O que é ter dúvidas quando se é a Madre Teresa

"Silêncio", "escuridão", "solidão"... Era assim a relação de Teresa de Calcutá com Deus. Durante 50 anos a fundadora das Missionárias da Caridade não sentiu a presença divina, revelam as cartas que escreveu e que são hoje publicadas nos EUA. Vivia uma mentira? Não, dizem os católicos

a "O silêncio e o vazio é tão grande, que olho e não vejo, escuto e não ouço, a língua move-se mas não fala." Em 1979, três meses antes de receber o prémio Nobel da Paz, Agnes Bojaxhiu, conhecida por Madre Teresa de Calcutá, escrevia estas palavras sobre a sua relação com Deus. Durante meio século, a missionária sentiu o "silêncio", a "escuridão" e a "solidão", revela um conjunto de cartas enviadas a diversos confidentes e confessores. O livro Madre Teresa: Vem ser a minha luz é lançado hoje nos EUA, no dia em que passam dez anos sobre a morte de Teresa de Calcutá, aos 87 anos, na Índia.Será que a freira que teimou com as autoridades eclesiásticas para criar a sua própria congregação, as Missionárias da Caridade, que reuniu à sua volta homens e mulheres convertidos à missão de ajudar os mais pobres, vivia uma mentira? Será que Teresa, como diz um dos seus mais acérrimos críticos - o britânico Christopher Hitchens, que foi chamado pelo Vaticano para apresentar provas contra o seu processo de beatificação e canonização - terá concluído que "a religião é uma fabricação humana"? Hitchens recorda, num texto na Newsweek desta semana, que Teresa escreveu, em 1959, isto: "Trabalho para quê? Se Deus não existir, não pode existir alma. Se não existir a alma então, Jesus, Tu também não és verdade."
Também o autor do livro, o padre canadiano Brian Kolodiejchuk, das Missionárias da Caridade, e responsável pela compilação de material para a canonização e beatificação da freira de origem albanesa, reconhece que Teresa não sentia Cristo nem na sua vida, nem na eucaristia. Mas considera que Teresa de Calcutá, beatificada por João Paulo II em 2003, não abandonou a sua crença. O que vivia é aquilo a que o São João da Cruz, místico espanhol do século XVI, descreveu como a "noite escura" da fé, considera.
O que é a "noite escura"? Não é o mesmo que dúvida, define Jacinto de Farias, jesuíta e professor de Teologia na Universidade Católica Portuguesa. "A dúvida é quando não se confia plenamente. A noite escura são momentos muito dolorosos na vida dos santos, em que não se sente absolutamente nada", explica. "A experiência da Madre Teresa é de uma grande densidade mística. É o silêncio de Deus", diz.
São João da Cruz dizia que "sentimos como se não soubessemos nada, nada, nada", cita Armindo Vaz, padre carmelita e professor na Católica. Os grandes místicos, como João da Cruz, Teresa de Ávila ou Teresa do Menino Jesus falam de noite escura, de trevas, de momentos tenebrosos, porque "nas coisas de Deus não podemos dizer que tudo é luz, pois esta só sobressai onde há sombras", continua o carmelita. Por isso, Armindo Vaz não se admira que Teresa de Calcutá tenha manifestado interrogações "quanto ao ser e ao agir de Deus".
Desde pequena que Agnes Bojaxhiu não pôs de parte uma vida consagrada a Cristo. Aos 18 anos ingressa no convento das Irmãs do Loreto, na Irlanda. Quando faz os votos temporários escolhe o nome de Mary Teresa, uma homenagem à sua padroeira, a freira francesa e doutora da Igreja do século XIX, Santa Teresa do Menino Jesus. A freira é enviada para a Índia, onde dá aulas, durante 16 anos. É aos 36 anos que Teresa conta ter falado com Cristo, que lhe pede para fundar as Missionárias da Caridade porque quer freiras indianas que trabalhem com os mais pobres, os doentes e