Cartas anónimas: uma perspectiva jurídica

1. O ano de 2004 iniciou-se sob o tema das cartas anónimas e do seu uso em processos criminais. A comunicação social despoletou o tema, a opinião pública acalorou-se, os debates intensificaram-se e as opiniões dividiram-se sem que tenha sido efectuado um adequado enquadramento jurídico da questão.O objectivo deste artigo é, pois, o de situar o problema exclusivamente no domínio jurídico, surpreendendo as respostas que o nosso sistema jurídico oferece sobre o tema, deixando ao leitor a formulação do seu juízo quanto às concretas situações noticiadas.A abordagem considerará dois planos de análise: por uma lado, as denúncias anónimas enquanto fundamento para instaurar processo criminal; por outro lado, as denúncias anónimas como meio de prova.2. O Código do Processo Penal (CPP) estabelece que o Ministério Público (MP) adquire notícia do crime, por qualquer das formas nele previstas, quais sejam: o conhecimento próprio, através dos órgãos de polícia criminal, ou mediante denúncia.Quanto a estas formas típicas, importa atender à última, em face da íntima ligação com a problemática em apreço.Aquele diploma dispõe (artigo 246.º) que a denúncia pode ser feita verbalmente ou por escrito, não está sujeita a formalidades especiais, conterá a descrição dos factos e as circunstâncias de tempo, lugar e modo em que ocorreram e os meios de prova, e é assinada pelo denunciante, devidamente identificado.A denúncia que reúna estas formalidades e o conteúdo referido na lei é uma declaração que vale como meio de aquisição da notícia do crime, integrando-se como acto do processo e constituindo-se o Ministério Público no dever de mover o procedimento.Estas são as situações normais. 3. Mas há casos em que é dado conhecimento de factos com vocação penal ao MP e, apesar disso, o instrumento usado para o transmitir não se conforma à previsão da norma processual. Estão neste caso as notícias veiculadas pela imprensa, os rumores públicos, as denúncias anónimas, sob pseudónimo, etc., as quais, pelo seu conteúdo e credibilidade, podem dar por adquirida a suspeita da prática de crime. O Código não regula directamente a situação, mas oferece indicações que se têm por assentes pela doutrina, pela jurisprudência e pela prática judiciária.Perante tais situações o Ministério Público avalia da credibilidade dos factos que lhe são feitos chegar, decidindo-se pela abertura de inquérito se reputar credíveis da suspeita da prática de crime os factos narrados. Os Autores convergem neste sentido, referindo - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, 1994, pág. 46 - que a notícia anónima "pode não lhe merecer [ao MP] qualquer credibilidade, mas pode também suceder que em razão das características da notícia, ainda que anónima, se justifique uma actividade preliminar do processo, ainda que de natureza policial, no sentido de apurar de eventual existência de indícios." Na avaliação a que tem de proceder, o Ministério Público atenderá ao disposto na lei (artigo 127.º do Código), actuando com pressupostos valorativos, quais sejam os critérios da experiência comum e a lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Referem também os Autores que a consideração destes critérios conferem algum grau de discricionariedade ao agente, mas repudiam a ideia de arbítrio na formulação da convicção.4. Em sistemas jurídicos que nos são próximos não é pacífica a aceitação de denúncia anónima como meio de aquisição da notícia do crime. Em Espanha, a inadmissibilidade da denúncia anónima por falta de requisitos formais, não significa a sua ineficácia. Não vale como denúncia mas, na medida em que transmite ao julgador a "noticia criminis", não só consente como obriga a instauração oficiosa do processo.Em Itália, o CPP, que é muito próximo do nosso mas neste aspecto dele se aparta, prescreve que da denúncia anónima não se pode fazer uso algum, com ressalva dos documentos anónimos que constituam elemento do crime ou que provenham do arguido. No entanto, apesar da formulação expressa e aparentemente inequívoca, discute-se: se a denúncia anónima pode ser considerada noticia do