Viver com uma “bomba-relógio” na cabeça

Tânia nem sempre consegue sair da escuridão do quarto. Mafalda esteve 25 dias seguidos com enxaquecas e Ana teve de pedir a reforma por invalidez. Em Portugal, dois milhões de pessoas sofrem desta doença crónica que não tem cura.

De repente, sente uma ligeira pontada junto à testa. Ainda que já esperada, chega quase sempre sem aviso. Este sinal que o corpo lhe dá é suficiente para Tânia saber que dali a nada vai ter (mais) uma enxaqueca. À “dor de cabeça”, que entretanto se começa a formar, junta-se a sensibilidade à luz. O local onde trabalha é silencioso, mas os ruídos do escritório, mesmo os mais ínfimos — o barulho de um teclado, as conversas dos colegas — começam a tornar-se insuportáveis. Sabe que vai precisar de ir para casa em breve.

Começa por reduzir o ritmo de trabalho. Toma a “medicação SOS”. Se não a tomar nos primeiros minutos dos primeiros sintomas, sabe que uma crise de várias horas se pode transformar em dores que duram dias e que a fazem refém de uma cama. Faz mais pausas durante as horas que se seguem, mas perde-se no que estava a fazer. Tem de confirmar várias vezes a mais pequena tarefa. A companhia da enxaqueca leva a que demore o dobro do tempo a fazer algo simples como verificar uma frase, um número. O que faria numa hora demora agora duas, três horas a terminar.

Em mais de 20 anos de doença, Tânia Marques já perdeu a conta aos dias em que teve de faltar ao trabalho. Entre a pré-adolescência — quando os primeiros sintomas se manifestaram — e a idade adulta, a intensidade das crises aumentou de tal maneira que a vida profissional ficou virada do avesso.

“Sou enfermeira. Trabalhei em cuidados intensivos durante nove anos, sempre foi a minha área de eleição. Trabalhava por turnos, num ambiente stressante, em que estamos sempre a ser confrontados com situações graves de saúde. Chegou uma altura em que não aguentei mais e tive de pedir que me mudassem de serviço”, recorda Tânia, agora com 35 anos. Continua a trabalhar como enfermeira, mas agora na gestão operacional.

Activar som

Nos dias em que as crises batem à porta durante o horário de trabalho, escolhe as tarefas que exigem menos concentração e reza para que o relógio ande mais rápido, que corra até à hora de saída. O caminho até casa também é um desafio. A luz do sol, os ruídos, tudo dificulta a condução. Apesar da ânsia de chegar “ao refúgio”, conduz devagar para evitar acidentes ou momentos de desconcentração.

“Deixei de trabalhar por turnos porque se tiver privação do sono, ou se não dormir as horas necessárias, o risco de ter uma crise aumenta. Se dormir muito acontece o mesmo. Do ponto de emocional, tento evitar estar nervosa, mas é difícil. Se tiver alguma situação em que fique mais ansiosa, sei que vou ter enxaquecas”, explica Tânia.

Mal entra em casa, inicia uma rotina tantas vezes repetida que já a executa quase em piloto automático. Vai buscar uma banda de gel frio para a cabeça, fecha as persianas do quarto e a porta, veste uma roupa mais confortável e deita-se. Assim fica até sentir que a enxaqueca se foi embora: às vezes, demora um par de horas, outras um par de dias. Nesses dias, não há nada mais que Tânia possa fazer para aliviar as dores. Resta-lhe esperar e ver as enxaquecas a roubar-lhe horas a fio.

Como “algo a rebentar dentro da cabeça”

A enxaqueca é a doença neurológica mais comum no mundo e afecta cerca de 12 a 15% da população mundial. Em Portugal, há pelo menos 2 milhões de pessoas que sofrem desta doença sem cura, que é tão ou mais frequente do que a asma ou a diabetes. A Sociedade Portuguesa de Cefaleias estima que 700 mil portugueses sofram de enxaquecas graves.

As enxaquecas são apenas um dos tipos de cefaleias (vulgarmente conhecidas por dores de cabeça): a classificação internacional inclui 14 grandes tipos de cefaleias que se subdividem em cerca de 200 formas diferentes.

“A dor de cabeça das enxaquecas tem várias intensidades, mas é sempre extremamente incapacitante. Imagine ter uma pressão muito forte na cabeça, uma dor que muitas vezes é pulsátil. Parece que há algo a rebentar dentro da cabeça. Em muitos doentes, esta dor está associada a outros sintomas, como as náuseas e a fotossensibilidade”, explica a neurologista Isabel Luzeiro.