os moribundos. "Tu és, eu sei, a pessoa mais incapaz, fraca e pecadora, mas exactamente por seres assim quero usar-te para Minha glória", terá dito Jesus, segundo relatou Mary Teresa ao arcebispo Ferdinand Perier, em 1947. A felicidade sente-a quando se lança na aventura de criar a sua congregação, altura em que muda de nome para Madre Teresa de Calcutá e decide vestir o traje indiano, todo branco debruado com duas riscas azuis. "A minha alma, neste momento, está em perfeita paz e alegria", escreve. Mas, à medida que a obra cresce, a fundadora sente-se pior. Em 1953 escreve ao arcebispo: "Reze especialmente por mim para que não possa estragar o Seu trabalho e para que Nosso Senhor se mostre pois há uma tão terrível escuridão em mim, como se tudo estivesse morto." Nove anos depois vaticina: "Se alguma vez me tornar santa vou certamente ser uma santa de "escuridão"."
A "experiência de fé já vivida pode sustentar a pessoa na escuridão", acredita Margarida Ribeirinha, da congregação das Irmãs Doroteias, para quem a vida de Teresa de Calcutá pode continuar a ser um bom exemplo para os crentes. "A dúvida é humana, só a certeza é de Deus", diz.
Apesar das suas interrogações, Madre Teresa "manteve-se imperturbável na sua fé, pois continuou a viver em favor dos pobres e continuou a amá-los", diz Armindo Vaz. "Não é o sofrimento que nos salva, mas o amor", diz.
Conceição Oliveira, consagrada do Instituto Secular das Cooperadoras da Família, admite que a freira possa ter tido dúvidas, sobretudo devido ao trabalho que fazia, nas ruas de Calcutá. "Seria muito duro viver a experiência com os mais pobres. Mas seria ainda mais duro se o fizesse só num âmbito filantrópico. Se não houvesse sinais fortes e densos de fé, desistiria."
Tal como o Papa Bento XVI, em Maio do ano passado, numa visita ao antigo campo de concentração nazi de Auschwitz, na Polónia, perguntou onde estava Deus, quando 1,5 milhões de pessoas foram mortas, Teresa também terá perguntado muitas vezes onde estaria Deus, acredita a Irmã Maria Amélia Costa, Franciscana Hospitaleira da Imaculada Conceição. "Há situações dramáticas que nos levam a perguntar onde é que Ele está. Mas não temos dúvidas que Ele esteja, nem culpabilizamos Deus, porque devemos questionar os homens sobre se Deus está no seu coração", diz Maria Amélia Costa, que conheceu a Madre Teresa de Calcutá, há 20 anos, numa visita que a missionária fez a Fátima. A franciscana não acredita que Teresa "não tivesse Deus na sua vida". "Mas senti que era uma mulher de procura."
Quebra de sigilo?
Aos confidentes e confessores, Teresa de Calcutá pediu que destruíssem as suas cartas. Maria Amélia Costa e Margarida Ribeirinha não têm dúvidas de que a vontade da freira devia ter sido respeitada. "Às vezes, escrevemos demais... E a Madre Teresa era capaz de perceber que essas cartas poderiam ser aproveitadas para especular, perdendo-se de vista o rasto enérgico da sua santidade", diz Maria Amélia Costa. Mas os receptores das cartas podem ter "intuído que, mais tarde, poderiam mostrar à humanidade o que é ser santo", analisa Margarida Ribeirinha.
Para Armindo Vaz e Jacinto de Farias não há qualquer dúvida: não houve quebras de segredo de confissão pois tratam-se de cartas que são "documentos fundamentais e de grande densidade", diz o padre jesuíta. "As pessoas pensaram que esse testemunho de fé era grande demais para ser destruído. É um tesouro precioso do qual muitas almas podem aproveitar", analisa o sacerdote carmelita. "É uma riqueza para a humanidade e as cartas revelam a fortaleza e o vigor desta mulher", conclui De Farias.

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