Pedro Cabrita Reis de pés bem assentes na terra

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Um dos fascínios deste artista é o seu self invented character, a personagem que construiu Daniel Rocha

Críticos, curadores, directores de museu falam de "um homem que não voltamos a esquecer, depois de o encontrarmos". Documentário de Abílio Leitão e Alexandre Melo, hoje, na RTP2, às 20h50

Há um momento do documentário de Abílio Leitão (realização) e Alexandre Melo (argumento) em que Pedro Cabrita Reis diz: "A matéria de um vinho, gargalhadas de crianças, uma mulher que passa e que nunca saberei quem é. Estes são os materiais da minha vida e, portanto, os materiais dos meus trabalhos." É o eco, na primeira pessoa, das palavras do crítico e comissário João Pinharanda, da Fundação EDP, que, a dada altura, explica estarmos perante alguém que "junta o modo de estar na vida, em todos os momentos, com o modo como faz arte".

Depois do documentário da realizadora Teresa Villaverde que acompanhou a participação de Cabrita Reis na Bienal de Veneza de 2003, voltamos a encontrar-nos em filme com um dos mais reconhecidos artistas da segunda metade do século XX português. Mas de forma distinta. A favor da claridade - um filme de Teresa Villaverde para Pedro Cabrita Reis era um espaço de encontro entre artistas - com o que esses territórios têm de lugar de desencontro. Pedro Cabrita Reis, de Abílio Leitão e Alexandre Melo, exibido hoje na RTP2 às 20h50, é, nesse sentido, um documentário mais convencional e também mais aberto, com um olhar feito da confluência de múltiplos olhares. Não ficamos a saber mais ou menos sobre Cabrita Reis, o artista - que, neste caso, é o mesmo que dizer: Pedro Cabrita Reis, o homem. Mas observamos o homem e o artista de outros ângulos. Não a partir apenas do posto de observação constituído pelo corpo de um realizador, mas a partir de múltiplos postos de observação combinados.

Self invented character

Entre os 11 entrevistados, críticos, curadores e directores de museu, ouvimos o arquitecto Eduardo Souto de Moura, autor do Crematório de Kortrijk para o qual o artista fez uma escultura (Looking at Silence, 2012), e o director da Tate, Nicolas Serota (que nos fala da "não complacência" de Cabrita Reis, "um homem que não voltamos a esquecer, depois de o encontrarmos"). Ouvimos também João Fernandes, que em Janeiro tomará posse no Reina Sofia, em Madrid (recorda a exposição de 1999 em Serralves e a "gramática de apropriação do museu, com as suas próprias lógicas de construção" numa operação de "nova ritualização do espaço"), ouvimos ainda Sabrina van der Ley, directora de arte contemporânea do Museu Nacional de Arte, Arquitectura e Design da Noruega, que, em 2009, era curadora da Galeria der Gegenwart, do Hamburger Kunsthalle, onde primeiro foi apresentada a antológica One after another, a few silent steps (Van der Ley fala no que há de desenho na escultura de Cabrita Reis, referindo a poesia e ironia do título de uma exposição dedicada a alguém cuja forma de caminhar "não é tão silenciosa assim").

Jean-François Chougnet, que em 2011 recebeu a mesma exposição em Lisboa enquanto director do Museu Berardo, aponta a transmutação de objectos muito simples do quotidiano em obra. Menno Meewis, do Middelheimmuseum, de Antuérpia, fala em "ruínas modernas" a propósito de A Passagem das Horas, a intervenção "entre a escultura e a arquitectura" que Cabrita Reis tem no parque do museu, junto a um hospital.

Para além da obra, um dos fascínios deste artista é o seu self invented character, a personagem que ele construiu, diz a dada altura Adrian Searle, o influente crítico do diário The Guardian. Nas primeiras cenas do filme, começamos com esse homem "espantosamente expandido", com todo o seu apetite e curiosidade, em deambulação pela sua casa no interior do Algarve. Entre visitas a cidades e espaços expositivos urbanos, é sempre a essa presença wellesiana no meio de cenários rurais que voltaremos. Com Cabrita Reis o que está em causa, sempre, é um regresso às origens, a um "modo de vida assente na terra", nas palavras de João Pinharanda. Numa das cenas iniciais, pouco depois de tirar, beber e dar a beber a outros a água que tira de um poço numa terra árida e pedregosa onde tem vindo a plantar oliveiras, alfarrobeiras, figueiras e laranjeiras, Cabrita Reis diz: "Nunca chegarás a ser alguém se não te dedicares a enriquecer a terra." É um ensinamento tanto sobre a arte como sobre a vida.

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