"A grande doença do espírito é a infelicidade"

O "segredo" que o cérebro guarda. A doença maligna cerebral que parece invencível. A infelicidade. As diferenças matemáticas entre macho e fêmea. A esperança da restauração de funções num doente paraplégico que poderá estar escondida num sistema nervoso inacabado. A loucura.

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As mãos costumam segurar alternadamente a ponta de um bisturi ou o bico de uma caneta. Sempre vigiadas por uns exigentes olhos azuis. João Lobo Antunes já editou dois livros de ensaios e é neurocirurgião.

A prática de uma investigação realizada ao longo de 13 anos no Estados Unidos mergulhou num sono profundo quando regressou a Portugal. Mas o investigador persiste em estar acordado. Sem hesitação, considera que o grande desafio das neurociências "é o cérebro". Um território misterioso que esconderá o segredo de sermos únicos entre os outros animais. E nas profundezas do cérebro vive também o campo fascinante da "regeneração nervosa" que poderá solucionar a "grande tragédia do sistema nervoso" – a recuperação de uma função.

E se perante as eventuais diferenças entre o homem e a mulher comemora: "Vive la différence!", o desalento torna-se óbvio com o "pouco progresso" no combate à doença maligna cerebral. Com a poesia a desafiar, o clínico diz que, actualmente, "a grande doença do espírito é a infelicidade", ou seja, a depressão. E quanto às técnicas terapêuticas, confirma o abandono da psicocirurgia, considera a eficácia dos electrochoques e alerta para os efeitos secundários de fármacos no tratamento de doenças psiquiátricas. Pelo meio, a irresistível tentação de uma frase que deve ser escrita: "Sabe que há tantas células nervosas como há estrelas no céu?".

Encarou o convite da Sociedade Porto 2001 para participar na conferência da acção "Os Outros em Eu", em parceria com o ciclo "O Futuro do Futuro", como uma provocação. O tema foi a loucura. 

PÚBLICO: A psicocirurgia desapareceu?
João Lobo Antunes: No princípio dos anos 1950 apareceram as primeiras drogas e a psicocirurgia desapareceu praticamente. Hoje faz-se muito pouco. Nós, nos últimos 15 anos, fizemos uma. Existem outras técnicas, não de destruição, mas, por exemplo, de neuroestimulação, ou seja, estimular com eléctrodos estruturas profundas do cérebro. E os electrochoques?

Os electrochoques foram uma coisa muito contestada; nos anos 60, naqueles movimentos da libertação da personalidade e autonomia, na sequência da contestação do poder de tudo o que era domínio. É que o o electrochoque, no fundo, fazia o indivíduo perder temporariamente o controlo sobre si. Aliás, o electrochoque chegou a ser banido pelo próprio estado da Califórnia, o que é uma coisa extraordinária. Na realidade, diga-se o que se disser, é uma técnica terapêutica eficaz e, muitas vezes, até é a única. Todas aquelas grandes terapias heróicas, como o choque insulínico, o choque do cardiosol, não foram puras invenções.

Actualmente, a terapêutica das doenças mentais faz-se através de produtos químicos...
Mas, repare que, ao contrário do que muitas pessoas dizem, muitos fármacos têm efeitos secundários que reduzem os doentes quase ao estado que uma lobotomia fazia. Medicamentos como os neurolépticos e outros dessa natureza. O uso de fármacos no tratamento das doenças psiquiátricas é uma realidade e alguns deles têm efeitos secundários que ficam. Essas drogas que mexem com a química, com os neurotransmissores, etc, estão lá a mexer em coisas. Não é propriamente uma panaceia.

Actualmente, qual é o "mal" da mente que mais afecta as pessoas?
Creio que a grande doença do espírito é a infelicidade. Quer dizer, infelizes sempre houve... Falo da depressão. Há cerca de 40 anos a depressão aparecia por volta dos 35 anos, actualmente é aos 28. O que significa que há factores sociais, culturais, entre outros, que fazem com que as pessoas se sintam deprimidas. Uma vida de competição diferente, algum esgaçar de laços familiares... O problema para um clínico é distinguir o que é que são factores psicológicos da doença e o que são factores orgânicos. Como é que eles se misturam, qual é a fórmula.

As imagens do cérebro que temos hoje, apesar de fascinantes, ainda não são suficientes para percebermos como ele funciona...
Sabe que há tantas células nervosas como há estrelas no céu? A imagem é ainda muito redutora e o cérebro é um mistério. Mas acho que o mistério é indispensável.

