A História poderá emergir como o pior inimigo dos Estados Unidos numa invasão do Iraque

O presidente George W. Bush conduz os Estados Unidos para a guerra sem a História do seu lado.Há dois séculos que potências estrangeiras têm vindo a conquistar territórios no Médio Oriente com os seus próprios interesses em vista - e de caminho prometem melhorar as sociedades árabes. Em alguns casos têm de facto modernizado cidades, ensinado ideias novas e introduzido tecnologias. Mas desde tempos tão remotos como os da invasão do Egipto por Napoleão que as nações do Médio Oriente sempre foram uma tentação para os conquistadores e acabaram sempre por escorraçá-los a cambalear, deixando para trás povos ainda mais hostis do que antes em relação aos invasores.Não admira por isso que até os muitos árabes que estão contra Saddam Hussein olhem a esperada invasão norte-americana do Iraque com expectativa. "A não ser que os norte-americanos sejam muito mais subtis do que alguma vez tiveram a capacidade de ser, e sejam mais subtis do que os (colonialistas) ingleses, isto vai acabar em lágrimas", prevê Faisal Istrabadi, um advogado de Washington, nascido no Iraque, e que já trabalhou com o Departamento de Estado norte-americano em programas de desenvolvimento do sistema judicial do Iraque. "A lua-de-mel será muito curta".As razões para as desventuras do passado são várias e complexas, mas muitas provêm da convicção ocidental de que a liberdade e a modernidade podem ser impostas pela força das armas aos povos do Médio Oriente. Isto tem levado a que os invasores, uma e outra vez, calculem erradamente o apoio às suas acções de conquista, tanto no panorama internacional como nos territórios que ocupam. Isso tem conduzido também a que ajudem as minorias cooperantes que eles abençoam a governar as maiorias ressentidas; a desrespeitar hábitos e tradições locais enraizados; e a ocupações que continuam já muito depois de o apoio local se ter desvanecido e a revoltas sangrentas que são esmagadas pela força bruta."Tendemos a subestimar uma regra básica: que as pessoas preferem uma má governação feita por um dos seus do que uma boa governação exercida por estranhos", afirma o historiador David Fromkin, professor na Universidade de Boston e autor de um livro clássico sobre os falhanços do colonialismo no Médio Oriente "A Peace to End All Peace", de 1989.O idealismo de BushGeorge W. Bush garante que esta invasão será diferente. Nas últimas semanas ampliou os objectivos desta guerra para lá do afastamento de Saddam e da destruição de armas de destruição maciça, começando a falar na transformação do Iraque num exemplo de liberdade no Médio Oriente. Em conferência de imprensa, no passado dia 6, Bush disse que as tropas norte-americanas permaneceriam no terreno para ajudar na condução do país até que uma nova governação representativa pudesse tomar o controlo. Com a paixão de um homem convertido aos objectivos maiores de construção de uma nação, George W. Bush falou emocionado sobre a necessidade de enfrentar o totalitarismo, de espalhar "a dádiva de Deus" de liberdade "a toda e qualquer pessoa" e de como "as vidas e a liberdade dos iraquianos são extremamente importantes" para os norte-americanos.O idealismo de Bush relembra o passado, e um passado com mais de 200 anos, aquando das primeiras invasões ocidentais de territórios árabes dos tempos modernos. "Povo do Egipto, ser-vos-á dito que vim para destruir a vossa religião", afirmou Napoleão em marcha para a conquista do Cairo em 1789. "Não acreditem! Respondam que eu vim para restaurar os vossos direitos!"Praticamente a mesma saudação foi feita em 1917, quando os britânicos entraram em Bagdad. "Os nossos exércitos não vieram até às vossas cidades e terras como conquistadores ou inimigos, mas como libertadores", proclamou então o general F. S. Maude, comandante das forças britânicas no Iraque. "Vocês foram despojados da vossa riqueza por homens injustos. (...) O povo de