crime; na afirmativa, se faz surgir no Ministério Público o dever de determinar a abertura de processo; e se o seu conteúdo pode ser utilizado indirectamente no processo. Sobre estas questões as posições divergem, surpreendendo-se três correntes de opinião: uma sustenta que a denúncia anónima não pode ser usada por ninguém, nem pelos órgãos de polícia criminal; outra corrente entende que é possível a remessa da denúncia anónima aos órgãos de polícia criminal para comprovação da suspeita e constituição do Ministério Público no dever de abrir inquérito; e, por último, uma terceira corrente acredita que, se é verdade que a denúncia não faz nascer para o MP o dever de instaurar inquérito, aquele pode fazê-lo sempre que, valorando-a, estime adquirida a notícia do crime.5. A inexistência na legislação portuguesa de norma expressa semelhante à do CPP italiano parece dar por adquirida a ideia de que uma denúncia anónima pode ser fonte de notícia de crime, desde que o MP, socorrendo-se dos critérios previstos na lei atribua o valor de notícia aos factos que nela se descrevem. Essa tem sido a prática incontestada dos tribunais.Aliás, quanto a certo tipo de criminalidade - corrupção, peculato e participação económica em negócio, fraude na obtenção ou desvio de subsídio, etc. -, a denúncia anónima pode ser fundamento para recolha de informações destinadas a sustentar as suspeitas do perigo da prática de crime, como expressamente se prevê no n.º 3 do artigo 1.º da Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro.Também no âmbito dos crimes relativos a estupefacientes são frequentes os casos de abertura de inquérito decorrentes de factos de que o MP teve conhecimento através de fonte anónima. 6. Interrogação que também se pode suscitar é a de saber qual a posição a adoptar quando, iniciado um processo, ainda assim continuam a ser recebidas denúncias sobre os mesmos factos, sobre factos conexos ou sobre outros factos da mesma natureza, mas com diferentes sujeitos. Neste último caso, se da avaliação que o MP fizer do seu conteúdo concluir pela aquisição de notícia de crime, determinará a abertura de processo, mas não a juntará àquele que se encontra a correr termos, por com ele não ter qualquer ligação, nem servir como meio de prova; nas duas outras situações, emergindo delas factos ou elementos circunstanciais que se admita possam vir a ter interesse para a investigação do crime, nada obsta à sua junção ao processo. Verificando-se, afinal, que a junção do escrito se revelou irrelevante para a investigação e que ele constitui ofensa à reserva da vida privada, a lei consente o seu desentranhamento, e mesmo a destruição, o que deverá ficar documentado no processo.7. Importa, por último, considerar se as denúncias anónimas podem ser meios de prova em processo criminal, isto é, se podem ser usadas para servir de prova do crime. Neste âmbito, o CPP (artigo 164.º) veda a junção ao processo de documento que contenha declaração anónima, salvo se for ele mesmo objecto ou elemento do crime. Compreende-se a distinção, nas situações analisadas estamos na fase inicial do processo, no momento da denúncia na qual se narra o facto criminoso; aqui, trata-se da prova documental em sede de inquérito, meio de comprovação dos factos noticiados.Sendo junta ao processo carta anónima que o não devia ter sido estar-se-á em presença de simples irregularidade, que se sanará se não suscitada em tempo, nos termos previstos na lei.8. É no quadro normativo acabado de descrever que se encontra o regime das cartas anónimas. Que, pelo simples facto de serem anónimas, as autoridades que as recebem não as poderão simplesmente destruir, afigura-se ser um facto adquirido. O destino que lhes deverão dar afigura-se bem menos linear. Para a tomada dessa decisão, os titulares da investigação criminal têm de socorrer-se dos critérios legais enunciados, numa missão que nem sempre será fácil pela dimensão, conteúdo e credibilidade dos factos narrados e dos sujeitos envolvidos.Nessa como noutras decisões, o respeito pela lei e pela legalidade é da essência das magistraturas, às quais se encontram vinculadas.

Sugerir correcção