A tendência portuguesa que desponta na alta cozinha

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Com o Porto em pano de fundo, os cozinheiros posaram para a fotografia. De jaleca branca e da esquerda para a direita: José Bastos, Hans Neuner, Benoît Sinthon, Carla Patrícia, Aimé Barroyer, Jerónimo Ferreira e Ricardo Costa. Sentados e à frente, estão Miguel Vieira e João Oliveira. Adriano Miranda

A Rota das Estrelas do The Yeatman juntou grande parte dos chefs estrelados do nosso país e deu para ver que há uma vanguarda apostada em valorizar os produtos e as receitas da cozinha tradicional. Além da partilha e troca de ideias, o encontro foi também de consagração para Ricardo Costa, o anfitrião.

Arrojo, técnica e inovação, a par de uma aposta muito focada na utilização dos produtos nacionais. Pode ser até exagerado falar-se, por enquanto, numa tendência portuguesa na alta cozinha. Mas que para lá se caminha, isso parece já claro.

Esta é uma constatação que decorre da recente Rota das Estrelas, uma iniciativa que promove o encontro e a troca de experiências envolvendo a maioria dos restaurantes nacionais distinguidos com estrelas Michelin. Decorreu, desta vez, no The Yeatman, na zona ribeirinha de Gaia, e serviu também para celebrar o regresso ao Porto do prestigiado símbolo do guia francês, depois dos tempos de glória do Portucale nos idos anos 1980.

Não é que, hoje por hoje, não haja na cidade outros restaurantes que possam justificar a entrada na lista das cobiçadas estrelas, mas isso é conversa para outra ocasião.

Quanto ao encontro do final da semana passada, é claro que foi muito mais do que uma celebração aquilo a que durante dois se assistiu no luxuoso hotel de Gaia.

Focando-nos apenas no que às artes da cozinha diz respeito, diga-se, desde já que, para lá da demonstração de pujança gastronómica, chamou a atenção o ambiente de partilha, convívio e cumplicidade entre alguns dos maiores da nossa cozinha, que vivamente se aplaude. Uma atitude que se vem cimentando nos últimos tempos e começa a dar frutos, não só em termos de partilha de conhecimentos, mas também no que à visibilidade e reconhecimento público diz respeito.

Ninguém de bom senso terá hoje qualquer réstia de dúvida quanto à importância de iniciativas como o Tributo a Claúdia, o festival gourmet do restaurante Vila Joya que anualmente reúne prestigiados chefs de todas as origens, e do que isso representa para o turismo e reconhecimento da gastronomia. E é nesse sentido que parece caminhar a Rota das Estrelas, pelo menos com os encontros de maior envergadura, como tem acontecido na Madeira, no restaurante Il Gallo d"Oro, do hotel The Cliff Bay, e agora com o The Yeatman.

E para lá da sofisticação técnica e do critério culinário, o que se constata também é um crescente apego a coisas que os ligam aos produtos de origem e às receitas da nossa cozinha. Olhe-se para o menu dos dois jantares que foram servidos em Gaia e encontramos coisas tão familiares como sardinha, atum, carabineiros do Algarve, lavagante da nossa costa, rascaço dos Açores, morcela beirã, vitela mirandesa ou o boi nacional. Também as cerejas, a ginja da Madeira ou a pêra rocha. E não se pense que se tratou de pratos de cozinha regional. Tudo do mais elaborado e sofisticado, com apresentações elegantes e surpreendentes e a pedir meças ao que se pratica nos sítios mais badalados de todo o mundo.

As pedras de sal de Barroyer

Sintomático, a este respeito, foi o que se passou com Aimé Barroyer, que apresentou aquilo que é mais típico desta época de festas populares: "sardinhas e atum". Lá estava a sardinha e a barriga de atum grelhadas, o pão, a sangria e até o manjerico. Só que numa elaboração e apresentação absolutamente geniais. E ainda com efeito acrescido de serem grelhados na mesa, cada um a seu gosto. Expliquemos: o que veio à mesa é uma pedra de sal aquecida a 180º, sobre a qual cada um colocava o lombo da sardinha, que assava a gosto. Grelhava-se depois o atum, aproveitando-se a gordura largada pela sardinha para o temperar. A acompanhar, um tudo-nada de puré de ervilhas temperado com azeite de manjerico (a dar o perfume), pó de pão (desidratado), gelatina de gaspacho e espuma de sangria.

Para além do lado emocional e do efeito surpresa que a ninguém deixa indiferente, chega a ser quase comovente a forma como Aimé se dedica aos produtos portugueses. "Não nos podemos demitir deste país, que é tão bonito e tem coisas que são absolutamente únicas", diz, em jeito de apelo, o chef do lisboeta Tavares.

Aqui chegados, há que dizer que a utilização das placas de sal rosa para grelhar e temperar os alimentos é um dos últimos gritos da gastronomia. Usadas pelos chefs mais vanguardistas, são em regra apresentadas como um raro e sofisticado produto proveniente dos Himalaias, mas que, afinal, também há em Portugal. "É isso que é irritante", desabafa Aimé, insistindo na ideia de que temos produtos únicos e com potencialidade para a causar furor no mundo culinário.

