Entre Paris e Almada

Aos 24 anos Sarah Affonso, uma menina de famílias burguesas de recursos médios que tinha frequentado a Escola de Belas-Artes de Lisboa, parte sozinha para Paris para cumprir um destino - ser pintora. Mais tarde, casa-se com Almada Negreiros e abandona a pintura. História de uma artista (quase) desconhecida contada hoje, no Artes e Letras da RTP2, às 20h10.

Sarah Affonso ainda não tinha 25 anos quando parte para a capital francesa e frequenta, como muitos outros antes e depois dela, numa década não já heróica do modernismo mas ainda assim de impossível comparação com o ambiente bafiento do ensino de Lisboa, a academia livre de La Grande Chaumière. Regressa a Lisboa para cobrar no Primeiro Salão de Outono de 1926 um grande êxito crítico. O pai tinha apostado nela todas as economias familiares que o seu rendimentos de militar e a sua estada africana lhe proporcionaram. Esta história não é comum numa sociedade de mesquinhos sentimentos morais, de frágeis emancipações femininas, de escassíssimas vontades artísticas. Libertou-se o pai de preconceitos de caserna e ela mostrou uma rara capacidade de perceber o seu tempo. Sem nenhuma bolsa de estudo oficial Sarah arriscou partir, como Amadeo em 1909 ou Vieira da Silva em 1928 - com a diferença de lhe faltarem a ela os vastos meios económicos para o fazer com facilidade.Sarah Affonso diz a certa altura de um recuperado depoimento filmado nos anos 70 que os artistas que viam fora da Escola lhes ensinavam mais do que os professores. Referia-se aos primeiros modernistas. E no entanto ela foi a última discípula de Columbano, tenaz defensor de um oitocentismo peculiarmente não paisagístico e soturno de cores, sendo várias as pinturas iniciais que reflectem o saber dos modelados e dos timbres cromáticos do mestre. No entanto, como muito exactamente refere Raquel Henriques da Silva, a pintura e o desenho, a cor e os temas, que vão caracterizar o génio pessoal de Sarah Affonso estão muito longe da lição que colhera do seu mestre. Um dado suplementar da sua biografia deve ser tomado em consideração: o tempo que viveu, até aos 14 anos, no Minho, em Viana do Castelo, cidade onde o pai foi colocado imediatamente após o seu nascimento em Lisboa. O que essa província lhe pode dar de cor de energia cromática, de riqueza temática e de exemplos de simplificação formal da representação, irão renascer no momento em que se afirma como artista moderna. Uma das vertentes, porventura a mais conhecida, da Sarah é o conjunto de imagens de uma quase "naïveté" em que evoca a vida rural e popular nos seus aspectos lúdicos.Mas há uma outra vertente, a de paisagens fortemente coloridas e de pincelada larga - há uma pintura de uma janela sobre o casario que é quase matissiana. E temos depois uma larga sucessão de retratos onde parece firmar-se a mais intensa e original relação de Sarah com a construção do espaço, a fixação do real.Sarah voltaria a Paris em 1928 para uma estada interrompida pela doença da mãe. Primeiro sinal de uma sina que determinaria que o seu destino não fosse integralmente cumprido: a dominância do universo sentimental da família. Em 1930, no Primeiro Salão dos Independentes, ela é, com Mário Eloy, Diogo de Macedo e Júlio, das mais notadas presenças. Mas em 1934 casa com Almada Negreiros: personalidade de todos os recursos e discursos, polemista e pintor, poeta maior e desenhador excepcional. Pergunta a narradora no início do vídeo porque abandonou Sarah a pintura. A resposta todos a sabíamos ou adivinhávamos já. Porque essa mulher, durante tantos anos livre, sucumbiu à lógica do casamento numa sociedade em que mesmo os seus membros modernos não podiam aceitar a alteração das regras familiares - faziam aliás gala na dimensão masculina da sua afirmação de força.Num depoimento gravado que cobre imagens da sua casa de família, ela diz algo de dramático: perguntando-se porque não exprimia opinião responde a si mesma se o casar, o tratar dos filhos, o acompanhar Almada não é já ter uma opinião... Almada e o Zé, que tão ternamente retrata numa das pinturas que dispersamente foi realizando ao longos das décadas seguintes, ocupam todo o seu espaço de acção. Almada glorifica-se e automitifica-se, ela ajardina e decora com cuidados e gosto extremo uma quinta que compraram em Bicesse. Há virtudes no documentário que, no entanto, tem no argumento (Manuel Varella, que também realiza) algumas incorrecções que merecem ser apontadas. Falando-se de Sarah no Minho diz-se que admirava por aquele tempo (tinha 14 anos) Amadeo e Santa-Rita. Ora Amadeo só regressa de Paris ao Minho em 1914 (já ela está em Lisboa) e só expõe publicamente em 1916! Cita-se a pintora numa crítica às deformações neo-realistas (anos 40) ao mesmo tempo que se mostram obras que realizou em 1929. Refere-se Gustave Doré mostrando gravuras que não nitidamente suas. Finalmente mostram-se todos os quadros sem data, nem título, nem localização. Mas o documentário faz-nos desejar uma retrospectiva capaz de mostrar essa pintora que afinal (quase) ninguém conhece.

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