O braço empresarial de José Eduardo dos Santos

Saber o que pensa de Angola e do mundo este indefectível do Presidente é um exercício de adivinhação. Elogiado como gestor, rosto da internacionalização da Sonangol, é associado a abusos da cúpula angolana, com "negociatas que não distinguem entre património público e interesse privado".

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Manuel Vicente em Lisboa com Faria de Oliveira, CEO da CGD, em 2009 HUGO CORREIA/REUTERS

Discreto, reservado, expansivo entre amigos, Manuel Domingos Vicente, o homem que tem sido apontado como provável sucessor de José Eduardo dos Santos, membro do círculo mais próximo do Presidente, alvo de denúncias de "enriquecimento ilícito", é um desconhecido para a generalidade dos angolanos. Poucos têm dele uma imagem que não seja a de rosto da Sonangol, a empresa que há muito extravasou a área dos petróleos e é um Estado dentro do Estado.

Mesmo nos meios políticos e jornalísticos de Luanda, é difícil encontrar quem conheça bem, e queira falar, de um homem que o Presidente agora chamou para ministro de Estado e da Coordenação Económica, no que foi visto como sinal de que pode ser ele o eleito do chefe de Estado africano há mais tempo no poder para a sua sucessão. As intervenções públicas de Vicente, que tem ocupado posições de relevo nas empresas portuguesas Galp e BCP, raramente vão além do guião dos negócios da Sonangol (Sociedade Nacional de Combustível de Angola), que formalmente deixou de liderar mas continua a tutelar pela natureza das novas funções, de que tomou posse na quinta-feira passada.

Saber o que pensa do país e como vê o mundo este "indefectível" de Eduardo dos Santos é um exercício de adivinhação. Há quem esteja há anos à espera de uma oportunidade para conseguir uma entrevista ao engenheiro electrotécnico de 55 anos, convertido em gestor. "É um homem que politicamente não fala em público e nesse aspecto é muito parecido com o Presidente da República. Conhecem-se-lhe apenas acções a nível da Sonangol, mas sabe-se muito pouco qual é a sua estratégia. Não se conhece qual o pensamento de Manuel Vicente", afirma o jornalista e activista Rafael Marques.

Só quando for conhecida a lista do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) às eleições gerais deste ano, em que o cabeça de lista do partido mais votado é eleito Presidente da República, se perceberá melhor qual o papel que Eduardo dos Santos reserva para Vicente. E para si próprio. Para já, cabe-lhe coadjuvar o Presidente na formulação, coordenação, execução e controlo da política económica, o que o torna o ministro com mais peso no executivo. A indicação como número dois seria um sinal da vontade de fazer dele o sucessor.

Observadores como o jornalista angolano Mário Paiva consideram que é preciso ir devagar, que a substituição de Eduardo dos Santos, Presidente desde 1979, "não vai acontecer de imediato". "Pode mesmo ser daqui a dez anos", acrescenta. A nomeação de Vicente mostra, em todo o caso, que o Presidente quer ter por perto e dar força política a alguém que já detinha "poder real" em Angola, mas tem anticorpos não só nos sectores críticos da sociedade angolana - Rafael Marques, paladino na denúncia de abusos da cúpula político-militar, insere-o no grupo de altas figuras envolvidas em "negócios ilícitos" - como no seio do MPLA, onde, segundo a imprensa angolana, sem ousarem questionar o Presidente, muitos fazem reparos ao seu pequeno conhecimento do partido e à falta de experiência política. Terá sido precisamente para vencer essas resistências que Eduardo dos Santos o chamou em 2009 ao bureau político e, agora, ao Governo.

Paixão pelo futebol

Nascido em Maio de 1956, em Luanda, Manuel Domingos Vicente tornou-se conhecido nos meios empresariais e financeiros internacionais numa área que pouco tem a ver com a formação que obteve na Universidade Agostinho Neto. Os curtos currículos oficiais indicam que aos 25 anos ocupou o cargo de engenheiro-chefe da divisão de projectos de sistemas de transmissão da Sonefe, empresa distribuidora de electricidade, onde ficou entre 1981 e 1987. Da Sonefe passou ao gabinete técnico do então Ministério de Energia e Petróleo, onde permaneceu como responsável durante quatro anos.

