"Por dentro, todos temos a mesma linguagem"

Quando ouve Peter Pabst referir-se ao trabalho que desenvolve há mais de 20 anos com o Tanztheater Wuppertal o rosto de Pina Bausch ilumina-se. A coreógrafa alemã prefere que sejam "os outros" a falar das suas criações. Bausch está em Portugal pela quarta vez para apresentar o seu mais recente trabalho, "Água", uma peça que presta homenagem ao Brasil. "É através das pessoas que chegamos às coisas verdadeiras", diz.Entre hoje e sábado, o Grande Auditório do Centro Cultural de Belém - onde estreou, em 1998, a peça que dedicou a Portugal, "Masurca Fogo" - volta a acolher o universo provocador desta que é uma das maiores coreógrafas contemporâneas.Ao som de Tom Zé, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Jobim, Carlinhos Brown, P. J. Harvey, Susana Baca ou Tom Waits, o Tanztheater Wuppertal faz desfilar uma série de imagens e situações que nasceram de uma residência no Rio, em São Paulo e na Baía, sem se preocupar em fazer crítica social ou julgamentos de valor. "As nossas peças não são documentários", disse aos jornalistas Peter Pabst - o cenógrafo a que Bausch se associou depois da morte de Rolf Borzik -, numa conferência de imprensa na segunda-feira. Foi aí que a coreógrafa falou da sua relação privilegiada com Pedro Almodóvar e dos futuros projectos sobre Istambul e o Japão.Aos 62 anos, Pina Bausch permanece fiel aos seus métodos de criação. Tudo começa do zero, sem notas, sem palavras: "Primeiro tenho que me perguntar o que sinto, o que procuro, como o vou contar." Não é por isso estranho que Heiner Müller tenha escrito, referindo-se ao seu trabalho: "O tempo no teatro de Pina Bausch é o do conto. A história intervém como uma perturbação, como os mosquitos no Verão." Pina Bausch - O mais importante é conhecer as pessoas que o vivem. É preciso tempo. O mais fácil é estar com alguém que nos possa levar a ver o que está fora dos circuitos turísticos. O mais importante é deixarmos que essas pessoas nos façam descobrir o que para elas é bonito ou difícil de ver. É através delas que chegamos às coisas verdadeiras, às coisas de todos os dias. Por mais bonito que seja, um monumento construído há muito tempo não me diz muito sobre os que hoje passam por ele ou o visitam. Geralmente a partir das entidades com que estabelecemos co-produções. Ou através de amigos capazes de garantir que conhecemos as pessoas certas no pouco tempo de que dispomos. Mas, às vezes, as coisas correm de maneira diferente. Por exemplo, quando estivemos nos Estados Unidos, com uma co-produção em Los Angeles ["Only You", 1996], tudo era muito distante - para ir de um sítio a outro tínhamos de andar de carro muito tempo. Se alguma coisa corria mal por algum motivo perdíamos um dia inteiro. Estava muito nervosa e sempre rodeada de jornalistas. Foi aí que decidi que só dava entrevistas se me levassem a sítios incríveis, a lugares que não teria oportunidade de ver de outra forma. E foi assim que conheci outros lados da cidade. "Água" foi feita nos moldes tradicionais, depois de um período de residência em São Paulo, no Rio e na Baía. Como é que a Baía se "revelou"?"Revelação" é a palavra certa. Apenas uma pequena parte da companhia viajou até à Baía, região que há muito tempo queria conhecer. E, tal como esperava, encontrei um daqueles lugares aos quais se deseja sempre voltar. Passeei pelas ruas, praias e mercados. Andei a "comer" imagens e cheiros que não conhecia, nos terreiros de magia africana ou nas noites de forró, quando a companhia saía para dançar. Em "Água" há um pouco de tudo isto, mas muito pouco. Numa peça há sempre algo que fica à espera.O processo criativo de "Água" foi muito diferente do de "Viktor", a primeira peça que dedicou a uma cidade (Roma, 1986)?O material é diferente e sinto sempre, de alguma maneira, que é o primeiro trabalho que faço. É muito complicado explicar -leva horas. Mas há sempre um ou outro recurso que se mantém...Como o baseado numa série de perguntas que coloca aos seus bailarinos para os pôr a reflectir sobre determinado assunto?Sim. Costumo dar-lhes perguntas e cada um responde à sua maneira, com o corpo ou a palavra. Às vezes com o movimento, outras com uma pequena cena ou uma memória. O importante é que cada um responda de acordo com aquilo que realmente sente, mesmo que demore um mês ou precise de dois ou três momentos para o fazer. Absolutamente. Durante muito tempo vou fazendo perguntas atrás de perguntas. Ponho-os loucos [risos]. Procuro tirar partido das respostas que me são dadas, em sentidos muito diferentes.Na maioria das vezes esqueço-me delas mal acabo este "laboratório". Muitas têm a ver com o lugar em que nos encontramos, outras estão mais relacionadas com aquilo que nos aproxima do que procuramos. De todo o material que resulta das perguntas, usamos qualquer coisa como cinco por