Qual é hoje o desafio das neurociências?
O desafio é o cérebro. Conhecer mais o cérebro. Porque estas novas técnicas de visualização em que se ilumina como uma árvore de Natal, uma luz aqui, outra luz ali, que começam a piscar quando se fazem determinadas tarefas, não nos diz tudo. De forma nenhuma. São aproximações.

E os genes, o genoma?
O problema fundamental do desafio do genoma é saber o que se fará com a informação. Quando se puder partir dessa informação para outra. Por exemplo, nós sabemos que partilhamos com o chimpanzé 97,5% dos genes. Mas temos de perceber quais são os genes que nos tornam unicamente humanos. É, de facto, uma coisa muito interessante.

E o segredo não está no cérebro?
Está, com certeza. Não está certamente na capacidade de saltar de ramo em ramo. De qualquer forma, a informação genética já interfere no campo das neurociências. Hoje em dia sabe-se perfeitamente qual é o gene que está envolvido na neurofibromatose, o "elephant man". O que serve para prevenção, para técnicas que limitem a perpetuação de um gene.

E quanto às diferenças entre o cérebro da mulher e do homem?
Essa é uma questão do ponto de vista biológico fascinante. Prende-se com o chamado dimorfismo sexual, as diferenças da forma, da morfologia, da dimensão, etc., entre o homem e a mulher, ou, num sentido mais lato, entre o macho e a fêmea. Uma das coisas mais complexas é que há muito poucos estudos cientificamente válidos que demonstrem que há diferenças importantes, do ponto de vista funcional, entre um homem e uma mulher. Estamos a falar de capacidades e aptidões. Provavelmente, das poucas aptidões que são diferentes é a habilidade matemática.

As mulheres são mais hábeis?
Matematicamente. É evidente que há receptores para as hormonas no cérebro que influenciam muito o desenvolvimento e se as hormonas sexuais estão lá, por alguma razão estão. Há nos roedores, nos ratos, claras diferenças nas estruturas, nomeadamente na zona do hipotálamo. Existe uma assinatura morfológica. Mas os estudos em humanos não são tão evidentes. Eu continuo a usar aquela expressão francesa: "Vive la différence!". Graças a Deus, o criador quis-nos diferentes... E a diferença é muito mais que física. Pode-se transformar uma mulher num homem ou um homem numa mulher, mas não se pode transformar a maneira de pensar.

Desde que regressou a Portugal que não se dedica à investigação. O que faria nessa área, se pudesse?
Sabe que, nos Estados Unidos, o meu trabalho de investigação foi sobre a regulação do cérebro da função reprodutora, no macaco. Fazia investigação sobre o hipotálamo, uma zona de comando do cérebro visceral. O trabalho tinha a ver com um fenómeno curioso, ainda hoje longe de estar bem investigado, que era a ciclicidade reprodutora, os ciclos menstruais. É uma das coisas fascinantes que falta perceber. O relógio biológico que nós temos, o ciclo do sono, da vigília, do alerta e do não-alerta, da resposta ao "stress"... Um dos relógios biológicos mais interessantes é o da ciclicidade reprodutora e o macaco "rhesus" era muito interessante, porque tinha a mesma ciclicidade e o mesmo padrão hormonal. Isto foi o que eu fiz durante para aí dez anos.

Mas, e agora?
Acho que o grande desafio são as chamadas células estaminais. Pensava-se que o sistema nervoso estava acabado, que as células já não se multiplicavam, que não havia potencialidades de renovação e diferenciação... e descobriu-se que não é verdade. Lá escondidas, em certas zonas, há células primitivas que se podem diferenciar de uma maneira ou de outra. A ideia das células nervosas terminais até poderem dar células sanguíneas, tal a potencialidade de diferenciação e de caminhos. Isso leva-nos à grande tragédia do sistema nervoso: recuperar a função depois de uma doença, de um traumatismo, por exemplo, no caso dos doentes paraplégicos. A restauração de função é dos grandes desafios da neurociência e a regeneração nervosa é um campo fascinante. Depois, obviamente, outra das coisas que continuam a ser uma tragédia é toda a parte oncológica. Nós continuamos com poucas armas para combater a doença maligna cerebral. Geralmente, quando é maligno, pouco há a fazer. É uma doença que mata e mata depressa. É um roer por dentro. E, de facto, nisso houve muito pouco progresso.

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