Bagdad irá prosperar com instituições que estarão em consonância com as suas leis sagradas. (...) A raça árabe irá uma vez mais ascender à grandeza!"Em 1920, as tropas britânicas matavam entre seis mil e dez mil iraquianos ao destroçar uma revolta conjunta de muçulmanos xiitas e sunitas E para suprimir insurreições que ocorreram mais tarde entre os curdos do Iraque, os ingleses inventaram a técnica dos bombardeamentos aéreos a alvos civis rebeldes. O general Maude não viria a assistir a tais desenvolvimentos: morreu de cólera oito meses após ter entrado em Bagdad.Apesar todos os revezes, o domínio britânico de 40 anos sobre o Iraque - que garantiu parte do controlo inglês no Médio Oriente durante a Primeira Guerra Mundial - foi consensualmente mais bem sucedido do que qualquer outra invasão ocidental na região. "Uma vez mais e outra, os governos ocidentais têm levado a cabo políticas no Médio Oriente com as quais visam alcançar os seus próprios objectivos e ajudar os povos locais, acabando sempre por chegar à conclusão que só conseguiram justamente o inverso do que queriam", afirma David Fromkin.A administração Bush está perfeitamente consciente do campo minado em que vai entrar, mas ao mesmo tempo mostra-se confiante de que os Estados Unidos, com o seu recorde de democratização e derrota de tiranias na Alemanha e no Japão, irão ter êxito no Iraque. Concretamente, a administração Bush acredita que saberá evitar as armadilhas do passado, ao lançar um ataque militar devastador imediatamente seguido de acções de reconstrução e ajuda humanitária no valor de milhares de milhões de dólares, de acordo com um funcionário da Casa Branca. As autoridades norte-americanas estão também confiantes de que o Iraque, com os seus sistemas de educação e de serviço civil profundamente enraizados, o seu historial de secularismo, e a sua absoluta exaustão após três séculos de totalitarismo - além da sua extrema riqueza em petróleo -, está mais do que pronto para dar o salto em frente."O Iraque é uma sociedade sofisticada", afirmou Bush na conferência de 6 de Março. "O Iraque tem dinheiro. (...) O Iraque servirá como catalisador da mudança, de uma mudança positiva".O desastre de NapoleãoProclamando uma similar nova era de igualdade e respeito para os "verdadeiros muçulmanos", Napoleão marchou Cairo a dentro, matando pelo caminho mil membros da casta que governava o Egipto. Com Napoleão iam 100 cientistas franceses em pesquisa para elaboração de uma enciclopédia e espalhando o "esclarecimento" europeu entre os atónitos intelectuais egípcios.O verdadeiro objectivo de Napoleão era flanquear os ingleses. Mas os franceses cometeram um erro fatal, repetido desde então por quase todas as potências ocidentais: a tentativa de dividir para reinar, colocando grupos minoritários no poder a governar populações maioritárias e hostis.Os franceses aliaram-se aos cristãos - membros da facção copta minoritária no Egipto - para governar sobre a esmagadora maioria de muçulmanos. Os ressentimentos agudizaram-se conforme centenas de mulheres, sem usar véus, se pavoneavam pelas ruas na companhia dos intrusos franceses, exibindo uma imodéstia ocidental. "Viam-se mulheres das classes baixas na companhia dos franceses devido à liberalidade destes e ao gosto que manifestavam claramente pelas mulheres", escreveu o historiador egípcio Abd al-Rahman al-Jabarti.Meses após a chegada de Napoleão ao Cairo, os líderes religiosos islâmicos instigavam a populaça a rebelar-se, do que resultou a morte de 300 franceses. Em retaliação, as forças ocupantes bombardearam o Cairo e tropas francesas tomaram de assalto a cidade, matando três mil naturais da capital egípcia e pilhando a mesquita principal de al-Azhar montados a cavalo. "A população do Cairo ficou estupefacta, incrédula, humilhada perante a pilhagem e o saque da sua riqueza levada a cabo pelos franceses...", notava ainda al-Jabarti.Os franceses partiram ao fim de três anos. A sua influência