cento na peça. Não mais. É uma maneira de os pôr a pensar mas de uma maneira que não é consciente, como se, de repente, o que acontece dentro da cabeça pudesse fugir ao seu controlo. Acontece aqui, mas pode projectar-se noutro sítio, sem que a pessoa que lhe deu origem se aperceba.As perguntas podem não estar directamente ligadas aos temas que aborda. Temas como a solidão e o amor continuam a estar presentes em "Água"?Sempre. Porque o que está em palco é a realidade, é a vida. E no que nos cerca há sempre amor e solidão, mesmo num país como o Brasil, onde as pessoas parecem ter tempo umas para as outras, onde se tocam, onde partilham. Mesmo aí há momentos de solidão. Não acredito que haja alguém que possa dizer que nunca se sentiu só. Essencialmente as pessoas, tal como noutros países. É claro que podemos falar na luz, nas ruas e no mar da Baía. Mas isso não chegaria para criar esta singularidade tão forte. São as pessoas, naquela rara relação que mantêm com o que as rodeia, a energia que põem no que fazem, a forma como nascem a cantar e a dançar.As pessoas são sempre a matéria-prima das suas criações, sejam como pontos de referência ou como "instrumentos" de criação. Sim, mas as coisas não são fáceis. Nem sempre os bailarinos estão contentes. Tudo se passa ao nível do desejo, da vontade, do querer, do compreender. Tudo passa pela solidão, pela memória de cada um, pelo que têm para dar, para mostrar ou para esconder. Como é que escolhe os seus bailarinos, hoje em dia? Continua a preferir bailarinos a actores?Sim, porque continuamos a ter no nosso reportório muitas peças dançadas. Para as interpretarmos precisamos de bailarinos. Para mim o movimento é muito, muito importante. Mas há certas peças e situações em que trabalho com uma actriz que está comigo há bastante tempo. Tudo depende muito do que está em causa. É muito complicado de dizer. Todos os bailarinos da companhia são muito diferentes. Em primeiro lugar, têm de ter necessidade de falar de si próprios, de dizer o quanto amam as pessoas. Têm de sentir de uma forma genuína - não sentir aquilo que lhes pedimos que sintam. Têm de querer falar, mesmo que não o saibam ainda. Talvez a maioria descubra essa urgência de comunicar enquanto trabalhamos, enquanto experimentamos. Muitas vezes, mulheres e homens trocam de papéis. O seu olhar sobre o homem e a mulher é muito diferente?É difícil de explicar em que medida essas diferenças surgem. Nós trabalhamos juntos, da mesma maneira. Mas há sempre formas diferentes de ver. Quando se trabalha a partir da vida, cada um tem uma perspectiva muito particular - independentemente de ser homem ou mulher -, mas tem em si a capacidade de ser o oposto, de sentir o oposto. Tudo o que tocamos tem sempre um oposto. Nada é branco ou preto. Muitos críticos defendem que, nos seus trabalhos, procura sempre esconder uma ideia, um tema ou uma emoção. Em "Água" há esta tentativa?Nunca é intencional. Uma peça como "Água" tem sempre muitos níveis de leitura. Quando a vemos várias vezes vamo-nos apercebendo de elementos ou pormenores diferentes, sentimos que é um objecto que cresce e se desenvolve aos nossos olhos. Num momento preciso a peça provoca-nos um sentimento e, mais tarde, a mesma cena pode levar-nos a uma emoção completamente diferente. Tudo se passa ao nível da experiência do espectador. Se as imagens são suficientemente profundas, as coisas acontecem. As imagens que deixo não apontam direcções - existem. Estão sempre abertas às sensações e ao olhar de cada um. Estão lá para serem conquistadas e transformadas por quem vê. Conto com a imaginação do público. Trabalho com ela, com a sua fantasia. De uma maneira ou de outra, seja qual for o país ou a cidade, estamos sempre expostos uns aos outros. Penso que, por dentro, todos temos a mesma linguagem. Todos nós somos matéria que se partilha. ÁguaDirecção e coreografia de Pina Bausch. Cenografia e vídeos de Peter Pabst. Pelo Tanztheater Wuppertal. LISBOA. Centro Cultural de Belém. Praça do Império. Hoje, amanhã e depois, às 21h. Tel. 213612444. Bilhetes entre 10 e 35 euros.Andei a "comer" imagens e cheiros que não conhecia, nos terreiros de magia africana ou nas noites de forró, quando a companhia saía para dançar. Em "Água" há um pouco de tudo istoPorque o que está em palco é a realidade, é a vida. E no que nos cerca há sempre amor e solidão, mesmo num país como o Brasil, onde as pessoas parecem ter tempo umas para as outras, onde se tocam, onde partilhamSe as imagens são suficientemente profundas, as coisas acontecem. As imagens que deixo não apontam direcções - existem. Estão sempre abertas às sensaçõesConto com a imaginação do público. Trabalho com ela, com a sua fantasia. De uma maneira ou de outra, seja qual for o país ou a cidade, estamos sempre expostos uns aos outros

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