5%

Quantidade de tempo de vida que as pessoas com enxaqueca perdem para a doença

Estes sintomas podem durar entre 30 minutos e 72 horas e depois desaparecem por completo, diz a neurologista da CUF, que até 2018 era responsável pelas consultas de cefaleias do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC). Mas, quando o doente passa a ter crises em mais de 15 dias por mês, as enxaquecas tornam-se crónicas e alguns dos sintomas passam a ser uma companhia constante.

“As enxaquecas aparecem, normalmente, nas alturas mais produtivas da vida, dos 20 aos 50 anos. Os doentes estão em plena actividade laboral e há muitos dias em que não conseguem sequer trabalhar. Com a cronicidade, as características esbatem-se mais. O doente passa a ter uma dor que às vezes não tem características específicas de enxaqueca, mas estão sempre presentes”, refere Isabel Luzeiro.

Nas mulheres, que são três vezes mais afectadas por esta doença do que os homens, o aparecimento das enxaquecas está, muitas vezes, relacionado com a primeira menstruação e o desaparecimento com a chegada da menopausa. Os factores genéticos também entram nesta equação sem solução: se um dos pais tiver a doença, há uma grande probabilidade de um dos filhos também vir a ser diagnosticado.

Medicamentos inovadores

Quando as crises batem à porta, os doentes sentem-se encurralados e há pouco que possam fazer para aliviar as dores.

Descansar e dormir em ambientes sossegados, de preferência escuros, parece ser essencial para ajudar a controlar ou reduzir a evolução da enxaqueca, mas o excesso de horas de sono poderá também agravar a crise. É um equilíbrio débil e difícil de manter. Os pacientes podem também tentar evitar factores que agravem as crises: luzes, cheiros e sons fortes ou passar longos períodos sem comer ou beber água.

Ainda que ajudem, estas estratégias não impedem a enxaqueca de se instalar. Muitas vezes, nem “medicação SOS” — feita quando o doente está com uma crise e que pode ajudar a aliviar ou a dissipar os sintomas — resulta.

Quando alguém passa a ter mais de quatro crises por mês, durem estas muitas horas ou muitos dias, é preciso fazer tratamento preventivo para precaver o aparecimento das enxaquecas.

“São tratamentos com anticorpos monoclonais que vieram revolucionar a forma como tratamos os doentes. São medicamentos administrados com uma injecção subcutânea, uma vez por mês ou de três em três meses, que ajudam a reduzir bastante a frequência das crises. O problema destes fármacos é que só são distribuídos ao nível hospitalar, no Serviço Nacional de Saúde, e é preciso que os doentes cheguem às consultas, o que pode demorar muito meses”, explica a médica Isabel Luzeiro.

Vinte dias infernais

O caminho que Tânia Marques teve de percorrer até chegar à consulta e, meses depois, ao tratamento foi sinuoso. Uma espécie de “tentativa e erro muito dolorosa”. “Experimentei mais de cinco tratamentos preventivos que não tinham efeito, inclusive medicamentos que tinham sido desenvolvidos para outras doenças, mas que demonstraram ter também alguma eficácia na prevenção da enxaqueca, como anti-hipertensores, antidepressivos e antiepiléticos”.

Apesar de ter enxaquecas desde os nove anos, a primeira grande crise só aconteceu aos 30 anos. Tânia só encontra um adjectivo para descrever esses 20 dias: “Infernais”. Deitava-se com dor de cabeça, acordava com dor de cabeça, ia trabalhar com dor de cabeça. As enxaquecas, sempre teimosas, não cediam à medicação.

“Nem sequer conseguia alimentar-me, levantar a cabeça da cama era um sofrimento. Foi muito difícil. Passei horas e horas deitada no quarto, com tudo escuro”, recorda. Nesses 20 dias que passou de cama, emagreceu quase oito quilos. Seguiu-se “um batalhão de exames” para perceber o porquê de as dores não estarem a ceder à medicação. O diagnóstico não foi uma surpresa: enxaquecas crónicas.

Tânia sofre de enxaquecas há mais de 20 anos. Fotografia: RUI GAUDÊNCIO
Tânia sofre de enxaquecas há mais de 20 anos RUI GAUDÊNCIO

“Só depois de cinco preventivos é que a minha neurologista sugeriu iniciar os tratamento com anticorpos, que têm um valor acrescido. Três injecções custam cerca de mil euros e têm que ser administradas ao nível subcutâneo uma vez por mês”. Como a enfermeira estava a ser acompanhada num hospital privado, acabou por ter de pagar os primeiros meses do tratamento.