As placas de sal que usa vêm de uma mina de Loulé, onde existe uma jazida de 17 quilómetros a 250 metros de profundidade. E o mais interessante é que, além das placas rosa, há também de outras tonalidades, do branco ao mais amarelado, que resultam do tipo de rocha que deu origem a mineralização. A grande vantagem é que, consoante a cor, variam também os sabores que transmitem aos alimentos, permitindo múltiplos tipos de harmonização.

Recorrendo a produtos simples e ligados à tradição, também o chef Jerónimo Ferreira, do Porto Sheraton, levou a surpresa à mesa com os seus "carabineiros do Algarve", acompanhados por "sauté com os seus sucos, risotto de cevadinha, percebes e microverdes". Os grãos da cevada que ainda se cultiva em zonas do interior das Beiras e de Trás-os-Montes e os queijos, Ilha e da Beira Baixa, deram ligação e sabor.

Muito interessante também a combinação apresentada por Albano Lourenço. O chef da Quinta das Lágrimas recorreu à típica morcela beirã num prato de vieira, que combinou também com pimento vermelho, funcho e molho de vitela. Além da evidência de sabores, um empratamento elegante a dar evidência ao conjunto.

Regista-se igualmente o cada vez maior empenho do irrequieto Hans Neuner na recriação (e enriquecimento) de alguns dos mais simbólicos cozinhados nacionais. O chef do algarvio Ocean, com duas estrelas Michelin, apresentou no Yeatman uma requintada "cataplana de vieiras, lulas e percebes", depois da feijoada que tinha já reinventado para o encontro da Madeira. Igualmente a remeter para a tradição a "vitela mirandesa, com dome de batata e queijo Terrincho, esparregado de salsa, foie gras e trufa de Verão", preparado pelo mediático chef do restaurante Feitoria, José Cordeiro.

A equipa Yeatman

Da Madeira, o chef do Il Gallo d"Oro touxe a ginja que acompanhou o sofisticado "diamante de foie gras com cereja", e do mesmo nível de requinte a "salada de lavagante da nossa costa" preparada por Miguel Vieira, o jovem chef português que conquistou para a Hungria a primeira estrela Michelin.

O ambiente festivo criado no Yeatman tinha como alvo natural o chef da casa e a proeza de ao fim de um ano apenas ter conquistado a ambicionada estrela. Coisa que, diga-se, tinha já acontecido na anterior passagem pela Casa da Calçada, em Amarante. Fiel ao estilo sóbrio e contido que o caracteriza, Ricardo Costa quis, no entanto, partilhar o palco com a sua equipa.

José Bastos, o chef pasteleiro de quem parece inseparável, mostrou a sua genialidade com umas deliciosas "cerejas em diferentes texturas e combinações", que incluíam lasanha doce, parfait, sorvete, merengue e até, imagine-se, um pouco de pão... feito com cerejas. A jovem Carla Patrícia exibiu o seu talento culinário com um escabeche de atum que emparelhou com tentáculos de choco em tempura e lâminas de rábano, enquanto João Oliveira proporcionava uma espécie de festival de sabores com o seu "rascaço dos Açores", que compôs com assado de beringela, gratinado de legumes e um molho de fígados.

Ricardo Costa, que cozinhou nos dois dias, apresentou primeiro o "boi nacional", o rabo de boi esfiado que tinha preparado no Vila Joya na última edição do Tributo a Cláudia e que conquistou o paladar dos colegas. É cozinhado lentamente e depois lacado, acompanhando com cogumelos chanterelle e molho wasabi. Para a segunda noite o "cherne com crosta de tomate, lula recheada, polenta cremosa e molho de crustáceos e caril".

Num encontro marcado pelo ambiente de festa, convívio e partilha, o chef do Yeatman quis ter consigo uma espécie de grupo de amigos. Além dos jovens estrelados, fez questão de ter à sua volta aqueles que mais marcaram a sua aprendizagem e evolução. Para além da envolvência colectiva, esta Rota das Estrelas acabou por ser também uma espécie de ritual de consagração para Ricardo Costa. E embora na corporação dos fogões não haja ainda rituais de doutoramento, há um dito nos meios académicos que parece ter aqui plena aplicação. É o de que os grandes mestres não são aqueles que se destacam entre os seus pares, mas também os que conseguem fazer discípulos melhores do que eles.

As escolhas de Beatriz Machado

Como nem só da cozinha se faz a equipa do Yeatman, há que dizer que também outra das estrelas da casa brilhou a grande altura. Beatriz Machado, a directora de vinhos, harmonizou todos os pratos com escolhas que, diríamos, foram absolutamente insuperáveis. Vinhos quase comuns, todos nacionais e com uma grande capacidade de surpreender. Numa só palavra: competência.

Para que não restem dúvidas, aqui fica a lista dos vinhos servidos: Alvarinho Soalheiro Bruto 2010; Murganheira Extrême de Pinot Blanc 2005; Casa Ermelinda de Freitas Sauvignon Blanc

Verdelho 2010; Quinta de Sant" Ana Verdelho 2010; Quinta do Ameal Escolha 2009; Casa Capitão Mor Alvarinho Reserva Magnum 2010; Ravasqueira Flavours Viogner 2010; Gloria Reynolds 2009; Oboé Reserva Magnum 2010; Vale da Mata Reserva 2008; Quinta do Castro Reserva Vinhas Velhas Jeroboam 2007.

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