Em Portugal só se discute a floresta quando ela arde

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Incêndios em São Pedro do Sul, na primeira quinzena de Agosto MANUEL ROBERTO

Após quatro anos de acalmia, os grandes fogos florestais regressaram. Por entre mitos e verdades, o PÚBLICO foi à procura das causas e consequências deste flagelo

Um final de Julho e duas semanas do início de Agosto especialmente quentes e secas foram o suficiente para que o fogo voltasse a devorar importantes áreas da floresta portuguesa e para que o debate sobre o velho drama do Verão se incendiasse. Como habitualmente, as responsabilidades pela destruição de mais de 70 mil hectares de povoamentos florestais e de matos até 15 de Agosto foram atribuídas aos suspeitos do costume: aos madeireiros, aos proprietários absentistas, aos criminosos de delito comum e até, em casos mais raros, à alegada incompetência dos comandantes de bombeiros. Num palco dominado pelo ministro da Administração Interna, o congénere da Agricultura fez a sua aparição ocasional para advertir que o Governo estudava a possibilidade de intervencionar as explorações florestais abandonadas.

Onde está a razão neste debate, onde começam os mitos e acaba a realidade é uma equação para a qual nunca haverá uma resposta definitiva. No balanço até agora, o que é facto é que muitas das acusações, mesmo divergentes, lançadas por silvicultores, geógrafos, bombeiros, polícias ou ambientalistas fazem sentido. Porque é verdade que a falta de gestão da maior parte das explorações florestais permite a acumulação de material combustível que, em dias mais quentes e secos, torna as chamas incontroláveis; está provado que o abandono das zonas rurais e o fim do pastoreio tradicional alterou as regras do ancestral equilíbrio nas florestas, tornando-as vulneráveis aos incêndios; é verdade também que, apesar de o novo dispositivo de ataque aos fogos mostrar sinais de maior eficácia, os meios aéreos e humanos em acção só podem dar uma resposta a 200 ou 250 incêndios por dia, quando este Verão o número de ocorrências chegou a ultrapassar as 500; é certo que uma fatia importante dos fogos tem mão humana e criminosa, como o atesta o facto de 38 por cento das ignições acontecerem durante a noite; finalmente, é verdade que, como dizem os ambientalistas, a falta de ordenamento florestal está na origem dos grandes incêndios que, como este ano aconteceu no Soajo ou em São Pedro do Sul, podem devorar ao longo de dias milhares de hectares, o que plantações alternadas de folhosas e resinosas poderiam impedir (os especialistas notam que há uma pausa na "adaptação" das chamas quando há uma transição entre espécies).

O problema maior da floresta portuguesa, porém, não resulta da falta de discussão pública, de saber técnico ou de experiência acumulada. Quando os fogos se tornaram um problema público e político, na primeira metade da década de 1990, a floresta mobilizou a opinião pública e, por arrastamento, os decisores. Foi à luz dessa preocupação que se aprovou em Agosto de 1996 uma Lei de Bases na qual se concentraram receitas e depositaram esperanças ou se lançou um Plano de Desenvolvimento Sustentável da Floresta. Mas passaram anos, quase uma década, até que aparecessem as primeiras leis regulamentares para cumprir a missão da lei-quadro. E para que os Planos Regionais de Ordenamento Florestal ou as Zonas de Intervenção Florestal vissem a luz do dia, foi necessário aguardar pelas calamidades de 2003 e de 2005. Entretanto, o corpo dos serviços florestais foi integrado na orgânica da Agricultura, burocratizou-se e perdeu a sua ancestral ligação à realidade da floresta; e com o Governo de José Sócrates a prioridade deixou de ser a gestão, a propriedade ou o ordenamento para dar lugar à criação de um dispositivo de combate mais eficaz.

Andámos pouco e devagar

Em 2006, 2007, 2008 e 2009 o registo dos fogos florestais pareceu dar razão a esta estratégia. Este ano constatou-se que, mesmo estando a área destruída ainda dentro dos objectivos traçados até 2012 (abaixo dos 100 mil hectares anuais), enquanto a floresta não tiver um dono, enquanto o país não for capaz de criar condições para multiplicar a gestão que se faz em zonas de intervenção florestal como a do vale do Sousa ou nos perímetros das empresas de celulose, a sorte da floresta continuará a depender dos caprichos do clima. Com o Estado incapaz de gerir as suas matas ou de cumprir a sua missão nos baldios, os melhores exemplos da gestão privada são, para muitos, a melhor garantia de que é possível travar o flagelo do fogo e aproveitar da melhor forma os recursos. Para que esta estratégia seja viável, é, no entanto, fundamental criar um cadastro florestal que identifique as propriedades e os seus donos e criar incentivos e penalizações fiscais que levem os proprietários a tratar das suas florestas ou, em caso de abandono, a vendê-las para não terem de pagar impostos. Em dois anos, criaram-se 127 Zonas de Intervenção Florestal que mobilizam proprietários, autarquias e técnicos. Sem incentivos suplementares, a maioria está ainda no papel, à espera de um empurrão para cumprir a sua missão ao nível da prevenção contra os fogos, da gestão e do negócio florestal.

Quase 30 anos depois de os fogos entrarem no centro das preocupações do país, verifica-se assim que se andou pouco e devagar. Seja ao nível da política, seja da economia, a aposta na floresta demora anos a gerar dividendos. Não há nada de espectacular num investimento em 300 hectares de sobreiros ou na criação de linhas corta-fogo numa serra perdida do interior. É mais vistoso, e mais imediato, comprar um Kamov do que financiar a recuperação de mil hectares de pinheiros. Os custos desta opção estão à vista. Ainda que os incêndios não tenham provocado uma grande razia na área florestal (em dez anos regrediu 62 mil hectares), há uma espécie importante que se transformou para já no símbolo da destruição: o pinheiro bravo. Entre 1995 e 2005/2006, data do último inventário florestal, a área de pinho reduziu-se 266 mil hectares. Ou seja, cerca de 30 por cento. E sem medidas de fundo, tudo indica que o pinhal continue a regredir. Pode haver mais um ano ou dois de relativo apaziguamento, mas, a prazo, a discussão de 30 anos sobre a incapacidade de o país aproveitar o seu mais importante recurso natural renovável continuará a regressar nos meses de Julho e Agosto.

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