“Sem a comparticipação do Serviço Nacional de Saúde seria quase incomportável continuar com este tratamento. Foi muito difícil chegar até ao SNS para ter acesso a este tratamento. Estive um ano e meio à espera para ter uma consulta de neurologia num hospital”, diz.

A gravidez foi passada sem uma única enxaqueca, mas o pós-parto foi outra altura difícil. Não conseguia controlar as horas de descanso, andava stressada e era quase impossível evitar os gatilhos que agravavam as crises. “Era difícil dar de mamar de duas em duas horas. Não sei o que foi dormir uma noite completa até aos dois anos do meu filho.”

Antes de iniciar este tratamento, tinha entre 15 e 20 dias por mês de enxaqueca e agora tem “cinco ou seis”. Já teve de aumentar a dose da terapêutica biológica e já está a tomar a quantidade máxima, mas garante que, com cinco dias de enxaqueca por mês, se sente “feliz”. “As pessoas pensam que basta tomar um comprimido, basta dormir que passa, que é uma simples dor de cabeça. Não é, afecta a minha vida todos os dias”.

Os “gatilhos”

A ansiedade, o stress e a privação ou excesso de horas de sono são “factores-gatilho” transversais, segundo explica a médica Isabel Luzeiro, mas as crises de enxaqueca também podem ser provocadas por alimentos: algumas substâncias presentes nos caldos de carne, os laticínios — leite, iogurte, queijos — favas, soja, alimentos fritos, os chocolates, salsichas, bacon, entre outros.

Mafalda Silva começou a associar a ingestão de certos alimentos ao aparecimento de “dores de cabeça fortes” ainda na faculdade. “Se comer tangerinas, beber um sumo de laranja ou uma água com limão ao pequeno-almoço todos os dias, sei que no fim da semana vou ter uma crise grave de enxaquecas.”

Activar som

Também já aprendeu que não deve “abusar” nos queijos ou nos frutos secos — que já desencadearam uma das crises mais graves. E que a hora de deitar e levantar é sagrada. “Tenho de dormir nove a dez horas, todas as noites.”

Nos primeiros anos da doença sentia-se um “ratinho de laboratório”. Quando percebeu que as suas dores de cabeça não eram iguais às das colegas — elas não sentiam vontade de vomitar, não queriam passar dias na cama, e conseguiam controlar as dores com medicação — procurou ajuda.

“Lembro-me de ter ido a uma consulta de neurologia e o médico me dizer que eram enxaquecas e que era uma coisa normal na minha idade. Comecei com medicação preventiva, que durante dois ou três anos surtia efeito, mas depois é como se o nosso corpo se começasse a habituar”, diz a jovem de 33 anos.

Em 30 dias, 25 eram passados com enxaquecas. As crises começaram a ser tão longas e tão dolorosas que o médico lhe disse que não havia mais nada a fazer. Já não podia aumentar a medicação, estava a tomar a dose mais elevada. O que fazia “em SOS” passou a fazer todos os dias. Restava tentar procurar ajuda no Serviço Nacional de Saúde. Concordou, só queria ver as dores resolvidas. Só não sabia que teria de esperar dez meses por uma consulta. “Será apenas a primeira consulta, não é garantido que comece logo algum tipo de tratamento. Se calhar vou ser outra vez ratinho de laboratório”, diz.

As enxaquecas de Mafalda Silva começam sempre na zona da testa e vão-se alastrando para as têmporas. É sempre uma dor forte e latejante.
"Às vezes, alastram-se aqui para esta zona, no topo e parte de trás da cabeça", descreve a advogada de 33 anos.
É raro, mas também acontece. As dores de cabeça podem alastrar-se para o pescoço, principalmente para a nuca.

Entretanto, arranjou estratégias para lidar com a doença. As primeiras horas do dia, passa-as, quase sempre, sem luz, na escuridão. “Já aprendi a viver no escuro. De manhã, quando acordo, fico na cama uns 15 minutos a adaptar-me. Levanto-me e vou à casa de banho também sem luz. Não consigo lidar com a claridade e nunca abro logo as janelas. É o meu namorado ou a minha mãe que acaba por vir abrir as persianas. Se tiver que sair de casa de manhã, tem de ser de óculos de sol.”

Tal como Tânia Marques, que deixou de trabalhar por turnos, também Mafalda se viu obrigada a alterar por completo a rotina de trabalho para incluir as “companheiras”. Despediu-se do antigo emprego, que exigia que fizesse um horário entre as 9h00 e as 18h00, e passou a trabalhar por conta própria com o namorado, também ele advogado.

