Paz, Pão, Povo, Liberdade e.. Ambiente?

Quase 10% do texto do programa de Governo é dedicado às questões ambientais e da transição energética

Se o programa de governo ditasse hinos, o PSD precisaria de uma nova palavra na famosa enumeração: ambiente. Quase 10% do texto do programa é dedicado a questões de ambiente e transição energética. Em termos de promessas, mais do mesmo: o executivo “pretende” 55 vezes, “assume” 13, “compromete” 4. Uma análise à lupa das palavras do programa de Luís Montenegro.

José Sócrates

XVII Governo Constitucional

Outros temas 70,50% Educação 10,40% Trabalho Solidariedade e Segurança Social 6,90% Administração Interna e gestão do Estado 6,72% Infraestruturas e habitação 5,48%

Pedro Passos Coelho

XIX Governo Constitucional

Outros temas 69,87% Administração Interna e gestão do Estado 9,57% Trabalho Solidariedade e Segurança Social 8,41% Educação 6,79% Economia 5,48%

António Costa

XXI Governo Constitucional

Outros temas 73,45% Trabalho Solidariedade e Segurança Social 8,42% Educação 7,52% Economia 5,83% Ambiente e transição energética 5,31%

Luís Montenegro

XXIV Governo Constitucional

Outros temas 68,79% Ambiente e transição energética 9,08% Trabalho Solidariedade e Segurança Social 8,64% Administração Interna e gestão do Estado 6,76% Educação 6,73%

Nota: Os dados apresentados resultam de uma análise que, numa primeira fase, utilizou um algoritmo treinado em manifestos eleitorais frase a frase. Numa segunda fase, recorreu-se a um LLM para tentar confirmar os resultados obtidos. Foi pedido que se catalogassem as frases nas seguintes categorias: Relações Externas, Finanças, Administração Interna e gestão do Estado, Justiça, Defesa Nacional, Educação, Ciência, Infraestruturas e habitação, Economia, Trabalho Solidariedade e Segurança Social, Ambiente, Agricultura e pescas, Cultura, Saúde e Juventude. Nos gráficos acima optou-se por mostrar as quatro categorias com maior % de caracteres (face ao total de caracteres do programa do governo em causa).

De notar que, em todos os programas, a metodologia não conseguiu colocar em nenhuma destas categorias cerca de 30% do texto.

Dos cerca de 1,9 milhões de caracteres do programa que o XXIV Governo Constitucional apresentou à Assembleia da República e que foi aprovado nesta sexta-feira, 172 mil são dedicados ao meio ambiente e à transição energética – quase 10% do total. Não foi sequer o ponto mais focado por quem apresentou o documento, mas se o peso em caracteres for sinónimo da atenção que o Governo dedicará a uma determinada pasta, o ministério agora liderado por Maria da Graça Carvalho terá muito trabalho pela frente.

Claro que a percentagem de texto do programa não faz desta a sua maior prioridade – pode dar-se o caso de o seu autor ser apenas mais palavroso. Mas, a julgar pela análise do PÚBLICO aos primeiros programas de Governo dos três primeiros-ministros anteriores, a percentagem de texto dedicada a diferentes áreas nos programas de Governo tem sido um indicador das prioridades de cada executivo.

Ora vejamos: José Sócrates, no seu primeiro programa, dedicou cerca de 10,4% do texto à Educação; Pedro Passos Coelho, com o memorando de entendimento da Troika a guiar o seu horizonte, dedicou 9,6% do seu programa a temas relacionados com a Administração Interna e Pública – acima de tudo para enfatizar a necessidade de reduzir o peso e ineficiência do Estado. Já António Costa, certamente influenciado pela "posição conjunta" à esquerda que segurou esse seu primeiro Governo, decidiu-se por 8,4% em questões de trabalho, solidariedade e Segurança Social.

Embora "Ensino Superior" seja a combinação de palavras mais frequentemente mencionada – 42 vezes, algo que o novo executivo partilha com António Costa, que também escreveu muitas vezes “Ensino Superior” no seu primeiro programa – no top 30 das combinações mais frequentes do programa de Montenegro estão ainda palavras relacionadas com alterações climáticas. “Transição energética” é referida 19 vezes, “alterações climáticas” 18 vezes, “desenvolvimento sustentável” (10) e “recursos naturais” (também 10).