permaneceu, numa dinastia modernizada que subiu ao poder logo após a retirada gaulesa, usando métodos franceses de estratégia económica. Mas a França, ela própria, perdeu tanto dinheiro como homens na aventura egípcia.A desventura britânicaOs britânicos foram os seguintes a chegar ao Egipto, em 1882. A sua conquista assegurou-lhes a rota do Canal do Suez, vital para o seu Império das Índias, mas em breve provocou uma sangrenta revolta por parte de oficiais nacionalistas egípcios. Durante os quarenta anos que se seguiram, administradores britânicos governaram o Egipto nos bastidores, naquilo que foi chamado o "protectorado debaixo do véu", apresentando-se como libertadores dos camponeses que viviam sob um regime feudal. Mas vários incidentes ajudaram a fazer do Egipto um centro de fervor anti-ocidental, entre eles a brutal punição de aldeões quando uma rixa com oficiais britânicos por causa de uma caça aos pombos causou a morte de um militar.As tropas britânicas chegaram ao que hoje é o Iraque em 1914, no âmbito da campanha britânica na Primeira Guerra Mundial contra os turcos otomanos em toda a região. "A Grã-Bretanha estava então cheia de confiança numa vitória rápida e fácil", escreveu o oficial britânico T. E. Lawrence, mais conhecido como Lawrence da Arábia, que organizou a histórica revolta árabe contra os otomanos. As tropas britânicas, com um armamento muito superior, demoraram quatro anos a conquistar todo o Iraque.Tal como os otomanos, Grã-Bretanha manteve os sunitas como classe governante, um entendimento que exacerbou os conflitos com as populações xiitas e curdas, mais numerosas. E as coisas só pioraram quando os britânicos bombardearam com artilharia a cidade de Najaf, sagrada para os xiitas e um dos centros de resistência anti-colonial.Em 1921, para criar uma aparência de auto-governo, os britânicos levaram de Londres um dos líderes da revolta árabe que se encontrava exilado e proclamaram-no rei do Iraque. O rei Faiçal era o chefe de uma família nobre com origem a cerca de 3.200 quilómetros de Bagdad, em Meca, na Península Arábica. Já tinha sido proclamado rei da Síria em 1918 e a seguir deposto pelos franceses.No Iraque conseguiu fazer melhor, sob a tutela de uma infatigável diplomata britânica chamada Gertrude Bell. Descrevendo o Iraque como "uma amálgama de tribos", Bell correu os desertos escaldantes para encontrar os chefes de cada tribo. "Levou Faiçal pela mão a grandes xeques, a líderes religiosos, a nobres: 'Cá está ele, escutem-no, precisamos do vosso apoio'", afirma Janet Wallach, que em 1996 publicou uma biografia de Bell.Anos depois, Saddam Hussein haveria de transformar as tribos iraquianas num baluarte do seu regime. Até aos dias de hoje, sempre que cumprimenta na televisão os comandantes militares menciona as suas origens tribais e envia saudações ao chefe da tribo. "Não temos ninguém que faça isso, que chegue junto de tanta gente", observa Janet Wallach.O domínio britânico do Iraque, que durou um quarto de século depois da independência, em 1932, resultou naquilo que muitos iraquianos ainda recordam como uma era dourada de ordem, educação e desenvolvimento. Mas os britânicos e os reis por eles escolhidos nunca foram capazes de conquistar os súbditos, e frustraram deliberadamente os desejos iraquianos de uma cultura política independente.Num memorando em 17 pontos para outros oficiais britânicos, Lawrence avisou: "O estrangeiro e cristão não é uma pessoa popular na Arábia. Por mais informal e amigável que o tratamento para com ele possa ser, lembrem-se sempre de que as bases em que se apoiam são movediças".Quando o filho do rei Faiçal, Faiçal II, foi derrubado em 1958 pelo general Abdel Karim Kassem, o rei e a família foram desfeitos membro a membro por uma multidão enfurecida em Bagdad. Desde então, e excluindo um breve período de crescimento económico nos anos 70 alimentado pelo 'boom' petrolífero, a história política do Iraque tem sido feita de