Em 1991 dá um passo decisivo na carreira profissional ao ascender a director-geral adjunto da Sonangol. Nesse ano começa a frequentar acções de formação na área petrolífera, através da consultora Arthur D. Little e da Oil & Gas Consultants International (OGCI), que o levarão a Inglaterra, aos Estados Unidos e ao Canadá. A última formação que lhe é conhecida, dedicada à tomada de decisões financeiras na indústria petrolífera, ocorre na capital londrina em 1998.

No ano seguinte o homem que se sabe ser apaixonado por futebol, que chegou a praticar como amador no Benfica de Luanda, é nomeado presidente da Sonangol. O cargo tem fortes implicações políticas, já que a empresa, que após o fim da guerra, em 2002, acelerou o crescimento, quer interna, quer externamente , é a principal fonte de receitas do Estado e do país. Além do petróleo, a sua influência estende-se a sectores como a banca, a aviação, as telecomunicações e o imobiliário. "Há um antes e um depois de Manuel Vicente na Sonangol", comenta Carlos Rosado Carvalho, director do semanário angolano Expansão.

Quando, há alguns anos, foi questionado sobre como chegara um engenheiro electrotécnico, que também foi professor, à liderança da maior empresa do país, Manuel Vicente apresentou o seu trajecto quase como uma inevitabilidade. "Cabe à nossa geração resolver os problemas do país e é por isso que aceitamos responsabilidades em idades muito jovens. Há falta de qualificações. Os poucos de nós que tiveram educação e [acesso ao] conhecimento não tiveram escolha que não fosse aceitar o desafio de dirigir o país", disse ao siteWorld Investment News.

Proximidade vem de longe

As escassas descrições que o PÚBLICO conseguiu retratam o novo ministro como um homem reservado, comedido, pouco expansivo. Um gestor de topo da Galp confirma esse carácter. É "muito discreto", disse. Victor Silva, director do semanário angolano Novo Jornal, publicação que, no ano passado, avançou com a hipótese de ser ele o número dois na lista do MPLA, vai um pouco mais longe. "Tenta ser o mais discreto possível. É afável, de trato fácil, gosta de estar com os amigos, de conversar, às vezes diz que não consegue levar uma vida normal. É perfeitamente acessível." A informalidade é também um traço que o jornalista associa a Manuel Vicente, a quem viu em contactos com banqueiros e empresários.

Filomeno Vieira Lopes, economista, quadro da Sonangol e dirigente do partido de oposição Bloco Democrático, é parco em comentários sobre o seu antigo presidente, com quem diz ter-se cruzado não mais do que "três ou quatro vezes nos últimos 20 anos". Fala do "afastamento de todos os que não são da mesma cor política", mas não considera essa uma especificidade da gestão de Vicente, antes uma característica da gestão pública em Angola.

Casado, com filhos, o novo ministro de Estado tem casa no bairro de Alvalade, um dos mais chiques da capital angolana. A internacionalização da Sonangol - na prática, tem funcionado como fundo soberano do país, tendo Vicente já afirmado que uma das razões pelas quais se tem vindo a internacionalizar "é porque isso faz parte da política do Governo" - levou-o a passar muito do seu tempo dos últimos anos fora. Um dos destinos e paragens frequentes tem sido Portugal, onde a empresa e ele próprio têm interesses. Nos últimos anos, o Hotel Ritz, em Lisboa, foi frequentemente o seu escritório oficioso. No ano passado, o Jornal de Negócios colocou este "desconhecido famoso", como lhe chamou, em 39.º lugar na sua lista dos Mais Poderosos da Economia Portuguesa.