As palavras combinadas de Montenegro

Cobinações de palavras mais frequentes no programa do governo apresentado por Luís Montenegro. Da análise ficam excluídas 560 palavras, como "o", "a", "de", "para", que são demasiado comuns na língua portuguesa para poderem ter relevância na análise.

ensino superior 42
governo pretende 36
administração pública 28
segurança social 22
recursos humanos 21
transição energética 19
alterações climáticas 18
serviços públicos 18
união europeia 18
entidades públicas 17
políticas públicas 16
criar condições 14
economia portuguesa 14
formação profissional 14
fundos europeus 14
longo prazo 14
língua portuguesa 14
território nacional 14
inteligência artificial 13
autarquias locais 12
empresas portuguesas 11
estratégia nacional 11
plano nacional 11
apoios sociais 10
carga fiscal 10
desenvolvimento sustentável 10
países lusófonos 10
recursos naturais 10
seguintes medidas 10
serviço público 10
atividade física 9
política externa 9
salário mínimo 9
tecido empresarial 9
violência doméstica 9
áreas protegidas 9
coesão social 8
forças armadas 8
ação climática 7
ação social 7
coesão territorial 7
desenvolvimento económico 7
especial atenção 7
exclusão social 7
eficiência energética 7
inclusão social 7
investimento privado 7
melhores práticas 7
nações unidas 7
rede nacional 7
regiões autónomas 7
saúde mental 7
setor empresarial 7
setor público 7
setor social 7
transporte público 7
xxiv governo 7
comunicação social 6
comunidades portuguesas 6
concertação social 6
emprego público 6
governo assume 6
governo constitucional 6
imigração regulada 6
instituições públicas 6
instituições sociais 6
proteção civil 6
prática desportiva 6
recursos hídricos 6
rede pública 6
setor privado 6
setores público 6
transporte ferroviário 6
baixa densidade 5
cooperação internacional 5
cuidados continuados 5
direitos humanos 5
ecológico europeu 5
economia circular 5
economia nacional 5
educação física 5
equilíbrio orçamental 5
espaço marítimo 5
formação contínua 5
fundo ambiental 5
investimento público 5
médio prazo 5
pacto ecológico 5
plano estratégico 5
programa nacional 5

Governos que pretendem e promovem

Ainda que as diferenças ideológicas se façam sentir nas palavras que compõem os quatro documentos analisados (a título de curiosidade, Costa foi, de todos, aquele que apresentou o programa mais palavroso), a verdade é que, pelo menos em termos de formulações, os partidos do “centrão” não parecem ser muito originais nas palavras a que recorrem.

Quando se olha para as palavras mais usadas – nesta análise o PÚBLICO excluiu 560 palavras comuns que não acrescentam valor à análise como “o”, “a”, “de”, “nos” – não se pode deixar de reparar que este top pouco muda, qualquer que seja o programa para o qual olhamos.

Sintonia quantitativa

Apesar das diferenças entre programas, quando se olha para o top 10 das palavras mais usadas, as diferenças entre governos são pouco significativas.

José Sócrates

XVII Governo Constitucional

governo 227
social 186
desenvolvimento 173
nacional 160
segurança 157
política 154
portugal 150
gestão 120
quadro 115
qualidade 115

Pedro Passos Coelho

XIX Governo Constitucional

governo 175
social 105
empresas 91
gestão 84
promover 83
nacional 82
medidas 81
criação 75
portugal 69
recursos 66

António Costa

XXI Governo Constitucional

governo 264
social 217
desenvolvimento 175
portugal 159
nacional 158
promover 158
criação 151
empresas 150
serviços 144
programa 139

Luís Montenegro

XXIV Governo Constitucional

governo 145
social 135
portugal 124
empresas 120
nacional 119
promover 119
reforçar 103
saúde 101
segurança 96
serviços 93

Curioso é também o grau de compromisso assumido. “Promover” é, em quase todos os programas analisados, o único verbo a figurar no top 10 das palavras mais frequentes (a única excepção é o primeiro programa do governo de José Sócrates, que despromoveu “promover” para a 21.ª posição).