“Esse horário começou a gerar algum cansaço, fui-me apercebendo que desencadeava as crises. O facto de gostar de trabalhar à noite permite-me muita coisa. Consigo lidar com os clientes a horas mais tardias. Se tiver que descansar até às nove ou dez, é perfeitamente aceitável”.

Mafalda Silva esperou dez meses por uma consulta no SNS. Fotografia: PAULO PIMENTA
Mafalda Silva esperou dez meses por uma consulta no SNS PAULO PIMENTA

Enquanto espera pela consulta num hospital do SNS, continua a fazer a medicação que antes tomava apenas em emergência e tem crises cerca de três vezes por semana. Nos dias com “dores profundas” obriga-se a parar. “Deito-me na cama e não consigo fazer mais nada. Tudo apagado, tudo fechado, sem barulho. Não como, bebo poucos líquidos. Nem a voz das pessoas consigo ouvir.”

Perder 5% da vida para a doença

Segundo as estimativas da Associação Migra, dedicada ao apoio de pessoas com enxaquecas, os doentes perdem, em média, 5% do seu tempo de vida para a doença e cerca de 50% necessitam de faltar ao trabalho, em média, quatro dias por mês. Para Ana Arede, de 52 anos, não bastou mudar a rotina de trabalho, deixar de trabalhar por turnos ou entrar mais tarde. Viu-se mesmo obrigada a pedir a reforma por invalidez.

Mudou-se para a Suíça aos 26 anos e, aos 47, quando se reformou, decidiu regressar a Portugal. “Trabalhava na esterilização de um hospital. Adorava o que fazia, mas tive de aceitar que já não podia trabalhar. Cheguei a trabalhar sem horários, a ir apenas quando estava bem. Às vezes, chegava ao trabalho e, passado meia hora, tinha de estar num gabinete, às escuras”, recorda.

50%

Percentagem de doentes que necessita de faltar ao trabalho pelo menos quatro dias por mês

Foi diagnosticada cedo, aos nove anos, mas aos 36 anos recebeu uma nova má notícia: tinha enxaqueca hemiplégica, um tipo muito raro da doença que estava a causar episódios com dores angustiantes. Além dos sintomas normais das enxaquecas, Ana ouvia zumbidos nos ouvidos, tinha fraqueza motora e aura, um sintoma caracterizado pela perda parcial ou completa da capacidade de ver e pelo aparecimento de pontos brilhantes no campo de visão do doente.

Apesar de ter crescido a ver a avó e mãe com panos na cabeça, deitadas durante longas horas para aliviar as dores das enxaquecas, não estava preparada para o que seria viver “com uma bomba-relógio que pode explodir a qualquer momento”.

Fotografia feita com dupla exposição em câmara. Ana trabalhou vários anos na esterilização de um hospital, mas foi obrigada a reformar-se por invalidez. Fotografia: DANIEL ROCHA
Fotografia feita com dupla exposição em câmara. Ana trabalhou vários anos na esterilização de um hospital, mas foi obrigada a reformar-se por invalidez DANIEL ROCHA

"Lembro-me de ser muito nova e colocar a cabeça num tanque que tínhamos em casa para ver se me aliviava as dores de cabeça. Nestes anos todos não consegui perceber o que desencadeia as crises. Às vezes tenho dias stressantes e elas não aparecem. Outros dias são como hoje: acordei bem-disposta e, numa questão de minutos, tive de me deitar”, recorda Ana.

Tal como a grande parte dos doentes com enxaqueca crónica, fez vários tratamentos até entrar algo que a ajudasse a “ter mão na doença”. As injecções subcutâneas estão a fazer efeito, mas, mesmo assim, duas a três vezes por semana não consegue sair do quarto.

“Ainda na semana passada, estava preparada para sair, já vestida para ir ao cabeleireiro, e de um minuto para o outro tive de cancelar. Quando as crises começam, não posso ir a lado nenhum. Se consigo meter-me logo na cama e descansar, estar quieta, melhoro. Mas, se demorar a chegar a casa, a dor é galopante e não há volta a dar.”

Com a ajuda das injecções, as crises duram “apenas” meio dia, mas já chegou a estar cinco dias de repouso. Como tem fraqueza motora, Ana evita estar muito tempo sozinha fora de casa. “Durante anos não aceitei a minha doença e tentei contrariar, mas agora sei que não a posso ignorar. Tenho que a aceitar e aprender a viver com ela.”