O braço financeiro de José Eduardo dos Santos e do regime é membro do conselho de administração da Galp desde Setembro de 2006, devido à entrada indirecta da Sonangol no capital da empresa, onde detém, via Amorim Energia, 9,5%, a que se somam 5,5% de Isabel dos Santos, filha do Presidente. Em 2007, a petrolífera fez crescer a sua influência em Portugal com a entrada no BCP, de que é o maior accionista, assumindo papel preponderante na estratégia da instituição financeira. Vicente tornou-se vice-presidente do conselho geral e de supervisão, organismo que congrega os representantes dos principais accionistas do banco, cargo em que se manteve até há uma semana, quando renunciou, devido às novas funções.

Manuel Vicente ocupa ainda, entre outros cargos, a presidência da assembleia geral da Unitel, operadora angolana de telemóveis que conta entre os accionistas a PT e Isabel dos Santos. É administrador do angolano Banco Africano de Investimentos (BAI, onde a Sonangol é accionista), presente em Portugal, e está ligado ao grupo de investimentos norte-americano Carlyle. Vicente tem também investimentos pessoais em Portugal - chegou a deter uma posição de 4,9% no banco BIG. No entanto, em Maio de 2010, onde antes constava o seu nome, enquanto detentor a título individual de acções, passou a estar a Edimo, que hoje detém 4,62% do banco e tem ligações ao seu enteado, Mirco Martins. Especula-se que o agora ministro investiu também em imobiliário.

A confiança política e pessoal do Presidente vem de há muito - três anos antes da ascensão ao topo da petrolífera estatal angolana, em 1986, foi nomeado vice-presidente da Fesa, Fundação Eduardo dos Santos. Nos negócios, o seu nome surge frequentemente associado à família do chefe do Estado. Essa proximidade pesou no seu percurso e permitiu-lhe acumular prestígio em meios empresariais externos. Um empresário português que com ele lidou afirma que se trata de um homem "inteligente". É um "bom negociador, duro", com "competência técnica e negocial reconhecida", considera Victor Silva.

Rui Falcão, figura de uma ala mais jovem do MPLA, não lhe regateou elogios numa entrevista que, em Setembro, deu ao Novo Jornal. "É um quadro de excelência, é dos melhores em África e no mundo na negociação de petróleos e na gestão de empresas. É um gestor de primeira água, tem dado baile até na Europa. É uma pessoa humilde, sincera, aberta. É uma pessoa com todas as qualidades para o exercício da função de Presidente", disse.

Um olhar bem diferente sobre o trajecto e as práticas de Manuel Vicente é o de Rafael Marques. "As suas negociatas não distinguem entre o património público e o interesse privado. Essa promiscuidade tem garantido a transferência de milhões de dólares, em termos de bens públicos, para as suas iniciativas privadas", escreveu em Julho de 2010 no blogue Maka Angola.

O activista, que já este ano apresentou uma queixa-crime contra três elementos da cúpula angolana, por "enriquecimento ilícito" - além de Vicente visou o também ministro de Estado Manuel Hélder Vieira Dias Júnior, "Kopelipa", e o chefe de Comunicações da Presidência, general Leopoldino Fragoso do Nascimento, "Dino"-, considera o possível sucessor de José Eduardo dos Santos um representante das "estruturas paralelas de poder" externas ao Governo, ao MPLA e a outros órgãos de soberania mantidas por Eduardo dos Santos.

Antes de ser chamado para ministro, os poderes do presidente do conselho de administração da Sonangol "ridicularizavam os atribuídos ao vice-presidente da República, Fernando da Piedade Dias dos Santos, que constitucionalmente poderia ser o sucessor de José Eduardo dos Santos", escreveu Rafael Marques há dias, num texto sobre o poder e sucessão em Angola.

Há cerca de um ano, Manuel Vicente disse que não podia "defraudar" quem o tinha colocado no bureau político do partido. Em breve vai perceber-se se isso significa, como tem sido interpretado, ser formalmente o número dois de Eduardo dos Santos ou algo mais. com Luís Villalobos

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