golpes, depurações, guerras e tirania.Quando o seu domínio no Iraque se aproximava do fim, os britânicos criaram novos problemas no Médio Oriente quando invadiram - juntamente com a França e Israel - a zona do Canal do Suez. Os três países foram obrigados a concordar com a nacionalização do canal depois de um confronto diplomático com os Estados Unidos e outros países. Em termos domésticos, a raiva perante a invasão falhada custou o lugar ao primeiro-ministro Anthony Eden. No Médio Oriente, o momento alimentou a percepção de que existia um esforço conjunto entre o ocidente e os israelitas para dominar a região, ajudando à radicalização dos nacionalistas árabes.Erros de cálculo"Há qualquer coisa no Médio Oriente que leva as pessoas a fazerem cálculos errados", afirma Robert Parker, um diplomata norte-americano já reformado que ajudou a resolver a crise do Suez.Também Israel cometeu um erro de cálculo ao intervir noutro país, quando invadiu o Líbano em 1982 para esmagar a guerrilha palestiniana. Embora sendo um país do Médio Oriente, com uma elevada percentagem de judeus que imigraram de países islâmicos, Israel é olhada pela maior parte dos árabes como um implante ocidental na região. O avanço israelita para Beirute foi um exemplo dos problemas que os estrangeiros enfrentam quando conquistam terras árabes, dizem alguns oficiais israelitas que participaram nessa missão.A princípio, aldeões xiitas no Líbano receberam os israelitas como libertadores dos combatentes palestinianos que tinham transformado a região fronteiriça numa zona de guerra, recorda o general Amatzia Chen. Mas quando Ariel Sharon, então ministro da Defesa de Israel, fez avançar as suas forças até aos arredores de Beirute, deixando pelo caminho milhares de civis mortos, a ofensiva caiu num impasse por entre críticas furiosas na Europa, nos Estados Unidos e até em Israel. Os xiitas, que inicialmente se tinham mostrado gratos, voltaram-se contra os israelitas, considerando-os ocupantes, e os esforços para impor um acordo de paz no Líbano através dos cristãos maronitas, aliados de Israel, foi pelos ares numa fúria de atentados bombistas e assassinatos."A ideia de que se pode mudar o Médio Oriente com armas e baionetas é errada", afirma Bob Dillon, embaixador dos Estados Unidos no Líbano nessa altura.Em Israel, há quem esteja preocupado pela possibilidade de os líderes norte-americanos poderem ter em relação ao Iraque as mesmas ilusões que Israel levou para o Líbano em 1982. Se os norte-americanos conquistarem Bagdad, afirma o coronel na reserva Meir Pial, autor de vários livros sobre história militar, "terão de patrocinar um novo governo. Será visto pelo povo como um governo que coopera com o conquistador, por isso necessitará de apoio". Ele prevê que, "quanto mais tempo os norte-americanos ficarem, mais atolados na lama ficarão".A Casa Branca não tem reservas, está convencida do poder das boas intenções da América. Há meses que os funcionários norte-americanos estão ocupados a organizar comités de iraquianos exilados e a discutir com eles todos os aspectos da reconstrução política e económica, e chegando mesmo a incluir grupos xiitas sediados no Irão. Os Estados Unidos compreendem, diz William Burns, secretário de Estado assistente para assuntos do Médio Oriente, que "no dia a seguir a pararem os tiros, a vida tem de tornar-se melhor para os iraquianos".Burns, que há longos anos estuda a história do Médio Oriente, percebe ainda outra coisa. "Sempre pensei que é importante um certo nível de humildade no momento de aplicar o poder norte-americano no Médio Oriente", afirmou o mês passado numa reunião em São Francisco. "O Iraque é uma sociedade muito complicada. Isto vai exigir uma enorme quantidade de apoio, não só da nossa parte mas de outros países do mundo. Isto não é um desafio que os Estados Unidos possam enfrentar sozinhos".Exclusivo PÚBLICO/The Wall Street Journal.

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