzenbach, A Morte na Pérsia, que está a ser traduzido para uma nova colecção de viagens dirigida por Carlos Vaz Marques na editora Tinta da China.
Paralelamente, Emília Tavares, curadora no Museu do Chiado, prepara uma exposição de fotografias. Annemarie Schwarzenbach não só foi muito (e bem) fotografada como se tornou rapidamente praticante. Um talento que terá herdado da mãe, tal como o piano.
A princesa suíça
Annemarie nasceu em Zurique, numa família de pergaminhos. A mãe, Renée, era neta de Bismarck, o primeiro chanceler alemão, e o pai, Alfred, tornou-se um dos mais ricos industriais da Suíça, com 13 mil empregados em todo o mundo, segundo a biógrafa Dominique Laure Miermont.
Quando os filhos se começam a multiplicar, Alfred Schwarzenbach ergue uma mansão no campo que se torna uma quinta modelo. É neste ambiente que Annemarie cresce, como uma princesa à solta nos parques, habituada a ver e ouvir os grandes nomes desde sempre. Richard Strauss, Toscanini, Fürtangler e a família de Wagner eram visitas da casa.
Se o pai era um homem "suave", a mãe era uma dominadora e vivia para as suas paixões - a música, a fotografia, os cavalos, a amiga cantora de ópera com quem passava grande parte do tempo. Pianista exímia, quis que os filhos também o fossem, e Annemarie era a sua favorita. Fê-la estudar piano até poder ser concertista e tanto a queria junto de si que contratou uma preceptora, enquanto os outros filhos iam à escola. Annemarie cresceu com muito tempo para estar sozinha, vestida de rapazinho.
Na biografia de Miermont, esta mãe é uma espécie de couraçado pró-hitleriano, que gostava de ter sido homem, fantasiou a filha quando ela era pequena e depois da sua morte destruiu as cartas que ela recebera de gente como Klaus e Erika Mann, Erich Maria Remarque, Carson McCullers ou Roger Martin du Gard.
Mas não deixa de ser a mãe das mãos frescas na testa de Annemarie, quando ela adoecia.
Deste conflito - como cumprir os seus desejos sem perder o amor da mãe - se há-de alimentar a fuga para a frente em que Annemarie transformou a sua vida.
Só não foi pianista por causa de uma cãibra. Como a outra coisa que fazia desde sempre era escrever, a escrita tornou-se a alternativa. "Gostava de escrever um livro que pudéssemos ler em voz alta muito lentamente e onde cada frase, mesmo incoerente, seria musical e bela."
Os irmãos Mann
Já mais liberta de casa, Annemarie envolve-se num movimento socialista ligado à natureza, estuda História em Zurique e depois na Sorbonne. Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rilke, acompanham-na nesta estadia parisiense.
Faz amigos. Claude Bourdet, que há-de ser membro da resistência francesa e enviado para um campo de concentração, e a sua mãe Catherine Pozzi. Os filhos de Thomas Mann, Klaus e Erika. Klaus partilha o seu mal d"être e Erika é a grande força da natureza que nunca se deixa abater. Os irmãos Mann serão a grande amizade amorosa de Annemarie, até ela morrer.
Quando Thomas Mann a conhece, impressionado, resume: se fosse um rapaz, dir-se-ia que era de uma beleza extraordinária. "O Mágico", como lhe chamavam os filhos, manteve-se sempre atento, por vezes com empenho e admiração, em relação ao que Annemarie escreveu.
Todos os Mann são críticos em relação à progressão do nazismo, e depois do chamado "Discurso alemão" do pai ficam mesmo em risco, para inquietação constante e solidária da amiga suíça.
Terminados os estudos, Annemarie mergulha em Berlim. Cinema, música, bares lésbicos, a descoberta de que "nunca se pode ser feliz no amor". Em Janeiro de 1932 apela a Erika Mann que partam daquela Europa onde progride a doença nazi. "Aqui, exigem de nós coragem a menos e paciência a mais."
Viajam juntos, escrevem. E em Novembro de 1932, entre amigos dos irmãos Mann, Annemarie toma pela primeira vez morfina. É o começo de uma relação devastadora, que a levará a longos internamentos, a crises de loucura e de violência.
Hitler continua a avançar e ela concebe uma revista que seja uma força de oposição, com o melhor do pensamento franco-alemão. Pede apoio financeiro à família, mas a família apoia claramente Hitler. Paga ela própria parte da edição. Klaus Mann dirige. André Gide, Aldous Huxley, Heinrich Mann apadrinham. Escrevem Hemingway, Einstein, Brecht, Cocteau.
E Annemarie lança-se às grandes viagens.
Com a fotógrafa Marianne Breslauer vai em reportagem a Barcelona e Pamplona, conhece a miséria, as crianças ciganas, os camponeses. Depois aceita seguir durante seis meses uma expedição de arqueologia ao Médio Oriente - Turquia, Beirute, Damasco, Jerusalém, Bagdad, Teerão.
A Palestina parece-lhe o destino natural dos judeus perseguidos pela Alemanha nazi. Face a isso, diz, o problema árabe é insignificante.
Antes de voltar de novo à Pérsia, acompanha Klaus a um congresso de escritores em Moscovo. É na véspera das grandes matanças estalinistas. Simpatiza com o interesse pela literatura que lhe parece generalizado como em nenhum lugar mas inteira-se da ortodoxia com que o regime formata a produção cultural. Conhece o grande documentarista Joris Ivens, que a há-de convidar a trabalhar com ele.
