Derrapagem de 108 milhões

O descontrolo dos gastos com obras públicas é já uma realidade histórica em Portugal. A JAE, ao contrário da Brisa, funcionou em regime de sistemático esbanjamento. A pressão para a moralização do sistema tornou-se insustentável, fosse qual fosse o governo. O PÚBLICO divulga a auditoria que inspirou o novo regime legislativo avançado por João Cravinho.

Entre 1993 e 1998 a Junta Autónoma de Estradas (JAE), principal entidade dona de obras públicas em Portugal, realizou 250 empreendimentos que corresponderam a um investimento global de 327 milhões de contos, mas que registaram uma derrapagem de custos na ordem dos 108 milhões de contos, o que representa 33 por cento do valor global dos contratos. O ano pré-eleitoral de 1994, com o fulgor cavaquista a entrar já em declínio, foi o que deu maior contribuição para a derrapagem na JAE, com um valor de 66 por cento a mais - só a construção de estradas, cerca de um terço do número de empreendimentos concretizados, chegou aos 72 por cento de sobrecustos. Estes valores foram apurados por uma auditoria, a que o PÚBLICO teve acesso, feita pela empresa de consultores Roland Berger, contratada pelo Ministério do Equipamento durante o consulado de João Cravinho para estudar a reorganização do sector das obras públicas.De 1994 em diante os valores de derrapagem foram descendo, com 38 por cento em 1995, 31 em 1996, 22 em 1997 e 24 no ano de 1998. Nos últimos dois anos já houve obras que registaram apenas derrapagens de 15 ou 20 por cento por pressão da tutela ou do clima geral criado no sector.O cenário da derrapagem ocorrido naqueles cinco anos, que correspondem a dois anos e meio de Governo do PSD e a idêntico período do executivo socialista, representa uma "realidade insustentável", como assinala um governante socialista com experiência no sector das obras, que de uma forma ou de outra, com maior ou menor obsessão pela transparência, teria de ser atacada.A pressão tornou-se mesmo insustentável a partir do caso JAE, surgido com base nas declarações do general Garcia dos Santos sobre a corrupção neste sector. Os casos de sobrecustos, aliás, não se restringem às obras na esfera da JAE. Vejamos um exemplo na área ferroviária: a construção do sub-troço Albergaria-Alfarelos, da linha do Norte, estava orçada em 21 milhões de contos, mas o Estado acabou por gastar 31 milhões. Os sobrecustos atingiram uma percentagem de 46 por cento e o secretário de Estado Guilhermino Rodrigues exigiu à Refer, em despacho de 8 de Outubro do ano passado, que explicitasse "quais as medidas tomadas ou que pretende tomar no sentido de clarificar as responsabilidades dos diferentes intervenientes nas várias fases do projecto, desde o início até à execução". O exemplo é clássico e não é único no panorama das obras públicas em Portugal: orçamentos largamente excedidos, uma média de sobrecustos na ordem dos 70 e tal por cento, como recentemente assinalou também uma vasta auditoria do Tribunal de Contas. A questão que se coloca e que surge enunciada nas polémicas declarações do ex-ministro do Equipamento João Cravinho sobre os "lobbies" está em saber se o regime em vigor em matéria de obras públicas combate o desperdício e a corrupção, se existe ou não vontade de o fazer, se a necessidade política de mostrar obra ao povo não "legitima" a secundarização das regras de transparência exigíveis aos concursos e fiscalização das empreitadas.E o que é que se fez antes de chegar às já famosas leis que modificaram o regime de obras públicas? Cravinho encomendou a referida auditoria técnica e de gestão aos empreendimentos por parte da Junta Antónoma de Estradas à empresa de consultoria Roland Berger, cujas recomendações apontam claramente para a necessidade de "disciplinar as relações com terceiros". O que significa isto? Que os consultores apontam para a necessidade de a JAE na relação com a tutela e com as autarquias "obter um compromisso de que não haverá alterações fundamentais aos projectos, uma vez aprovados superiormente". Defendem uma "responsabilização dos projectistas pelos erros e omissões de projecto, decisão facilitada, eventualmente, pela criação de um seguro específico para estas situações e pela exigência de certificação de qualidade por entidade externa credenciada". Por fim, questão mais sensível, na relação com os empreiteiros a Roland Berger recomendou um "maior rigor na elaboração/alteração dos contratos (penalizações por incumprimento, definição dos custos unitários dos trabalhos a mais, recursos humanos e equipamentos a afectar à obra, qualidade dos sub-empreiteiros, etc.), recorrendo sempre a apoio jurídico".Na óptica da "cartilha" dos consultores, o grau de sucesso da opção por contratos por preço global está fortemente dependente da disciplina imposta ao nível das fases de projecto, expropriações e concurso/contratação. "Desvios desfavoráveis em termos de qualidade e tempo, nestas fases, conduzem necessariamente a um não cumprimento por causas imputáveis ao dono da obra", afirmam.O documento da Roland Berger recomenda claramente, entre outros aspectos, a necessidade de aumentar os níveis de exigência de qualidade para os estudos prévios e projectos de execução (dando o exemplo das expropriações), de especificar com clareza qual o produto final que se pretende e de reforçar o acompanhamento crítico do trabalho dos projectistas. O diagnóstico feito à JAE redunda em recomendações de natureza jurídica, como a criação de um regime específico de controlo da despesa com obras públicas, de um outro de orçamentação por programa, maior relacionamento institucional com o Tribunal de Contas, por forma a reduzir significativamente o índice de rejeição dos processos submetidos a visto prévio e ainda uma iniciativa legislativa para apurar a fiscalização da conformidade da obra com o projecto.Na verdade, a JAE correspondia a um modelo de organização ultrapassado face às necessidades de uma gestão moderna, vivendo entre a manipulação política por parte da tutela face às necessidades de natureza eleitoral e os esquemas instalados no sector das obras públicas. Muitos projectos de obra eram antigos, outros foram feitos à pressa e com fortes debilidades de investigação técnica. A programação física e a programação financeira não eram coordenadas, fazendo com que a empresa fosse gerida na base do "saco azul", como a sindicância realizada pelo magistrado Francisco Pinto dos Santos veio abundantemente pôr em evidência.

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