Mas se promover é um verbo de preferência geral, “pretender” é a formulação preferida de Luís Montenegro. Quando recorre à expressão “o Governo [...]”, o primeiro-ministro “pretende” 36 vezes, mas também “assume” 6, "compromete" 4 e “adoptará” 3. Uma diferença face a António Costa, que “defende” 18 vezes e “promoverá” 12. O seu antecessor, Passos Coelho, também apreciava a terceira pessoa do futuro do indicativo do verbo promover (5 vezes), mas aquilo que mais vezes fez foi pôr o Governo a “comprometer-se” (“governo compromete” surge 22 vezes).

Nota: por lapso, na contabilidade das palavras mais usadas, os valores apresentados inicialmente estavam todos multiplicados por seis.


Nota metodológica

De forma a calcular a percentagem de texto dedicada a cada categoria, foi utilizada praticamente a mesma metodologia que o PÚBLICO utilizou para analisar os programas eleitorais.

Numa primeira fase, recorreu-se à base de dados Manifesto Corpus, um projecto que recolheu e catalogou milhares de manifestos e programas eleitorais de todo o mundo. Foi com base nesta colecção que um grupo de cientistas de dados treinou o grande modelo de linguagem (LLM) RoBERTa para classificar textos políticos em 56 categorias diferentes. Ainda que o modelo tenha sido treinado em manifestos eleitorais e não programas de Governo, consideramos que o conhecimento político deste algoritmo seria suficiente para atribuir uma das 56 categorias ao texto. Como o algoritmo devolvia uma probabilidade (de zero a um) de aquela frase ser de determinada categoria, optou-se pela categoria com maior probabilidade. No entanto, excluíram-se todas as frases a que o algoritmo deu uma pontuação inferior a 0,5.

Depois desse processo, procedeu-se a uma organização destas frases em categorias maiores. A saber: Relações Externas, Finanças, Administração Interna e gestão do Estado, Justiça, Defesa Nacional, Educação, Ciência, Infraestruturas e habitação, Economia, Trabalho Solidariedade e Segurança Social, Ambiente, Agricultura e pescas, Cultura, Saúde e Juventude. Para tal recorreu-se à tecnologia da OpenAi, com a seguinte pergunta: "Em text será apresentado um excerto de um programa do governo da República Portuguesa. Em label, receberá a etiqueta política que outro algoritmo atribuiu a esse excerto. Por vezes essa etiqueta pode vir apenas vazia. Com base nessas duas informações quero que em Answer me devolvas uma das segintes respostas, ou seja, que me indiques qual das seguintes etiquetas aquele excerto deveria receber:"" . Procedeu-se depois a uma limpeza e nova agregação de dados, já que o modelo da OpenAI procurou, por vezes, "inventar" novas categorias que poderiam muito bem ser integradas em algumas das existentes.

Em temos de análise textual, o PÚBLICO considerou o corpus completo de cada programa de Governo, que tinha anteriormente extraído de ficheiros pdf. Procedeu-se a uma limpeza, ainda que não muito aprofundada, do texto extraído, nomeadamente cabeçalhos e rodapés. Também não foi tido em consideração na análise o texto presente no índice.

Como é comum em análise textual, procedeu-se à remoção de stop words - palavras tão comuns em determinada língua que não justifica a sua inclusão na análise. Neste caso, foram consideradas 560 palavras, resultando da junção de várias bases de dados de stop words em português disponíveis online. Não se inclui nestas stop words palavras que são comuns neste tipo de documentos como "governo", "programa", "executivo", uma prática é comum em análise textual de documentos específicos de um determinado domínio.

O PÚBLICO não fez qualquer lemmatização - um processo utilizado que visa reduzir uma palavra à sua forma base, ou lema (por exemplo, "correr", "corre", "corria", e "corrido" podem ser reduzidos ao lema "correr") nem stemização, que consiste em reduzir uma palavra à sua raiz ( "correr", "corre", "corria", e "corrido" podem ser reduzidos à raiz "corr"), pelo que isso pode ter influenciado o resultado de contagem de algumas palavras. Também não foi possível, por uma questão de exequibilidade, procurar todas as siglas, acrónimos e abreviaturas presentes e desdobrar para a sua forma completa.