Como está determinada a regressar à Pérsia, volta sozinha de comboio, pela Ásia Central, via Tblissi e Baku.
Na Pérsia faz arqueologia, pondera casar para se libertar da família, recebe inúmeras propostas, incluindo de um príncipe curdo, pensa primeiro no seu amigo Claude Bourdet mas acaba por casar com Claude Clarac, diplomata francês baseado em Teerão. Diz-lhe que há três coisas a que não renuncia: liberdade, amizade com os irmãos Mann e trabalho jornalístico e literário.
Ei-la mulher de diplomata. Cedo está apaixonada, mas pela filha do embaixador turco, o que resulta num escândalo em surdina. Foge para o campo, odeia a Pérsia, cai na morfina.
Curas e recaídas
Segue-se a América que Roosevelt tenta levantar da Grande Depressão com o New Deal. Annemarie fica fascinada. Parece-lhe o esforço de um grande humanismo. Faz reportagens sobre o sindicalismo, o racismo, a exploração dos operários, ela, filha de industriais, vestida com a mais subtil elegância dos grandes costureiros. Entre 1938 e 1939 é uma montanha russa de curas e recaídas da morfina. Hitler anexa a Áustria, Annemarie vê-se internada numa clínica psiquiátrica. A mãe leva-a para casa. É pouco depois que Thomas Mann escreve no seu diário: "Anjo devastado." Nova recaída, nova clínica. Escreve A Morte na Pérsia com as cortinas fechadas e algodão nos ouvidos. Apaixona-se pela médica. Não come nem dorme.
É na recuperação desta cura que o pai lhe oferece o Ford com que irá ao Afeganistão na companhia de Ella Maillart, a já reputada viajante suíça que conhecera meses antes.
Durante os preparativos da viagem, Ella apresenta-lhe o poeta Blaise Cendrars em Paris. Ele fica encantado.
As duas mulheres partem a 6 de Junho de 1939, primeiro atravessando a Turquia. Ella vê Annemarie pôr sete folhas na máquina de escrever antes de ficar satisfeita com um parágrafo. Atravessam Herat, depois, Bamiyan, chegam a Cabul quando estala a II Guerra, que lhes corta os planos de viagem.
Na capital afegã, Annemarie tenta arranjar morfina de todas as maneiras. Parte vidros com as mãos, ameaça médicos da embaixada. Acaba numa cura selvagem, no deserto, em grande sofrimento. E ainda se apaixona outra vez antes de ir ter com Ella à Índia.
Ao longo destes anos, vai publicando livros e artigos, mas sempre como se estivesse no limiar de escrever a sua grande obra.
Volta a América com novos amigos, o casal Opel, com cuja metade feminina anda envolvida. Os irmãos Mann também lá estão. Annemarie foge às festas, e às cidades. Não gosta de cidades. Tudo o que quer é ficar sentada à secretária a escrever.
Entra agora na sua vida Carson McCullers, 23 anos, a romancista fenómeno da América, que acaba de publicar Coração Solitário Caçador. Ela e o marido são apresentados a Annemarie, e McCullers vê em Annemarie a outra de si. Abandona o marido. Só quer estar com esta suíça que se afasta, compra um bilhete para Marrocos via Lisboa, quer voltar à Europa.
As trevas
É o Outono de 1940 e até nas fotografias Annemarie já parece um anjo devastado. Morfina, álcool, sem comer nem dormir. Tenta estrangular a sua amante Margaret von Opel no sono. E quando lhe anunciam a morte do pai, de repente, tenta suicidar-se com um cocktail de comprimidos e álcool. Vai para um sanatório. Abre as veias.
Em Fevereiro de 1941 parte da América, finalmente. Desembarca em Lisboa, "observatório de um mundo em fogo", como lhe diz o embaixador suíço, que a tenta convencer a permanecer como correspondente na capital portuguesa. Ela fica três semanas e volta ao seu refúgio à beira do Lago de Sils, na Suíça, onde tem uma casa alugada e se sente querida e cuidada pela gente local.
A última grande viagem é conradiana, pelo Congo Belga. É aqui que Annemarie escreve o ciclo de poemas sobre o Congo. "É um grande poema, comparável a Gottfried Benn", diz a sua biógrafa Dominique Miermont ao P2. É também aqui que a julgam espia alemã.
Os seus amigos no Congo são os Vivien. Madame Vivien não tem medo das feras nem dos homens e leva Anenmarie pela floresta equatorial. Uganda, Ruanda, fronteira com o Sudão. Ser livre, pensa Annemarie, é manter-se mais forte que os acontecimentos.
Em Leopoldeville ainda tem uma amante mulher de um diplomata.
Ao todo, passa seis meses em África.
Volta para Lisboa, apresentam-na a António Ferro, escreve sobre a juventude portuguesa, pondera ficar. Antes, vai ter com o ainda marido Claude a Marrocos. O laço entre os dois é uma outra espécie de amor. No Verão está em Sils. E é no seu refúgio suíço que uma amiga lhe passa uma velha bicicleta de homem. Annemarie cai, bate com a cabeça, perde sangue e a razão. Os amigos falam de um espectáculo arrepiante. Ela rasteja pelo chão como um animal. Morre uma semana depois, a 15 de Novembro de 1942.

Sugerir correcção