O voto do queijo limiano

Daniel Campelo tem 25 anos de dedicação ao CDS-PP e é o presidente da Câmara de Ponte de Lima, um dos raros concelhos do Norte onde a paisagem urbana não foi ainda devastada pela sinistra aliança entre construtores civis e autarcas a que Portugal deve hoje - depois de 25 anos de poder local - o facto de ser um dos países mais feios a desordenados do mundo, a nível urbano. Manifestamente, algum mérito há-de ter nisso o presidente da Câmara de Ponte de Lima.O problema é quando Daniel Campelo, o mesmíssimo, veste episodicamente a sua outra pele de deputado e desce a Lisboa, não para representar os interesses da nação, mas os interesses dos seus munícipes de Ponte de Lima. Sucedeu isso já na sua mediática "greve de fome" em defesa do queijo limiano - uma causa simpática, eventualmente justa, mas que, obviamente, nada teve que ver com o mandato de deputado a que concorreu. Diz a Constituição, para que dúvidas não hajam, que os deputados o são da nação e não do círculo eleitoral ou da região pela qual foram eleitos.Terminado, porém, o episódio do queijo limiano, o deputado Daniel Campelo desapareceu, honrosamente caído em combate, e ressuscitou, como que por magia, o autarca Daniel Campelo, que, aliás, tanta falta faz a Ponte de Lima. Eis a segunda situação aberrante, no estatuto dos nossos deputados: a destes deputados-autarcas, que ora são uma ou outra coisa, ao sabor das conveniências partidárias, dos interesses locais ou da sua própria conveniência pessoal. Não são os únicos, aliás: também temos os deputados-governantes, os deputados-chefes de gabinete ou os deputados-gestores públicos. O seu estatuto de salta-pocinhas da política é uma das decisivas causas do desprestígio de que hoje gozam os deputados e o próprio Parlamento. Esta faculdade que têm, e de que abusam, de só se sentarem no Parlamento quando lhes convém ou quando não têm melhor poiso para ocupar diz tudo sobre o respeito que lhes merece a instituição parlamentar e o mandato que os eleitores lhes confiaram. Mas é assim o sistema, pacificamente aceite e praticado por todos os partidos, dos pequenos aos grandes e da direita à extrema-esquerda, sem qualquer distinção de princípios ou valores políticos. Na verdade, nós não votamos em deputados, votamos sim em partidos e por isso é que os deputados são na prática propriedade dos partidos e logo, na melhor das hipóteses, olimpicamente ignorados pelos eleitores. Assim, aberto o precedente, Daniel Campelo vai novamente despir a sua pele de presidente de câmara durante o fim-de-semana, para reaparecer terça-feira como deputado em S. Bento. E o que o traz de Ponte de Lima a Lisboa, desta vez? O desejo de votar o Orçamento do Estado - ao lado do Governo e contra o seu partido de sempre. A bem da nação, de acordo com a sua consciência de deputado? Não, a bem de Ponte de Lima e de acordo com o seu estatuto de autarca. Porque, em troca da sua deslocação a Lisboa, Daniel Campelo negociou com o Governo a satisfação de um caderno reivindicativo a favor do seu concelho e do seu distrito, incluindo coisas tão concretas como a construção de uma fábrica. Ou seja, para todos os efeitos práticos, políticos e éticos, o Governo comprou ou prepara-se para comprar o voto do ocasional deputado Daniel Campelo. Pense-se o que se pensar dos méritos deste Orçamento, pense-se o que se pensar da eventual justiça das reivindicações do autarca de Ponte de Lima, o problema é o precedente: há cerca de 20 deputados, creio eu, nas mesmas circunstâncias de Daniel Campelo, de serem simultânea ou alternadamente presidentes de câmara. Desta vez, o Governo apenas precisou de negociar com um deles, porque apenas precisou de um voto. Mas, para o ano e nos anos seguintes, pode ser que precise de mais ou, mesmo continuando a precisar apenas de um, é provável e lógico que, com base neste precedente, se abra anualmente um leilão entre o Governo e todos os autarcas-deputados da oposição. Quem melhor vender o seu voto, levará obras e investimentos do Estado para o seu concelho - com os quais, aliás, terá meio caminho andado para assegurar a sua reeleição local. Talvez agora os arautos da falhada regionalização percebam melhor um dos perigos que lhe eram apontados pelos seus críticos e que era justamente o de termos um país em que a gestão das finanças públicas ficasse ao sabor do desfecho de leilões anuais entre o Governo da República e os interesses locais.A pergunta que se coloca é a de saber se este tipo de tratação é normal em política ou se se trata de um exemplo de baixa política. Não faltam os exemplos estrangeiros de todo o tipo de acordos por baixo da mesa entre governos e deputados da oposição, quando se trata de votações decisivas para o Governo. Por todos, vale o exemplo do actual Presidente do Brasil, que "comprou", com benefícios de toda a espécie e a maioria pessoais, o voto de deputados da oposição a favor da emenda constitucional que lhe permitiu reeleger-se para um novo mandato. Mas com o mal dos outros podemos nós bem. O facto é que o artigo 152º da Constituição diz taxativamente que os deputados representam a nação como um todo e não a sua paróquia, o facto é que um Orçamento estabelece a política económica e financeira do Governo para um ano e deve ser votado em conformidade com o juízo que se faça sobre essa política e não de acordo com negociações de vão de escada sobre matérias que estão fora do Orçamento. O facto, finalmente, é que pessoas sérias, na sua vida pessoal ou profissional, não fazem acordos destes. E não sei porquê que nos haveremos de conformar com duas noções de seriedade: uma para a vida civil e outra para a vida política.P.S. - Devo as minhas desculpas a Paulo Portas, que ontem, em resposta a uma pergunta da Antena 1, considerei possível que tivesse sido parte deste enredo. Ele jura que não e eu não tenho por que duvidar.

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