O regime explicado às crianças

A mãe que cuida da casa e cria os filhos "no amor de Deus e da Pátria". E o Estado. E os pobrezinhos. Os temas dos manuais escolares mudaram pouco ao longo dos 40 anos de ditadura. "Ler, escrever e contar", tal como "exercer as virtudes morais e um vivo amor a Portugal", eram as palavras de ordem no tempo em que se achava que os professores primários não deviam ser demasiado doutos. O PÚBLICO falou com autores do "antes" e do "depois" de Abril.

Únicos e inspirados no regime fascista de Mussolini. Os livros da primeira, segunda, terceira e quarta classes nasceram de uma suposta falta de patriotismo por parte dos escritores portugueses. Em 1937 o Governo abriu um concurso para a elaboração dos manuais a partir dos quais todos os meninos deveriam estudar. Passados três anos, um decreto dá conta do fracasso da operação: "Foram recebidos bastantes originais, mas nenhum se julgou digno de ser aprovado."A tarefa acabou por ser entregue a uma comissão de técnicos e os livros escolares italianos foram a sua fonte de inspiração, como relata Rómulo de Carvalho em "História do Ensino em Portugal" , publicado pela Fundação Gulbenkian, em 1986.O problema foi, pois, ultrapassado. Na escola, onde as turmas cantavam em uníssono os nomes dos rios e dos reis, com fotografias de Salazar penduradas por cima do quadro, ao lado do crucifixo, onde meninos e meninas estavam em classes separadas, os textos com que se aprendia a ler tinham temas e personagens bem definidos: a mãe, que "cuida dos arranjos da casa" e cria os filhos "no amor de Deus e da Pátria" num lar "que deve em tudo mostrar alegria". Mas também o Estado, "que coordena e assegura o livre exercício de todas as actividades necessárias à vida da Nação"; a "sabedoria popular" em forma de provérbios; e Deus, em perguntas e respostas sobre doutrina cristã [as citações foram retiradas de textos do "Livro da Segunda Classe", 1958].A escola ensinava a "ler, escrever e contar e a exercer as virtudes morais e um vivo amor a Portugal", segundo o Decreto-Lei de 24 de Novembro de 1936, que introduziu alterações de urgência no currículo do ensino primário obrigatório, então limitado a três anos.Na "História do Ensino em Portugal", a compilação do "Diário das Sessões" da Assembleia Nacional - que relata o debate em torno da proposta do Governo para a reforma do ensino - levanta o véu sobre a filosofia no final da década de 30: os professores primários são alvo de "respeito e medo". "Fazer o ensino primário por meio de agentes altamente intelectualizados tem inconvenientes gravíssimos." Por outro lado, o "ensinamento de coisas abstractas" é considerado inútil: "Rapaz que fique distinto na escola primária é rapaz perdido para a família."A reforma não passou ao lado do ensino liceal, também ele integrado "na missão educativa da família e do Estado". Nas diferentes disciplinas alimentava-se o culto dos heróis e da exaltação patriótica, a prática das virtudes cristãs. A começar pela História. Nos livros de António G. Mattoso as imagens não surgem como documentos para explorar e os textos não deixam espaço para a interpretação. Servem para serem debitados, explica Maria Luísa Guerra, autora de quase meia centena de manuais de História e Filosofia, antes e depois de 1974. Mas não é apenas nos manuais de História que se falava do regime. O ensino da literatura e a ideologia andam de mãos dadas. "Não se cultivava a sensibilidade, nem a criatividade dos alunos", explica Lilás Carriço, autora de diversos manuais para o liceu. "António Nóvoa era o último autor do programa, porque a partir daí começava a existir a chamada literatura política e social. Escolhia-se temas como o colonialismo ou a religião e pouco mais."É o que acontece em "Meu Portugal, minha terra - 2º ano" (Beatriz Mendes Paula e Maria Alice Gouveia, 1965), que inaugura as suas páginas com o poema "Legenda" de António Botto ("Ó Pátria mil vezes Santa"). Também é o caso do "Livro de leitura - 2º ano" (1953), em que o primeiro texto é um excerto do "Porque me orgulho de ser português", de Albino Sampaio.Já Catarina Peralta, autora de manuais escolares de ciências e professora desde 1943, defende que, pelo menos na sua área, o 25 de Abril não trouxe uma revolução. Apenas alterações pontuais: temas como a reprodução humana passam a ser leccionados nos primeiros anos de liceu, quando até aí só eram abordados nos últimos.Os anos que se seguem à reforma de 1938 são marcados por sucessivas alterações aos programas, avanços e retrocessos na anunciada modernização do sistema educativo de um país com altas taxas de analfabetismo, apesar de o ministro Pires de Lima defender que estas têm a ver, sobretudo, com a "riqueza intuitiva" do povo português que o leva a não "sentir necessidade de saber ler".Em 1955, com Francisco Leite Pinto - o ministro que quis retirar de um manual escolar da primeira classe o texto que contava a história de um menino que dava um prato de sopa a um pobrezinho sob o olhar embevecido da mãe -, a quarta classe passou a ser o limite da escolaridade obrigatória. Mas o elogio da pobreza permaneceu No entanto, havia quem estivesse insatisfeito e tentasse inovar. No Liceu Nacional de Oeiras, o professor Eduardo Bossa e um grupo de alunos, elaboraram em 1965 um "Manual de História Geral da Civilização". Partidários de uma "educação nova", onde quem deve trabalhar é o aluno e não o mestre, sentiam que o livro de Mattoso não os preparava convenientemente para o ensino superior.Um ano depois cessa o regime de livro único e dá-se uma "verdadeira revolução pedagógica", como classifica Adriano Vasco Rodrigues, autor de manuais. Na área da História, surgem Fernanda Espinosa ou Fins do Lago, novos nomes no "mercado" que evitam politizar os seus textos. "Não eram livros conotados com o regime", considera Arlindo Caldeira, professor e autor de manuais no pós-25 de Abril. Apesar de os programas terem um "carácter político-formativo muito forte", como acrescenta Adriano Rodrigues.A partir de 1970 volta a ser necessário pedir ao Ministério da Educação Nacional autorização para publicar manuais. Os autores enviavam os seus livros, que são sujeitos a relatores. A inscrição "autorizado oficialmente para o quinquénio de 70/71 a 74/75" era o carimbo que definia o livro autorizado. Por pouco tempo.

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