"Não há nada que Nekrosius não consiga resolver"

Chegou ao Porto na bagagem do celebradíssimo Eimuntas Nekrosius, o lituano que o escolhe assiduamente para protagonizar obras-primas. Foi assim com "Pirosmani, Pirosmani", o primeiro espectáculo a garantir devoção internacional ao encenador que o PoNTI acolhe desde a primeira edição, e é assim com este "Otelas", o último capítulo da trilogia dedicada ao teatro perfeito de William Shakespeare. Quem travou conhecimento com o actor Vladas Bagdonas em 1997, entre as inúmeras revelações de uma incontornável versão de "As Três Irmãs", pode agora conferir as múltiplas virtudes deste báltico de feições tensas e barba rala, que não estranha o silêncio e se apresentou ao PÚBLICO em regime de tolerância zero: casaco preto, calças pretas, camisa preta, peúgas pretas. Só os sapatos furaram o embargo e arriscaram um irónico castanho que atraiu o olhar de Vladas Bagdonas a cada pergunta difícil, à procura das palavras certas num lituano longínquo. A conversa começou na estaca zero. E assim ficou a saber-se que, entre 1970 e 1993, o lituano indigitado para vestir a pele do Mouro de Veneza deu os primeiros passos como actor a sério no mesmo Teatro da Juventude que assistiu, anos mais tarde, à estreia do fenómeno Nekrosius. Fez de Geoffrey nesse iniciático "A Taste of Honey" (1976), de Shelagh Delancy, e beneficiou da fase em que Nekrosius foi o encenador residente da companhia, assegurando participações em "Love and Death in Verona" (1980), "Pirosmani, Pirosmani" (1981), e, já fora do Teatro da Juventude, "Mozart Salieri" (1994), "As Três Irmãs" (1995), e "Hamletas" (1997). "Já tenho a reforma assegurada", ironiza. Vinte e tantos anos a trabalhar com Nekrosius fizeram de Vladas Bagdonas um actor-fétiche do carismático encenador. O que é, acima de tudo, uma garantia de assíduas lições de teatro. "Há uma coisa que o distingue de todos os outros encenadores: nunca trabalha sentado à secretária", revela o protagonista do "Otelas" que até amanhã estará em cena no Teatro Nacional S. João. Um intensíssimo e precoce regime de ensaios, explica, está na base do fôlego invulgar das encenações do lituano: "Surgem inúmeras versões para cada cena: há algumas que são imediatamente aceites - em 'As Três Irmãs', a cena do adeus a Irina nem sequer foi ensaiada, só reapareceu na estreia -, outras são retocadas meses a fio". O método é infalível, garante: "Normalmente, Nekrosius sabe de antemão como vai ser o final. E quando o encenador sabe exactamente como vai ser a cena final, não há nada que não consiga resolver. Encontra sem problemas o caminho que conduz até lá", num processo que envolve furiosos cortes de forma e conteúdo. O lituano, porém, é impreterível. Vladas Bagdonas nem sequer perde tempo a questionar hipotéticos efeitos perturbadores do desvio linguístico sobre a perfeição formal das palavras de Shakespeare. Porque, acredita, "as palavras não são mais do que uma consequência. O importante é ver o que se passa em palco. Se nos limitássemos a recitar o texto de maneira muito perfeitinha, vocês nunca nos convidariam para o vosso festival...".É com um encolher de ombros e um sorriso envergonhado que acolhe as perguntas mais pessoais: como encontrou este monumental Otelo branco, por exemplo. Como em tudo, Nekrosius foi crucial. "Sem ele teria sido muito complicado", admite. Mas a descoberta do ponto de rebuçado da personagem foi "uma parceria com todos os outros actores" - incluída Egle Spokaite, a bailarina que Nekrosius raptou do Teatro da Ópera de Vilnius para compor uma comovente Desdémona. "O provérbio diz que, no palco, o papel do rei é representado pelos seus súbditos. Foi um bocado assim. Mas a maior parte das coisas veio de dentro, não impus nada à personagem", assegura. É por isso que "este Otelo é Bagdonas noutras circunstâncias". Igualmente branco, porque a cor da pele do Mouro é o que menos interessa. "A primeira coisa que perguntei a Nekrosius quando ele me convidou foi se teria de mudar de cor. Ele disse que não", lembra. Obviamente: Nekrosius não é encenador que se deixe tentar pela facilidade. A alteridade deste Otelo é uma construção psicológica subtil que comove o actor: "Talvez o que mais o distingue dos outros seja a sua absoluta confiança naqueles que o rodeiam: Otelo acredita que todos lhe querem bem. E talvez as pessoas que acreditam sem vacilar nas boas intenções dos outros sejam as mais vulneráveis - só assim se explica que o ciúme tenha podido nascer numa alma assim". O exercício absorve Vladas Bagdonas, que, às tantas, transforma a análise da diferença da sua personagem "numa palestra" acerca da "invulgar amplitude" dos sentimentos de Otelo e sobre o "fatídico papel das paixões" no teatro de Shakespeare. Que, concorda, é de facto "bigger than life" e, para cada actor compenetrado, um mergulho garantido na modéstia. "Sim, essa é uma questão interessante. Sabe, esta profissão não é das mais simples", responde lacónico. Há coisas que mesmo actores famosos "pela paixão e pelo empenho que depositam no seu trabalho" - as palavras são do crítico italiano Luca Scarlini e referem-se, obviamente, ao protagonista de "Otelo" - não conseguem ouvir sem embaraço. A fórmula Vladas Bagdonas inclui, de facto, sangue, suor e lágrimas, mas não se espere do actor que acolha os elogios com displicência. "Não sei, não sei o que dizer. Se você insiste, que seja verdade", aceita de olhos no chão. A julgar pelo desfecho das apresentações de "Otelas" no Porto, a equação de Vladas Bagdonas - "o volume de energia que invisto no palco é igual ao que o público me devolve em troca" - é mais do que acertada. Algumas lágrimas sinceras, uma plateia inteira de pé e muitos minutos de palmas devem querer dizer qualquer coisa.

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